Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
Ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
(Antonio Carlos de Brito)
Em nota na coluna de Lauro Jardim, de O Globo, novembro último, revela-se que Adriana Calcanhotto está organizando uma antologia de poesia brasileira contemporânea. Que se chamará É agora como nunca, prevista para fevereiro, será lançada pela Companhia das Letras e nasce “inspirada em 26 poetas hoje”.
Inspirada em 26 poetas hoje.
Há 40 anos, em 1976, era lançada uma antologia de poesia brasileira, que atraíra atenção por trazer nomes então pouco conhecidos, donos de um trabalho de tema e linguagem pouco afim à poesia feita por clássicos. Nomes como Roberto Piva, Ana Cristina César, Chacal, Torquato Neto e outros foram lançados em um mercado editorial com perfil mais hegemônico. Essa antologia é 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda (você pode fazer o download aqui).
A obra, realizada com “consultoria” dos poetas Cacaso (1944-1987) e Francisco Alvim, foi responsável por lançar a ideia da “poesia marginal” (ou geração mimeógrafo) enquanto um grupo – pelo menos para o grande público. “Se há um 'marketing' da poesia marginal, ele vem inicialmente da disposição de uma antologista em reunir esses poetas e tratá-los como conjunto coerente. A ideia de conjunto pode ser objeto de discussão, mas o efeito histórico da antologia é inegável”, diz Marcos Siscar, poeta e professor da Unicamp.
À época de seu lançamento, Heloísa Buarque argumentara que essa geração reestabelecera o nexo entre a poesia e o público, já que os próprios artistas vendiam seus livros de mesa em mesa, além de ser cosntruída com linguagem acessível com referências ao cotidiano do leitor. Ideias que, de uma forma ou de outra, ainda são associadas à poética que 26 poetas hoje "revelou". A celeuma gerada na Academia sobre o teor dos trabalhos ali expostos ajudou a divulgar a obra dentro das universidades. “A reação foi bem negativa, com quase todos dizendo que não se tratava de literatura”, lembra Heloísa em entrevista ao Pernambuco.
Ainda segundo a antologista, a poesia exposta em 26 poetas hoje era de “alcance precário”, renovara os “impulsos desclassicizantes do modernismo” e trazia a “atualização da recusa ao convencional”. Posteriormente, em fins dos anos 1990, ela reconheceria esse “malabarismo” de ideias para justificar a reunião desses poetas. Também reconheceria a ausência do argumento político na apresentação da obra, lançada em plena ditadura numa sociedade até hoje injusta sob diversos aspectos.
“Fui, neste sentido, o maior exemplo do exercício pleno e 'natural' da auto censura que me levou a omitir, nada mais, nada menos, do que o objetivo central da pesquisa que desenvolvi durante oito anos sobre os subtextos políticos e os desafios interpretativos da aparentemente ingênua e descompromissada poesia marginal”, diz Heloísa no posfácio à segunda edição da antologia.
Para Heloísa Buarque, 26 poetas hoje tem valor enquanto registro. Foi “anticanônica na época”, mas hoje o que fica é “um testemunho importante e revelou vários poetas que mostraram sua importância pela permanência na história literária”, diz.
De fato, colocar no mesmo bojo as poesias de Chacal e Antonio Carlos Secchin, estilos tão diferentes entre si, pode ser bem questionável. A própria pesquisadora reconhece isso, no posfácio que fez à segunda edição, de 1998. Se antes a justificativa das escolhas dos nomes para integrar o grupo passava por uma ideia de diálogo em torno de propostas independentes em relação ao mercado editorial hegemônico, posteriormente ela diz que o material de 26 poetas hoje a atraiu por serem dissonantes. E por terem representatividade enquanto “registro poético naquele momento de extremado rigor da censura”.
A noção do que seria, hoje, uma poesia marginal é discutível – se o termo continua a designar aquela geração dos anos 1970/1980 e autores que ainda se influenciam fortemente a partir dela; ou se hoje ela é feita nas periferias, com temas e estéticas ainda acessíveis ao grande público, mas a partir de temas caros às discussões dos problemas dos grupos minoritários na sociedade. Mesmo assim, a pecha de “marginal” continua bastante atrelada àquela geração que se formou quatro décadas atrás.
QUAL O PAPEL DE UMA ANTOLOGIA?
Adriana Calcanhotto ainda não pode falar sobre a antologia que está preparando, segundo a assessoria da Companhia das Letras. Por e-mail, a editora informa que a artista “não se baseou exatamente” em 26 poetas hoje, mas que “foi apenas uma lembrança que a levou a fazer isso”. O trabalho terá 42 poetas nascidos entre 1973 e 1990. “Não há nenhum critério político para essa seleção, apenas a produção poética mesmo. Estarão no livro “nomes como Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Fabrício Corsaletti – autores já conhecidos – e Bruno Molinero e Laura Liuzzi”.
