Acho que em janeiro Alberto Fuguet me escreveu num daqueles seus e-mails rápidos (sempre em inglês) e cheios de ironia - “Estou para publicar um novo livro. Será algo como o amor nos tempos do Grindr”. Sim, o aplicativo gay para encontros que promete sexo sem enrolação e com pronta-entrega. Sudor (inédito no Brasil) tem quase 600 páginas e retoma outra vez o tema que parece central na obra do escritor chileno – uma busca constante, seja por um novo carimbo no passaporte, uma nova ênfase no sotaque ou mesmo uma estética destoante, tal e qual um dia defendeu no infame manifesto McOndo.
Apesar da trama de Sudor ter um apetite sexual ostensivo, a busca principal do romance segue a direção do alvo favorito de Fuguet: os cânones da literatura hispano-americana, que são outra vez apresentados como pastiches de si próprios, ventríloquos de um passado que não faz mais sentido, ainda que permaneçam no foco da atenção. A ação tem início com a visita que Rafael Restrepo, o grande autor do Boom hispano-americano, faz à Feira de Livros de Santiago para lançar o livro de fotos do seu filho - uma espécie de dândi dos trópicos, descrito como “poeta, bohemio, fotógrafo, hemofílico, vulnerable y puto”. É como se os eventos literários fossem um grande palimpsesto de cânones anacrônicos.
É fácil reconhecer em Rafael Restrepo a figura de Carlos Fuentes e do seu filho, Carlos Fuentes Lemus. Assim Fuguet atualiza a crítica que fez em McOndo em relação à sombra que o Boom lança sobre os autores que começaram a publicar após os anos 90, quando se encerraram as últimas ditaduras latino-americanas. Ao colocar lado a lado o “amor nos tempos do Grindr” e os pastiches do Boom, Fuguet parece dizer que desejo sexual e mercado literário são ambos reféns de padrões estáticos de imagem.
É curioso o tom “festivo” da narrativa de Sudor, quando, nos últimos, o autor parecia ter se decidido por uma “voz” mais reflexiva, um “volume” mais baixo de fala. Foi assim com seu romance Missing (também inédito no Brasil), de 2010, uma das obras mais curiosas da literatura hispano-americana recente. Missing é quase um romance policial: homem subitamente decide empreender uma busca por parente desaparecido. E ponto. Não há reviravolta mirabolante ou coisa aparecida, em Missing há apenas a busca. E esse é seu grande trunfo.
Em boa parte das suas obras, Alberto Fuguet lança mão de um personagem que carrega traços da sua vida real: um homem dividido entre as culturas norte-americana e chilena; um homem desconfiado com o seu passado, sempre com um olhar irônico, ainda que melancólico, um sorrisinho no canto da boca, sobre tudo o que relata. Sabemos que é Fuguet que nos fala, ainda que fale de certa forma distante. Mas é curioso que em Missing ele colocou um zoom na sua persona. O narrador é Alberto Fuguet, escritor chileno, de razoável fama internacional, que decide recuperar o irmão do seu pai, o filho pródigo, de vida errante, que desaparecera nos Estados Unidos. É um livro sobre encontrar. Mas é também sobre escapar, como se esses dois verbos, aparentemente antagônicos, fossem complementares.
“O cinema é fuga, ao escrever a gente escapa, lendo talvez também. Essas têm sido minhas fugas, as formas como tenho me perdido: primeiro vendo, lendo; depois escrevendo, filmando, criando. Tentando controlar o caos externo pelo caminho da invenção. Criando, tenho poder, criando me sinto seguro, criando sou a melhor pessoa porque sinto que posso sair um pouco da minha mente,um lugar onde me sinto extremamente cômodo” - inicia assim Missing, um livro sobre um fugitivo procurando por outro fugitivo.
