Ontem foi consolidado o ocaso do ciclo de 13 anos do governo do PT. Mas o processo de impeachment da agora ex-presidenta Dilma Rousseff ainda é passível de questionamento - não só nas instâncias jurídicas, como ela afirmou publicamente que irá fazer, mas também porque sinaliza uma crise de representação política bastante séria para o país. Agora, viu-se que é possível depor um estadista ao se articularem de forma programada vários atores políticos e sociais (mídia, políticos e outros), mesmo diante da ausência de crimes que configurem real perigo para a democracia e as instituições.
Para tentar compreender os melindres narrativos criados por esses atores para construir a "necessidade" do impeachment e sua recente realização, entrevistamos o cientista político Luís Felipe Miguel, professor da UNB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Segundo ele, o Brasil é um país em que "a representação em que os interesses dos representados acaba contando muito pouco" e que, sendo alvo de constantes ataques misóginos, Dilma se manteve firme e sua postura durante o impachment "ressaltou a força que pode ter uma mulher na política".
No artigo Em torno do conceito do mito político (1998), o senhor aponta:
“Na maior parte dos discursos políticos míticos, ao contrário do que quer Sorel, a rejeição à razão é velada. Em todo caso, é importante marcar a distinção entre a combinação de apelos racionais e afetivos, característica de toda a política, e a recusa terminante à interferência da razão, como no mito. É a mesma diferença que existe entre a defesa de valores últimos, que em grande parte não é suscetível de debate refletido, e a fé irracional em "verdades" que não podem ser contestadas”.
A partir dessa perspectiva, como podemos pensar as narrativas políticas que vimos essa semana durante o julgamento de Dilma Rousseff?
O julgamento da presidente da República foi marcado pelo embate entre duas narrativas - que ficaram muito claras com a ida de Dilma ao Senado, para responder a seus acusadores. Os defensores do impeachment apostaram na ideia de que havia um conflito entre "o Brasil" e seus inimigos ou (o que dá na mesma) entre bem e mal. O governo do PT não foi apresentado como portador de um projeto político que encontrava adversários e sim de uma chaga moral, a corrupção, da qual, por extensão, todos os seus inimigos ficavam livres. O discurso da advogada Janaína Paschoal, em que ela se colocou como executora da vontade de Deus, é o exemplo máximo. Trata-se de um tipo de discurso que nega a legitimidade da disputa política e, no limite, aponta para o fascismo. Já os defensores da legalidade, embora não deixassem de usar a manobra retórica que fazia equivaler seus interesses com os do Brasil, apontaram mais para o conflito que ali se apresentava. Denunciavam que a derrubada de Dilma era arquitetada por quem se coloca contra direitos de trabalhadores, de aposentados, de mulheres etc.; por quem deseja entregar riquezas do Brasil a potências estrangeiras. Abriam caminho, portanto, para um debate político. A democracia foi derrotada de muitas formas no Congresso Nacional brasileiro; uma dessas formas foi a derrota do reconhecimento da legitimidade do dissenso político - exatamente o que, dizia o filósofo Claude Lefort, consiste no "gesto inaugural" da possibilidade de uma ordem democrática.
Dilma foi inocentada pelas perícias do MPF e pelo Senado. O senador Acir Gurgacz (PDT-RO) admite a falta de crime de responsabilidade contra a agora ex-presidenta. São mostras de que as motivações jurídicas do impeachment são factoides e deixam evidentes as motivações políticas que nortearam o processo de impedimento. A partir desse contexto, como podemos pensar a representação politica no nosso país de hoje em diante?
