O trecho abaixo é um inédito extraído do livro A vista particular (Alfaguara), de Ricardo Lísias, que sai em outubro. Narra a história de um artista plástico que tem a vida transformada depois que filmam algo feito por ele e o vídeo viraliza. "Uma história sobre o Rio de Janeiro e o entorpecimento contemporâneo", nas palavras do autor. O trecho foi extraído do segundo capítulo da obra.
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VI
Vale a pena congelar o vídeo do Biribó à altura do 6:42. É justamente o momento em que José de Arariboia coloca o pé direito na areia branca de Copacabana. Um pouco atrás, oito jovens tentam repetir seus movimentos. Repare como se perdem, pois ainda estão na calçada e não podem, portanto, forçar uma das pernas mais que a outra na praia. O artista virou o pescoço para cima, em uma perfeita sincronia muscular. Os quatro tentam do mesmo jeito olhar a noite estrelada carioca. Não acham o ponto de equilíbrio.
Atrás deles vem uma multidão. Alguns também estão tentando reproduzir os movimentos de Arariboia, sem se preocupar demais. Esqueçam os cabelos! Outros dão risada, gritam ou olham ao redor. Um senhor no canto direito (de quem observa a tela) abre a palma das mãos para ver se está chovendo. É um dos mais velhos do cortejo.
É uma pena que quando a gente congele o vídeo, o som desapareça. Se alguém conseguisse fazer ecoar por mais tempo o barulho que a multidão está produzindo, perceberia a heterogeneidade do momento: buzinas misturam-se a gritos, as pessoas cantam melodias diferentes, várias fazem ôôôôôôôô e dá para escutar algumas palmas. Ao fundo e bem baixinho ainda, os ouvidos mais atentos notam a sirene de uma viatura da polícia.
VII
Frame do vídeo postado pelo traficante Biribó no YouTube.
A imagem corresponde aos 6:42 minutos do filme.
VIII
O cortejo se espalhou ao longo da calçada. Os mais empolgados, claro, entram na areia branca e fazem um círculo ao redor de José de Arariboia. Ele continua movimentando o corpo e mexendo nos cabelos, agora em um ritmo mais pausado. De vez em quando, para a dança e olha o céu. O oceano se abre por trás do ritual, como se fosse uma fonte acolhedora de prazer e felicidade. Copacabana, a princesinha do mar.
Três ou quatro pessoas que formam o círculo parecem de fato aguardar o abraço do mar do Rio de Janeiro. Se pudessem dizer, com certeza se considerariam parte daquela natureza exuberante e maternal. Escolhi essa última palavra com muito cuidado: os participantes mais próximos de José de Arariboia estão se sentindo tão protegidos que, como ele fez ainda no morro Pavão-Pavãozinho, começam também a tirar a roupa. Uma moça oferece a própria saia ao mar.
Iemanjá, aqui está...
O pessoal da calçada vai ao delírio: a imagem, em poucos instantes, foi retuitada milhares de vezes. O círculo, então, cresce um pouco mais. No centro, Arariboia aumenta o ritmo. Agora, nosso herói se vira para o mar. As pessoas que estavam entre ele e a água azul abrem espaço e uma meia- -lua se forma. Arariboia ergue as mãos e corre.
IX
Pelo movimento que ensaiou fazer, a impressão inicial era a de que José de Arariboia iria entrar na água azul do mar de Copacabana. Ele apenas molhou as canelas, virando- se bruscamente em direção à avenida, erguendo outra vez os braços. O grupo que o cerca não consegue diminuir a velocidade e grande parte cai na areia. Alguns desistem de imitar o mestre e ficam deitados por dois ou três segundos, tempo suficiente para que a viatura da polícia seja, por fim, ouvida.
Como se estivessem acostumados, muitos desaparecem. Dá para ver, por exemplo, que a parte final do vídeo que o Biribó subiu no YouTube foi realizada por outro celular. Na janela dos hotéis, os hóspedes vaiam a interrupção do ritual. Logo, veem que o nosso artista não se abalou e, sem cerimônia, voltou aos gingados tão singulares que estava fazendo antes de molhar os pés.
Algumas garotas que continuam na calçada gritam para a polícia não machucá-lo. Com tantos celulares filmando a cena, isso evidentemente não vai acontecer. Alguém estende uma toalha para um dos guardas, que cobre o corpo de Arariboia. Com toda a calma, os dois andam até a viatura.
Muito aplaudido, o nosso artista esconde os dentes pretos com a mão direita.
X
Os primeiros vídeos que apareceram se encerram com a viatura deixando a confusão para trás. Durante todo o romance, José de Arariboia não irá dizer o que aconteceu na delegacia e, muito menos, algumas horas antes, no morro Pavão-Pavãozinho. Quanto à polícia, tudo o que sei é que, na manhã seguinte, nosso herói foi deixado na frente do prédio onde mora vestindo uma farda. O rosto dele não tem o encanto dos vídeos, mas ainda assim parece tranquilo.
Ele sai do carro, acena para o porteiro, que parece muito espantado ao vê-lo naquela roupa, e sobe o elevador. A câmera de segurança mostra que ele foi até o apartamento quase sem se mover. A porta fechou com muita delicadeza.
No momento em que José de Arariboia entra em casa já há mais de meio milhão de acessos aos vídeos que aparecem no YouTube registrando seu trajeto do morro à praia. Quando os descobrir já vai ter batido um recorde. Agora, dentro do apartamento, tira a farda e se deita, ignorando o telefone.
A narrativa aqui fará um corte para descrever duas personagens secundárias: o traficante Biribó e a marchand Marina dalla Donatella. O leitor pode alimentar sua curiosidade assistindo aos vídeos no YouTube.