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“Eu escrevo porque há lugares aonde não chego sem escrever. Porque escrever é um ato mental e corpóreo que me conecta com minha ancestralidade. É minha maneira de rezar pelos mortos silenciados, os mortos sem tumba, não identificados. Tem uma fera vivendo dentro de mim e ela só respira quando eu escrevo. Todo o resto do tempo eu sou estrangeira, vivo na língua dos outros, escrever é minha casa, é onde posso caminhar sem sapatos. Parece romântico? Não é. É político. Qualquer periferia é longe demais, eu demorei vinte e quatro anos para chegar no centro de São Paulo, o pé na porta. Para qualquer pessoa com um pingo de cultura preta, ir para a escola é ir para outro país, e eu lia muito para descobrir como viviam nesse lugar imaginário chamado Brasil. Ser mulher, ser da periferia, é viver de favor em sua própria casa e a gente tem que ralar muito para se perceber no direito de abrir a geladeira. Foi através da literatura que entendi quem eu sou, que me conectei com meu corpo branco de cultura branca e preta, com a felicidade histérica da minha infância em Diadema. Troquei a culpa que tinha por ter tão mais do que tanta gente, mesmo quando não tive o suficiente, pela determinação de usar meus privilégios na luta pelo que acredito. Eu não vou parar de escrever porque os leitores são raros, eu vou continuar justamente por isso. A gente precisa sair de tantos armários e a verdade é que nem todo mundo tem mão para abrir a porta.”

O discurso de Sheyla Smanioto, 26 anos, é forte, bem como sua literatura. E se “lia muito para descobrir como viviam nesse lugar imaginário chamado Brasil”, em Desesterro, seu romance de estreia, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2015 e publicado pela Record, ela compõe um recorte de seu próprio Brasil. Imaginário, sim, mas também horrivelmente real. Personagens pobres e femininas habitam cenários desoladores como Vilaboinha. Curioso notar o nome escolhido para esse lugar terrível e miserável, diametralmente oposto à praça Vilaboim, em São Paulo, no coração de Higienópolis, um dos bairros mais ricos da cidade mais rica do país. A proximidade entre os nomes é imensa, já a situação deles…

Em Vilaboinha – e em Vila Marta, outro lugar onde a história se passa – o que temos é basicamente miséria, fome, sordidez, violência e alguns cachorros sendo tão – ou quase tão - escorraçados quanto as mulheres. “Todas as noites sonhava com a mulher virando gorila e Fátima tão faminta, meu Deus, faminta, querendo a gorila feito cadela, querendo com sua fome gorila. Era tanta a fome gorila, até banana servia/ roubada, isso quando tinha, quando certo, uma por dia”, descreve sobre uma das personagens, que “comeu tanta terra e o calor era tanto que quase alcançou um poço. Comeu tanta terra que passou a sentir terra tossir terra e respirar assim que nem terra através de tudo que dela brota.” Pobre da esfomeada sonhadora, que vive onde ninguém conhece uma pessoa gorda, que gordice é coisa de galinha velha. E a relação das mulheres com a terra é visceral: comem, mexem, reviram, sobrevivem e querem fugir daquele solo onde às vezes são abandonadas até pela morte e não há espaço para esperança sequer quando estão no dolorido trabalho de parto.

Em Desesterro, Sheyla traz pessoas e situações que andam pouco habitando nossos livros. O cenário, semelhante ao que Valter Hugo Mãe desenhou em O remorso de Baltazar Serapião, nos remete aos rincões e periferias brasileiras, ainda que as podres relações não só humanas possam ser encontradas em qualquer canto, até nos abastados arredores da praça Vilaboim. A lógica é meio que a seguinte: os cães apanham de todo mundo, as mulheres apanham dos homens, precisam lidar com seus cães internos e externos e também espancam os cachorros, os homens, do alto de seu machismo arcaico, sentem-se no direito de agredir quem encontram pela frente.

Ao longo do livro os homens batem, estupram e garantem fazer tudo isso por amor. Espancam, espancam, espancam, moem as mulheres e dizem que amam. Amor, para eles, dever ser olhar para outro ser humano e enxergar uma propriedade privada inanimada; conhecem apenas a linguagem da violência, da força bruta e, invariavelmente, embrutecedora. Bem como a fome, a cultura do estupro permeia toda a história. Cultura que dialoga com a pedofilia: “pegam” as mulheres para casar ainda pequenas e veem uma provocação sexual em tudo, como neste trecho:

“Ela ficava na terra com as pernas arreganhadas, ela pequena e me fazendo querer arreganhar de vez aquelas pernas. Eu falei pra ela, conheço esse jogo de rapariga, esse jogo de quer não quer, eu sei bem o que você quer… eu sei bem o que você quer. É normal ter medo, eu falei pra ela enquanto ela se debatia, a cadela na minha canela, é normal sentir dor, eu falei enquanto ela se debatia comigo nela, diacho, gostoso demais”.

