
Nobel de Literatura em 1996, a polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) se tornou mais conhecida do público brasileiro em 2011, com o lançamento de Poemas (Companhia das Letras), uma antologia poética. Recentemente, mais da sua obra chegou ao leitor com Um amor feliz, pela mesma editora. Trata-se de outra antologia - desta vez maior - na qual podemos explorar mais as mudanças na poética da autora ao longo de sua obra.
Nos dois livros, a seleção e tradução foram da professora Regina Przybycien. Entrevistamos a tradutora para entender mais sobre a poeta e sua transposição ao português. Especialista na obra de Elizabeth Bishop, Przybycien atualmente é professora visitante de literatura brasileira na Universidade Jaguellônica (Polônia). Para ela, a postura de Szymborska diante do mundo era a de que "devemos admitir que não sabemos e buscar incessantemente o saber, que nunca alcançamos, pois o universo é vasto" - elemento visto em sua poesia - e que a poeta a ensinou "que ser rebuscado não significa necessariamente ser profundo".
Ao leitor, lembramos que em 2017 a editora Âyiné lançará dois volumes de Szymborska no Brasil: um com a crítica literária feita por ela e outro com colagens feitas pela autora acompanhadas de breves poemas.
1) No primeiro livro (Poemas), a senhora se preocupou, na introdução, em falar muito sobre a poesia de Wislawa Szymborska. No segundo, a senhora se detém na poesia, novamente, mas em grau menor, detendo-se nos melindres que encarou ao traduzir a autora. Podemos entender isso como um indício de que, sendo a poeta mais conhecida, já não se precisa de tanta apresentação, mas de uma explicação de suas escolhas como tradutora e responsável pelos poemas que entraram? Podemos falar que houve expectativa do público por essa nova leva de poemas?
Para essa nova publicação, tinha em mente o público leitor que já conhece e aprecia a poeta. A ótima recepção de Poemas me surpreendeu. Pessoas me abordavam para dizer o quanto haviam gostado dos poemas e recebi e-mails pedindo que eu traduzisse mais. Embora Szymborska tenha sido traduzida para dezenas de línguas e seja apreciada em muitos países, parece que a relação do público leitor brasileiro com Szymborska foi um caso de amor à primeira vista. Caso semelhante aconteceu na Itália, onde seus livros viraram best-sellers.
2) A senhora cita, na introdução aos Poemas (de 2011), que Szymborska e sua geração (Z. Herbert, T. Rózewicz, C. Milosz) testemunharam a "falência da humanidade" - um sentimento gerado pela II Guerra - e isso os levou a refletir sobre a condição humana. É possível dizer que se trata de uma geração “traumatizada” pela Segunda Guerra?
Os jovens artistas e intelectuais poloneses que viveram a experiência da Segunda Guerra Mundial e posteriormente a repressão do regime totalitário comunista não podiam deixar de ser profundamente marcados por esses acontecimentos. Embora a guerra tenha afetado o mundo inteiro, ela foi particularmente cruel na Polônia, que foi palco de experimentos os mais cruéis da “limpeza étnica” nazista. “Trauma” talvez não seja uma palavra adequada, mas a desumanização que presenciaram influenciou fortemente suas visões de mundo.
3) Há ecos dessa geração na poesia brasileira (o acesso poderia se dar pelas traduções ao inglês, por exemplo)? Em caso positivo, como esses ecos se mostraram?
Não me parece que esses poetas tenham tido influência na poesia brasileira. Entretanto, poetas brasileiros traduziram Szymborska. Um caso curioso são as traduções feitas por Ana Cristina Cesar e Grażyna Drabik no início dos anos oitenta (publicadas na revista Religião e Sociedade n.11, julho de 1984) quando ninguém, ou quase ninguém, havia ouvido falar da poeta polonesa por aqui. Quando ela ganhou o Nobel em 1996, foram publicados alguns poemas esparsos traduzidos por poetas brasileiros. Nelson Ascher, por exemplo, a traduziu a partir do inglês.
4) No discurso da autora feito na ocasião em que ganhou o Nobel – e que consta em “Um amor feliz” - Szymborska mostra uma reverência pela negativa. O “não sei” que se profere diante das coisas a leva a buscar outras possibilidades de entender/sentir os fatos, as relações, as coisas. Isso lembra a célebre frase de Sócrates (“só sei que nada sei”), mas também lembra Bartleby, o escrivão (“preferiria não fazer”). Óbvio que são contextos diferentes, mas essa recusa pelo que se põe diante de si parece fazer os três dialogarem de alguma forma. A senhora pode fazer um exercício de tecer considerações a respeito dessa característica da autora?