O sociólogo Pierre Bourdieu dizia que o grande problema que os regimes políticos contemporâneos enfrentavam era como conciliar seu caráter formalmente democrático (todos têm direitos políticos iguais) com seu funcionamento efetivamente censitário (só aqueles que controlam determinadas propriedades podem efetivamente ser ouvidos). A representação política, tirando o poder do povo e passando para as mãos de uma minoria, pode ser o mecanismo que garante essa convivência. O Brasil mostra isso. A esmagadora maioria de deputados e de senadores que determinou o afastamento de uma presidente eleita pelo voto popular, sem que restasse qualquer dúvida de que ela não praticou qualquer crime de responsabilidade, não espelha os interesses da maior parte do povo brasileiro. E isso não apenas porque a grande maioria das pessoas não quer o governo Temer. É porque a derrubada de Dilma inclui o retrocesso nos direitos trabalhistas, nos direitos das mulheres, nos direitos de gays, lésbicas e travestis, nos direitos da população negra e dos povos indígenas, nas políticas sociais de inclusão, de saúde, de educação. Nada disso passaria pelo crivo dos pretensos representados. Mas os interesses dominantes possuem seus próprios meios de influência: financiamento de campanha, controle da mídia, lobby, corrupção. É uma representação em que os interesses dos representados acabam contando muito pouco.
O governo de Temer é marcado justamente por ser uma equipe formada exclusivamente por homens. Isso acontece antes (quando ela foi afastada), durante e após o impeachment de uma mulher no meio do seu segundo mandato. Como o senhor avaliaria esse cenário: o simbolismo de um governo de homens se sobrepondo ao governo uma mulher deposta?
A misoginia foi um componente importante do golpe. O governo de Dilma Rousseff avançou em algumas questões de interesse das mulheres, como o combate à violência ou a regulamentação do trabalho doméstico remunerado; avançou de menos em outras, como a oferta de creches; e em outras ainda, como o direito ao aborto, não avançou nada. Independentemente disso, era uma mulher no mais alto cargo político do País, com a legitimidade que as urnas lhe deram. Era um símbolo de que a política é, também, espaço para as mulheres. A misoginia agressiva da campanha contra a presidente, o elogio às qualidades convencionais da submissão feminina (destacado no "bela, recatada e do lar") e a ausência de mulheres no primeiro escalão revelam o desejo de que elas voltem para a esfera privada. Felizmente, eu acredito que é muito difícil que isso ocorra. As mulheres têm se mostrado cada vez mais aguerridas na defesa de seus direitos. E a dignidade da presidente deposta serve de incentivo para que não esmoreçam. A campanha misógina tentou destruí-la, mas a postura de Dilma ressaltou, ao contrário, a força que pode ter uma mulher na política.
O senhor comandou uma pesquisa analisando a forma como a mídia agiu durante as eleições presidenciais em 2002. Como o senhor avalia as mudanças (se houver) do papel da mídia no cenário político brasileiro, tendo em vista os marcos políticos da primeira vitória de Lula e do impeachment de Dilma?
O Brasil caminhou, até 2002, para um padrão mais "civilizado" de influência da mídia na política. Em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais em quase 20 anos, a Rede Globo se envolveu em uma trama para fraudar o resultado no Rio de Janeiro. Em 1989, nas primeiras eleições diretas para presidente, a mídia se engajou de maneira quase aberta na campanha de Collor. Em 1994, usou o Plano Real como forma disfarçada para alavancar a candidatura de Fernando Henrique Cardoso (como foi confessado pelo então ministro Rubens Ricupero). Em 1998, escondeu a campanha eleitoral, tentando fazer da eleição um mero ritual de recondução de FHC. Em 2002, finalmente, há um esforço para "enquadrar" os candidatos, cobrando deles compromissos com políticas mais conservadoras, sem manipular abertamente o noticiário em favor de um ou outro nome. É esse o padrão da influência política da mídia nos países democráticos - uma influência que desequilibra a disputa, mas se mantém dentro de certos limites. De 2002 para cá, a grande imprensa brasileira regrediu ao padrão de 1989 - ou até pior. Promoveu uma campanha sem tréguas contra Dilma e contra o ex-presidente Lula, acompanhada pelo ocultamento sistemático de todas as informações contrárias aos líderes dos partidos de direita. Apostou na misoginia, na manipulação dos fatos e na mentira pura e simples. Está provado, uma vez mais, que sem a democratização da mídia não há esperança para a democracia no Brasil.