Diante dos ocorridos políticos dos últimos dias, o crítico literário Luiz Costa Lima fez uma breve reflexão sobre o “estado das coisas” no país. De forma didática, ele traça um paralelo entre atitudes do atual governo para minimizar o impacto da opinião pública, e mudanças nas regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), responsável pelas condutas de padronização em publicações acadêmicas em todo o país.
Responsável por trabalhos referenciais nos estudos literários, Luiz Costa Lima é autor de, entre outros, Mimesis e modernidade: formas das sombras (1980) e O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009).
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O arquivo do computador me faz verificar que há algum tempo publiquei uma resenha intitulada Tempos turvos. Embora não tivéssemos então chegado ao cúmulo de agora, devo pedir desculpas por um título demasiado delicado. Ele admitia entender-se que, comparado ao tempo da penúltima ditadura, o da atual seria bastante brando. O que é inverídico, desde logo porque não se compara o completamente desigual. A que vivemos é mais dissimulada e hipócrita que a anterior.
Se a ditadura iniciada em 1964 se declarava motivada para a nobre salvaguarda da democracia, o que obviamente já era reconhecida hipocrisia, a atual declara que se cumpre no pleno exercício da instituição democracia. Como se explicaria o paradoxo de uma ditadura “democrática”? Sem que eu pretenda ser um politicólogo, entendo-a como decorrente da muralha que se estabelece entre os que fazem parte dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a opinião pública. Os poderes se protegem entre si, o executivo convoca os outros poderes e, juntos, esperam que as manifestações públicas sejam contidas pelos cassetetes e fuzis, sem a necessidade de recorrer a uma força maior. À tortura e à morte, demasiado horrendas, de antes, portanto passíveis de provocar protestos internacionais, prefere-se uma modalidade menos espetacular contudo igualmente eficaz: o silêncio que se impõe, a percepção que as manifestações públicas são inúteis ante o inabalável do instituído.
O segredo da ditadura “democrática” depende de que sua “ordem” não seja sequer abalada pela vontade pública. A modalidade “democrática” da inédita ditadura, portanto, perdura enquanto a aliança dos poderes não tenha brechas, nem mesmo fissuras.
O introito acima se fez necessário para entender-se que a maré de entulhos se propaga além de sua fonte política. Para ninguém é novidade que tal estado de coisas sempre repercute no âmbito da cultura que se barbariza – por mais que a palavra cultura tenha sido banalizada, ela é insubstituível. Mas a novidade que aqui se destaca pertence ao campo dos absurdos, pois atinge a divulgação da cultura ali onde ela teria seu esteio: na editoração dos livros, de artigos, das dissertações e teses universitárias. Refiro-me à norma recentemente implantada pela ABNT.
Dito de maneira direta, ela consiste em, ao referir-se no corpo do texto a um certo autor, deve-se incluir a data da edição citada, e não a data de publicação da edição original. Para que se vejam as consequências da norma: caso cite Homero, deve aparecer, entre parênteses, 2001 ou 2011, datas das traduções brasileiras da Ilíada e da Odisseia. Ou se for Freud ou Marx, a seu nome deverá seguir 2017 ou 2015. O absurdo só não é completo porque, sendo nomes bastante conhecidos, o leitor saberá que as datas não correspondem às de suas divulgações originais. Portanto que não se pode imaginar que Homero, Marx ou Freud são nossos contemporâneos.
Então por que isso gera incríveis disparates? Para compreendê-lo, basta que se pergunte: e se o autor não for conhecido? É fato longe de ser raro ante nossa carência de traduções. Tenha-se como exemplo Konrad Fiedler [nota 1], um crítico de arte alemão do fim do século XIX. Como ele é geralmente desconhecido pelo público brasileiro, de acordo com a norma da ABNT, deverei pôr 1991 (quando se deu sua edição provavelmente citada). O leitor não terá como saber que não se trata de um contemporâneo. O que vale dizer, a norma, logo adotada sem contestação por editoras e universidades nossas, não só ajuda a manter nossa pobreza intelectual, como oficialmente incentiva os equívocos públicos.
Então, se a ditadura “democrática” ainda se explica pelas vantagens de um poder intocável, que explicaria o absurdo da norma referida? Não terá sido pelos exemplos internacionais, que, com variações, sempre ressaltam o critério da data do original ou, se ele for desconhecido, o uso do travessão. Qualquer leitor razoavelmente instruído sabe mais do que estabelece a norma da ABNT e não sabe explicá-la.
Mas por que não se ouvem protestos contra tal descalabro? Por que tenho de protestar como autor e porta-voz de doutorandos? Será por que previamente sabemos da inutilidade do protesto? Ou seja, que o princípio da ditadura “democrática” se estende aos poderes menores, mas nem por isso menos intocáveis? Contra a descrença que se generaliza, ainda tenho força para repetir o grito republicano espanhol: “no pasarán”.
NOTAS
[nota 1]: Do Suplemento Pernambuco - Konrad Fiedler (1841-1895), crítico de arte alemão, postulava que a arte era paralela, mas distinta, do conhecimento conceitual. É conhecido por, entre outras coisas, defender um tipo de solipsismo radical ao sustentar que os objetos do nosso conhecimento são, de fato, simplesmente nossas próprias experiências.