Para Szymborska a frase “não sei” traz uma conotação positiva pois conduz à busca de novos modos de ser enquanto que as certezas enclausuram as pessoas na mesmice, em velhas fórmulas que impedem a renovação. Para ela, devemos admitir que não sabemos e buscar incessantemente o saber, que nunca alcançamos, pois o universo é vasto e o que logramos saber sobre ele é ínfimo apesar de todas as conquistas científicas e tecnológicas. Nos imaginamos o centro do mundo, mas não arranhamos nem a superfície dos seus mistérios. Vários poemas aludem à mistura de arrogância e desamparo que caracteriza o ser humano. Diante desse quadro, pode parecer que a visão de Szymborska é negativa. No entanto, diz ela, apesar de nosso desamparo o mundo é espantoso e a vida, embora breve, merece ser vivida. O personagem Bartleby de Herman Melville se presta a múltiplas leituras, mas a sua recusa a qualquer ação expressa na frase “I’d rather not” (“eu preferiria não [fazer]”) se revela niilista, paralisante, e finalmente o destrói. O conto de Melville me parece uma crítica à alienação causada pelo mundo moderno e burocrático. Lembra mais Kafka do que Szymborska, que vê a insensatez e as vicissitudes humanas com uma tolerância bem-humorada que lembra uma piscadela marota.
5) Ao ler o poema “Umas palavrinhas”, depreende-se uma crítica da poeta à tradição poética polonesa. Gostaria que a senhora falasse da relação de Szymborska com sua geração e essa tradição que, segundo ela, canta “as vidas simples dos pastores de focas” ou “chora o seu fado em estrelinhas de neve”.
Este poema em prosa não é uma crítica à tradição poética polonesa e sim uma sátira aos estereótipos relativos à Polônia presentes no imaginário de outros países. No diálogo, a interlocutora é uma francesa que não sabe nada sobre o país, por isso acha mais seguro falar do clima, que ela supõe seja horrivelmente frio. O eu lírico responde com ironia, utilizando imagens hiperbólicas: os poetas “escrevem com luvas”, “cantam as vidas simples dos pastores de focas”, os decadentes “choram seu fado em estrelinhas de neve”, quem quiser se suicidar por afogamento “necessita de um machado para fazer um buraco no gelo”. Szymborska faz troça da ignorância dos franceses sobre seu país.
6) Szymborska me parece uma autora potente por, entre outras coisas, ter transformado as experiências que surgiram como consequência dos dilemas levantados pela Segunda Guerra (que rebateram em toda a segunda metade do século XX) em uma poesia de alteridade que recoloca “monstros” e “mitos” no mundo real (em "Um amor feliz", vemos isso nos poemas "Terroristas” e “Um instante em Troia”, por exemplo). Ela humaniza as ficções que criamos em torno dessas figuras e, assim, nos dá a chance de lembrar que eles são como nós. E usa a ironia de forma recorrente em uma linguagem simples – uma forma de redimensionar o peso da seriedade desses temas que a aproxima do leitor. Feitas essas considerações, como podemos entender a obra da poeta em uma sociedade como a nossa, em que as alteridades se embaçam em virtude do contexto político?
O que sei é que a poeta desmitifica figuras e histórias que a tradição cultural ocidental consagrou. Poemas como “A mulher de Lot”, Vietnã, “Monólogo para Cassandra” apresentam inequivocamente um olhar feminino que questiona o mito e/ou apresenta outras versões da história. Como a tradição foi formada pelos homens, já que somente eles escreviam, podemos dizer que Szymborska fala de uma perspectiva feminina. Mas esse Outro na sua poesia não é somente o feminino. É toda figura de alteridade. A tradição também é antropocêntrica, por isso a poeta chama a atenção para a existência de outros seres: desde uma pedra, um grão de areia, um micróbio até o mistério longínquo de uma estrela ou galáxia. Não somos o centro do universo, ela parece dizer, por isso talvez fosse bom deixarmos de olhar tanto para o próprio umbigo.
7) Em um artigo científico, a senhora lembra que as traduções inglesas da poeta são muito “criativas” e que foram criticadas por tomarem o sentido dos poemas e os recriar na língua inglesa como algo natural. Também fala sobre uma série de entraves que a língua polonesa cria para o tradutor (os jogos entre som e sentido, alguns verbos que ganham flexão de gênero quando conjugados etc). E na introdução a Poemas, a senhora escreveu que sua aproximação com a língua polonesa passa por Wislawa Szymborska, que chegou às suas mãos em um momento afetivamente complexo (a perda de sua mãe e como o estudo do polonês tornava essa ausência ainda mais multiforme). Gostaria que a senhora falasse sobre como essa experiência pessoal e a língua se transferem para o seu trabalho de traduzi-la e a relação disso com seu esforço para manter a fidedignidade à sofisticação intelectual da autora.