Heloísa Buarque indica, no prefácio a Esses poetas: uma antologia dos anos 1990, que sua ideia do que seria conceber uma antologia, nos anos 1970, passava pela vontade de fazer um retrato da produção de uma época. Já em fins dos anos 1990, de quando data o prefácio em questão, ela entende que toda escolha “expõe afinidades eletivas do antologista”. Ainda continua com essa visão: “acho que o antologista é sempre um crítico que faz um trabalho bastante autoral. A escolha, o recorte, a introdução revelam isso com clareza”, diz, por email.
“Uma antologia é 'política', especificamente, no sentido de que faz 'política literária'. É um recorte, que procura dar sentido ao contemporâneo. Por isso, também é uma forma de crítica”, pontua Marcos Siscar.
A partir disso, é possível indagar qual recorte (ou crítica), em se tratando de antologias poéticas no circuito editorial hegemônico, que pensa questões sociais e políticas que se arrastam desde 2013 (“Jornadas de Junho”), mas que remontam a problemas de 2005 (com o estouro do Mensalão). Quais reuniões de poesia publicadas por grandes editoras têm se preocupado em fornecer algum tipo de interpretação do contemporâneo com base nas produções dos últimos 10, 15 anos?
Retrato de época ou não, 26 poetas hoje continua forte no imaginário coletivo e ainda tem muito a nos dizer. Trabalhos como os de Roberto Piva, Chacal, Leomar Fróes, Antonio Carlos de Brito ou Leila Miccolis expõem a lida política sob diversos temas: homossexualidade, tradição, naturalização do corpo feminino, o contexto político da época e temas correlatos. A obra fora usada até mesmo como leitura recomendada para vestibulares, como o da UFMG, em 2008 – uma escolha arrojada que mostra a importância da antologia dentro da produção poética do país e das formas de pensar a produção artística durante o regime de exceção, bem como seus diálogos com a atualidade.
As escolhas de Calcanhotto mostram suas “afinidades eletivas”. Ela é, sabidamente, leitora assídua de poesia. Mas não creio ser rude inferir que perfis não hegemônicos estarão ausentes dessa reunião. Não sei dizer se a nota foi sugerida pela editora à coluna de O Globo ou se o jornalista descobriu por conta própria; mas se a ideia de diversidade (quanto a origens desses artistas e, consequentemente, estéticas e conteúdos) não faz parte da primeira descoberta (ou marketing) do livro, certamente as chances dela existir na obra é pequena, já que se trata de ideia forte demais para ser negligenciada em uma divulgação. Da breve lista fornecida pela editora, ainda que haja homossexuais, não há pessoas negras. Ou brancas de origem periférica – isso para lembrar apenas os grupos socialmente minoritários mais conhecidos.
Aqui retomo as questões de Heloísa Buarque de Hollanda sobre o papel do antologista ou da antologia: panorama da produção poética de um tempo, como nos anos 1970? Mostra de afinidades eletivas, como ela cita nos anos 1990 e ainda hoje? Ou, pergunto, talvez um caminho que alie as duas vertentes?
No caso em questão, escolher o que entra ou sai de um livro é uma questão individual, mesmo que o processo de escolha sofra muita influência de uma estrutura social que forma pessoas e direciona suas preferências (além, também, de um editor). Mas é possível realizar opções dentro de um escopo preocupado com diálogos entre arte e o presente. Que esteja atento às formas pelas quais, pela presença ou ausência, certo grupo de poetas das mais diversas origens e abordagens vão mimetizar a realidade.
Há 40 anos, a ditadura levou Heloísa Buarque a introjetar autocensura ao apresentar 26 poetas hoje, conforme ela mesma disse. Hoje, com a liberdade de fazer escolhas abertamente políticas, Adriana Calcanhotto escolhe outra via. Mas talvez “exigir” que a artista tenha uma visão mais complexa de poesia seja over demais, já que ela nunca se posicionou politicamente em público. Porém, a ausência desse tipo de preocupação política é, por si só, algo político. Marcos Siscar lembra que “a fama da antologia da Companhia das Letras precede a própria antologia, o que evidencia que não estamos diante de um trabalho intelectual, simplesmente, mas também de um produto de mercado”.
Entretanto, poemas com ideias inclusivas ou reflexivas sobre o social podem vazar nas entrelinhas: Angélica Freitas, por exemplo, é poeta extremamente conectada ao presente e negligenciar seu viés político em uma seleção de sua poesia certamente é empobrecedor.
Ainda que discutível, a antologia publicada pela Companhia das Letras é bem-vinda, como pontua, mais uma vez, Siscar: “grandes editoras costumam ser arredias à publicação de poesia. Mas parece que, depois da publicação das obras de Paulo Leminski e Ana Cristina César, será preciso um pouco mais de cinismo para repetir o refrão de que 'poesia não vende'”.