O romance é apresentado como o diário da investigação de Fuguet, a real confissão do autor de que estaria relatando tudo o que vivera até encontrar o tio desaparecido (ou seja: seria a autobiografia de um momento específico da vida do narrador). Mas é justamente nessa confissão que começamos a perceber o caráter de relato misto, de confissão com tintas ficcionais, que marca a obra. O desejo de encontrar o tio parte de uma fantasia, de uma mistura de traumas infantis e de projeções que fizera do parente. Ou seja: Carlos é seu personagem, assim como o próprio Alberto Fuguet que nos fala durante a narrativa. Esse, sim, o personagem central do romance. Não é o tio desaparecido que parece importar aqui; ele é apenas o pretexto por trás de uma inquietação anônima, mas forte o suficiente para justificar a escritura de um livro inteiro.
O tio é a ausência de alguma coisa que havia deixado de fazer sentido, que foi esquecida por todos e, por isso mesmo, precisa ser prontamente substituída. O narrador-Fuguet continua essa declaração inicial sobre a importância de fugir lembrando que Carlos não era um artista, nem escritor, por isso, diante do cenário familiar que o cercava, desaparecer seria a única coisa a fazer. “Meu tio se perdeu. Se perdeu de verdade”. É compreensível que um homem que passou a vida inteira criando artefatos de fuga, artísticos artefatos de fuga, se interesse em escrever a trajetória de um homem que não teve esse recurso (a irresistível atração dos opostos). Alguém que sumira de pronto. Evaporara. Ao tentar transpor para a literatura esse tio desaparecido, Fuguet parece querer também “salvá-lo”; deseja emprestar-lhe um pouco das suas estratégias pessoais de salvação.
Se o McOndo foi deliberadamente não político - e por isso mesmo político por subtração -, com Missing não ocorreu diferente. Ao contrário do que possa parecer, Carlos não é um exilado político ou teve qualquer participação com os anos de repressão militar. Era apenas um homem de vida “alternativa”, alguém que não se enquadrava nos padrões estabelecidos, que, nos anos 1970, por falta de um adjetivo melhor, era considerado um hippie por amigos e familiares. Alguém que simplesmente decide continuar seu estilo de vida alternativo nos Estados Unidos. Ao permanecer fora do território político, de exilados e torturados pelos regimes ditatoriais, Fuguet imprime aqui, sorrateiramente, uma das marcas da sua ficção prévia. No entanto, ao propor um relato de resgate da memória (uma memória que jamais é total, assim como nossa percepção da realidade) propõe, de certa forma, um ato político: a reconstituição de um passado é um gesto de oposição ao poder.
A ênfase de ausência do título da obra não é bem sobre desaparecer, mas, sim, sobre esquecer. Carlos não é um desaparecido, mas alguém que fora esquecido, alguém que perdera a importância. E é essa diferença entre esquecer e desaparecer (ou escapar) que faz com que o diário proposto por Fuguet pareça tanto ficção quanto real ou mesmo que, no final das contas, aprendamos que não há diferença entre um e outro. Afinal, trata-se de alguém (o sobrinho) que forja a necessidade de uma lembrança. É nesse ponto que a busca de Fuguet se aproxima do projeto malfadado de esquecimento de alguns dos seus contemporâneos, como Alan Pauls e Roberto Bolaño. Para os detetives, o encontro é o fim; para os escritores-detetives, a busca em si é o que constitui o mais importante da história. É a necessidade de encontrar alguma razão que seja para continuar escrevendo (e escapando).
Num texto sobre os 10 anos de publicação da antologia McOndo, Fuguet comentou que jamais pretende relançar a obra. Ainda que não se importe com a vasta circulação do seu prefácio-manifesto pela internet. E que para o novo milênio escolhera um caminho literário mais “global, local e acústico”. Ainda que a declaração soe pomposa, pelo conteúdo ferino de (ótimos) livros como Sudor e Missing é fácil perceber o quanto os ataques dos anos 1990 persistem na corrente sanguínea de tudo o que Fuguet escreve. É quase impossível evitar de lançar mão de um bordão irônico: “Quando acordou, o McOndo ainda estava ali”.
P.S.: É urgente que alguma editora brasileira se interesse em voltar a lançar Alberto Fuguet no Brasil, uma das escritas mais singulares da literatura hispano-americana. Seu último livro lançado por aqui foi Os filmes da minha vida, em 2005.