No Brasil, o escritor Arnon Grunberg (Amsterdã, 1971) ganhou projeção quando do lançamento de seu romance Tirza (Rádio Londres, 2015) - para nós, um dos melhores lançamentos do ano passado. A obra alia diversão e choque para mostrar um homem que busca salvar a própria vida, que está à deriva pela aposentadoria compulsória, o abandono da esposa e a partida da filha preferida.
Em O homem sem doença, que será lançado pela Rádio Londres em 22 de setembro, Grunberg parte das mesmas premissas: uma narrativa ambígua para expor um sujeito à beira do colapso. Mas se antes o dilema ocorria na esfera privada, agora é na pública: Sam, o protagonista, foi preso por terroristas. É humilhado por eles, como se fosse a própria encarnação do Ocidente. Posteriormente, os traumas escapam, também, para a vida familiar de Sam. Uma narrativa clara, de períodos curtos, que fala sobre a animalização do "inimigo", a neutralidade (ela existe?) e o trauma.
Abaixo, um trecho inédito de O homem sem doença.
***
Eles estão mascarados. Seis homens mascarados. Sam presume que não sejam oficiais, mas militares normais, se é que existem militares normais neste país.
A maioria deles não fala inglês, mas árabe. Só um, o menor dos seis, de vez em quando dirige a palavra a Sam em inglês. Ele também tem o hábito de chamar Sam de “cachorro”, mas Sam já se acostumou a isso. Seu nome ali é Cachorro. Depois de um tempo sendo chamado assim, não conhece outra forma.
Algumas vezes o baixinho diz:
— Você com certeza pensa que algum dia vai sair daqui.
Não há nem sombra de uma audiência, no sentido usual dessa palavra. Eles ficam em torno dele e continuam falando árabe.
De vez em quando, o baixinho diz num tom que não chega a ser particularmente hostil: “Cachorro”. Como se quisesse dar uma lição a Sam. Mas Sam não sabe que lição deveria aprender ali.
Ele suporta esse tratamento sem raiva porque tem medo demais de que possam bater nele novamente e de não saber como evitar esses golpes. Ou melhor, de não ter como evitá-los. Sua raiva agora é principalmente dirigida contra si mesmo, por ter deixado que a situação chegasse a esse ponto.
O que havia pensado? Que o mundo era uma grande Suíça?
A princípio, havia esperado que os homens lhe trouxessem algo para comer. Como a luz era muito ruim e, inicialmente, só conseguia ver silhuetas, por um instante até achou que um deles fosse um funcionário da embaixada suíça. Pensou ter escutado alemão-suíço, mas, no fim, deu-se conta de que era árabe.
Em vez de lhe darem comida ou água, eles o despem.
O terno que não era dele, a camisa que não era dele, a calça que não era dele, arrancam, tudo à força. Têm de rasgar a camisa porque suas mãos estão atadas às costas. Também os sapatos, que são dele, são tirados às pressas. Não se dão ao trabalho de desamarrar o cadarço.
Contrariá-los os deixaria furiosos. Por isso Sam é solícito enquanto tiram sua roupa.
— Você é americano? — pergunta o baixinho quando Sam já se acha nu diante deles.
— Sou cidadão suíço — diz Sam, e se senta de maneira que sua genitália fique encoberta.
De joelhos, com as pernas bem encostadas. Assim quase não é possível ver suas nádegas, pois alguns dos homens estão atrás dele.
Ele tenta adivinhar de onde virão os golpes, pois considera seriamente que será surrado.
— Vamos fazer com você o que os americanos fizeram conosco — diz o baixinho. Por causa da máscara que ele usa, sua voz soa um tanto distorcida, mas, ainda assim, é bem inteligível.
Sam não faz ideia do que os americanos fizeram com eles, mas diz:
— Eu não sou americano, sou suíço. Vim aqui para a reconstrução. Sou neutro. — Soa cada vez menos convincente, cada vez mais como uma súplica. Afinal, será que eles conhecem a palavra “neutro”? Isso é crucial. Neutro resume bem o que ele é, quem ele quer ser e o que sempre foi. Neutro e adequado, duas palavras que tocam o cerne de sua existência.
— Você não é neutro, cachorro — diz o baixinho. — Você é um espião.
Ele, portanto, ainda não conseguiu convencê-los do contrário.
— Eu sou arquiteto — diz ele.
Nada mais que isso. Mas cada detalhe pode ser explicado de outra forma. Quando se analisa minuciosamente qualquer coisa, cada detalhe se torna dúbio, ambíguo. Uma vez que o campo adverso está convencido de sua vida dupla, torna-se difícil dissuadi-lo dessa ideia.
— Eu projeto edifícios — acrescenta.
Pensa em Aida por um instante. Ele não é também um irmão? E um filho? Um amigo, um amante talvez? Aida precisa ir para os Estados Unidos. Para quem está disposto a pagar, é possível se recuperar lá. Seus pais não tinham entendido isso, não quiseram se convencer de que havia um lugar no qual, pagando, Aida poderia ser curada.
Os homens o empurram para um canto, o que não lhes custa nenhum esforço, pois, assim que ele compreendeu qual era a intenção deles, foi se arrastando até aquele local. Ali não existe nenhuma dignidade; apenas servilismo. E ele está disposto a ser servil. O cliente tem sempre razão e neste lugar eles são os clientes. Esse pensamento parece tornar a situação mais suportável, de qualquer modo, mais clara: os homens são potenciais clientes, ele tem de satisfazê-los.
Eles tiram seus pênis de suas calças.
Sam quer proteger seus olhos, boca, nariz e orelhas, mas, como suas mãos estão atadas às costas, isso é impossível.
Começam a urinar nele, alvejando principalmente seu rosto. Como há homens que miram a mosca no mictório, eles miram seu rosto. Ele é a mosca. No começo ele ainda sente o gosto da urina, o amargor, um eco de vinagre velho, mas logo já não sente mais gosto nenhum. Apenas sente seu cheiro. A urina está por toda parte: em seus olhos, em seu nariz, em sua boca, em suas orelhas.
Um de seus ouvidos fica entupido, como às vezes acontecia quando ia nadar com o pessoal da escola. Quando eles finalmente terminam, escuta o baixinho dizer:
— E amanhã nós voltaremos. Então vamos fazer com você o que eles fizeram conosco.
Ele gostaria de dizer mais uma vez que é neutro e que sempre foi neutro, que só foi até ali para a construção de um teatro de ópera. Um equívoco (talvez o Iraque ainda não esteja pronto para um teatro de ópera — mas quem é ele para determinar se o Iraque está pronto para um teatro de ópera), porém um equívoco que não afetou a ninguém negativamente.
Querem responsabilizá-lo por algo pelo qual não é responsável. Não é o amor, mas a vingança que é cega.
No entanto, ele conta com a força das evidências. Ainda assim não diz nada, não ousa abrir a boca, principalmente por medo de que possa entrar ainda mais urina.
Ouve a porta se fechando. Permanece deitado com os olhos fechados e a boca fechada. Só é obrigado a deixar aberto o nariz.
A sensação é de que ele próprio se tornou urina, um amontoado endurecido de urina, com uma ferida latejante inflamada no meio da cara.