O polonês foi minha primeira língua, que falei até os cinco ou seis anos de idade já que meus pais eram poloneses. Ao ir para a escola me rebelei e não quis mais falar essa língua. Por mais de 40 anos vivi inteiramente na sociedade brasileira, me comunicando em português (e inglês, por formação). O polonês ficou no subconsciente, língua infantil, dos sentidos mais imediatos. Depois dos 40, comecei a me aproximar da Polônia, movida por certa curiosidade intelectual. Duas semanas antes de eu embarcar para Cracóvia para fazer um curso intensivo de língua polonesa, minha mãe faleceu. Estar na Polônia logo após essa perda, ouvir aqueles sons familiares da “língua-mãe” foi uma experiência muito intensa. Era o ano de 1996, quando Szymborska ganhou o Nobel. Li alguns poemas seus com ajuda da tradução inglesa e eles foram uma revelação. Reconheci neles os sons que me embalaram na infância, os ecos das histórias e canções infantis. É claro que depois tive que trabalhar intensamente para aprender a língua com toda a sua complexidade gramatical, mas a motivação primeira estava ali, naquela língua perdida da infância. Ao traduzir, tentei recriar em português a naturalidade daquela linguagem. E aprendi que ser rebuscado não significa necessariamente ser profundo. Szymborska me deu essas lições.
8) A senhora tem projetos para traduzir mais textos de Wislawa Szymborska? Se sim, pode adiantar algo?
Talvez eu me anime a traduzir uma seleção de suas crônicas. Elas são deliciosamente divertidas, cheias do humor característico da poeta. Mas este ainda não é um projeto concreto.
9) A senhora é especialista na obra de Elizabeth Bishop. Apenas por curiosidade: quais pontes podemos estabelecer entre ela e Szymborska?
Creio que Elizabeth Bishop e Wislawa Szymborska, embora perterçam a tradições literárias e culturais bem diferentes, têm vários pontos em comum, como a reticência, a concisão dos versos, a precisão da linguagem, a preocupação com a clareza e um perfeccionismo que as impedia de publicar poemas que não estivessem, segundo seu julgamento, perfeitamente acabados. Para alguém que escreveu durante seis décadas, Szymborska publicou relativamente pouco. Elizabeth Bishop levava anos burilando um poema até que o considerasse pronto para a publicação. O perfeccionismo pode ser paralisante, mas no caso dessas duas poetas resultou em obras admiráveis.
10) A literatura polonesa é pouco conhecida aqui no Brasil. Afora Szymborska, que teve boa recepção no país, quais os autores que a senhora indicaria para quem desejasse conhecer algo mais? Temos Czeslaw Milosz, que se projetou ao Ocidente quando ganhou o Nobel em 1980. Quem a senhora recomendaria para uma busca (poesia, romance), mesmo em inglês ou espanhol?
Já há uma quantidade razoável de literatura polonesa traduzida para o português (menciono somente os livros editados no Brasil. Em Portugal parece-me que há mais).
Para uma introdução à poesia polonesa, recomendo o livro Quatro poetas poloneses (Czesław Miłosz, Tadeusz Różewicz, Wisława Szymborska e Zbigniew Herbert), traduzido por Henryk Siewierski e José Santiago Naud e publicado pela Secretaria de Cultura do Paraná em 1994. De Czeslaw Miłosz temos ainda o pequeno volume: Não mais (Ed.UnB, 2003). Piotr Kilanowski, professor da Universidade Federal do Paraná, está traduzindo Zbigniew Herbert, que deverá ser publicado em breve.
Quanto à prosa, há muito mais autores traduzidos. Cito alguns:
Bruno Schulz (a obra completa), Henryk Sienkiewicz (os romances históricos A ferro e fogo, O dilúvio e O pequeno cavaleiro); Witold Gombrowicz (Cosmos, Ferdydurke e Pornografia). Ryszard Kapuściński (grandes reportagens: Ébano, O imperador, Minhas viagens com Heródoto, A guerra do futebol, O xá dos xás), Władysław Szpilman (O pianista), Ida Fink (A viagem), Anna Mieszkowska (biografia de Irena Sendler – a mãe das crianças do holocausto), autores recentes como Olga Tokarczuk, Tomasz Tryzna, Dorota Masłowska. E deverá estar no mercado em breve Solaris, de Stanisław Lem.