Um dos momentos que fica claro como esses “machos” são colocados na berlinda por Sheyla é na fala de uma das personagens, já pro final do livro. “Deus é pai, a vó dizia. Pai é tudo que faz a gente ficar escondida, embaixo da pia, cochichando com as próprias feridas. Pai é que nem Deus, deixa tudo por entendido, não diz nada do que a gente já deve saber. Pai é que nem Deus, chega feito ventania e tem filhos demais, não importa quantos, filhos demais pra lembrar cada um, saber o que gosta. O pai esquece a gente. Que nem Deus.”

Terror: fome e estupro

“No final fiz uma história de terror sobre o meu maior medo e a fome é o meu maior medo e também o estupro. Para me conectar com a fome dessas mulheres eu usei a minha fome, metafórica de certa forma, vinda da experiência de comer compulsivamente para tapar buracos emocionais. Por isso há a realidade da fome, mas há sobretudo uma fome mítica, arquetípica. Da mesma forma, minha experiência do mundo se dá por um corpo feminino e o livro todo eu escrevi dando num só golpe o contragolpe de viver essas violências todos os dias”, comenta a autora sobre a obra. “Como sociedade, sabemos muito pouco sobre o que é ser mulher e também sobre o que é migrar da periferia para os centros ou para a universidade, você sabe, os deslocamentos hoje em dia são mais sociais do que geográficos e nós precisamos falar sobre isso”, continua.

Sheyla, aliás, não concorda muito quando digo que a única linguagem possível no universo do livro é a da violência. “Violência não, crueldade. A violência desaparece o outro, ela está no Desesterro, especialmente nas relações de Tonho, mas o que predomina nas relações femininas do livro é a crueldade. Vilaboinha é um olhar para o mundo que já está aí e eu tenho percebido que essa visão diz respeito a uma experiência muito feminina, e digo isso porque leitores homens costumam comentar o aspecto brutal do livro e leitoras mulheres costumam falar e agradecer pela esperança que há ali. A crueldade é transformar o amor em risco, e não existe crueldade sem amor ou erotismo, não existe crueldade sem um corpo para romper, você entende? Como sociedade, estamos desesperados.” Não sei se entendo claramente, Sheyla, mas sigo refletindo.

Estética ousada

E se o cenário, os personagens e a realidade mostrada em Desesterro andam um tanto afastados da nossa literatura contemporânea, o ousado trabalho com a linguagem feito por Sheyla também é raro de encontrar por aí nos livros desses nossos dias. Como já deve ter sido possível perceber nos trechos acima, sua escrita traz uma estética ousada, que se aproxima da literatura oral e do tom de documentários como Estamira, de Marcos Prado e José Padilha. Por essas características, difícil não enxergar, por exemplo, influências como a de Marcelino Freire. E os capítulos da obra são curtos ou curtíssimos, como se tudo aquilo retratado só pudesse ser suportável em pequenas doses. Até provocado pela leitura do volume 2 de Ficcionais, quis saber como funciona esse processo de criação da autora, que encara a escrita de forma visceral.

“O primeiro gesto é torrencial, sou possuída por ele, pela caneta e pelo papel, é praticamente um ritual. O gesto volta toda vez que eu travo. A preparação envolve leitura das brabas, leio só o que me interessa e leio muito e fico cavoucando as conversas até achar histórias, tudo com o intuito de incorporar temas, gêneros e ritmos, visitar os lugares arquetípicos para os quais o livro será o mapa. Disso surge um texto tosco, mas enérgico, com alguns lampejos poéticos. Observo como os lampejos convivem em seu hábitat natural, é como observar uma pessoa com o intuito de imitar seus gestos. Mas você tem que fazer isso como se estivesse querendo fugir de um cativeiro, afinal, poesia é precisão. Escrevo para imitar, sai falso, escrevo de novo, quase convence, de novo e pode ser que esteja até bom e depois de cinco ou 20 tentativas o lampejo está incorporado. Então eu volto para o texto, agora com uma ideia mais clara do que eu quero, uma espécie de acordo para jogar com o que a própria escrita me ofereceu e chegar aonde me interessa. Junto certa compreensão técnica da linguagem que se apresentou para mim através do instinto de escrita com essa crença de que a repetição do gesto é capaz de me fazer incorporar essa linguagem, de me fazer senhora dela em um sentido amplo e mesmo que por apenas um segundo. Faço isso muitas vezes, sobre muitos aspectos: escrevo para ver o que tenho, descubro o que quero, volto e contamino tudo com o que me parece genuíno, morto e também muito vivo. Assim vou incorporando cada aspecto da linguagem, vou juntando tudo até que mente e corpo passam a trabalhar juntos, a mente identificando a necessidade e convocando o corpo (a linguagem) para a realização. Depois limpo os excessos e é quase como esconder um corpo, não posso deixar as marcas de passos no meio das frases. Eu limpo tudo. Até sobrar só o livro.”

E dessa sobra nasceu um romance esteticamente original e que toca em pontos fundamentais para nossos dias, passado principalmente na escabrosa e necessária Vilaboinha, “terra boa de ir embora, com suas lufadas de vento e suas terríveis lufadas de vento, lugar de todo dia enterrar de novo um morto”. Igual ao maior dos Brasis que existem em um só.

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