Cuti julho17 HB

 

O artigo de Michel Yakini, reduzido no impresso por questões de espaço, aqui segue na íntegra.

 

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A poesia de autoria negra no Brasil tem como um dos seus pilares a obra do escritor Cuti (Luiz Silva), um dos principais intelectuais e artista negro contemporâneo. Com trampo extenso, dedicado a vários gêneros literários, Cuti foi um dos fundadores e mantenedores da série Cadernos Negros (de 1978 a 1993), e do grupo Quilombhoje (1980 a 1994), que edita a antologia anualmente e recentemente lançou o livro Negrhúmus líricos, pela Ciclo Contínuo Editorial, mais uma paliçada firme aquilombada em sua história de arte e engajamento.

Nascido em Ourinhos-SP (1951), formado em Letras pela USP e com mestrado e doutorado na Unicamp, Cuti publica seus poemas desde 1978. Começou com Poemas da Carapinha (ed. do autor) e depois vieram Batuque de Tocaia (ed. do autor, 1982); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (Mazza, 1987); Sanga (Mazza, 2002); Negroesia (Mazza, 2007); Poemaryprosa (Mazza, 2009); Kizomba de vento e nuvem (Mazza, 2013) e o recém-lançado Negrhúmus líricos (Ciclo Contínuo Editorial, 2017).

Cuti vem firmando éticas e estéticas, anunciando, há milianos, um eu-lírico-negro, versando revides, neologismos, a trança entre oralidade e escrita e a presença do sagrado como gingas da sua arte. O autor assume um posicionamento de cisão com as formas tradicionais e faz da sua literatura uma reinvenção linguística e de resistência como explica neste depoimento: "(…) A estética é também um campo minado, onde os conceitos pisam em explosivos e vão pelos ares. Creio que a estética negra é uma questão de sobrevivência. Trata-se de nos reinventarmos para não sermos aquilo que o branco criou para que fôssemos (…) Criar é ir além a preocupação com o outro. Criar quilombos quase nunca exigia a destruição da casa-grande" ( extraído de Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol 4., p.56-57).

Em Negrhúmus líricos, o autor propõe relações de tensão e confronto, como no poema Tudo igual, mesmo recurso utilizado em Para ouvir e entender ‘Estrela’, publicado anteriormente no livro Negroesia:

PARA OUVIR E ENTENDER “ESTRELA”

se o papai-noel
não trouxer boneca preta
neste natal
meta-lhe o pé no saco!

(Negroesia, p.42)

 

TUDO IGUAL

de nada adianta
madame
tua pose
o preconceito infame
teu acinte

no esgoto
nossas merdas
se encontram
no instante seguinte.

(Negrhúmus líricos, p.68)

Em versos livres e curtos, os poemas sugerem uma interlocução direta, seja com quem o escritor denomina de “leitor ideal negro” ou com um perfil oposto, no qual a objetividade reforça o estilo, como flecha certeira, abrindo conotações reflexivas. Assim, o autor se apodera da herança identitária que a diáspora africana imprime na sua arte, refletindo na defesa de uma Literatura Negra, criando liberdades conceituais e formais: “Creio que toda alteração terminológica traz em si uma intenção de enfraquecer o termo de maior significância e empregado para arregimentação. (…) A palavra ‘negro’, dessa maneira, amplia o horizonte da identidade textual da nossa literatura, pois não tergiversa” (Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol 4., p.61).

Esta relação, entre origem e antagonismo ao padrão dominante, é versado com primazia no poema A palavra negro, do livro Batuque de Tocaia:

A palavra negro
tem sua história e segredo
veias do São Francisco
prantos do Amazonas
e um mistério Atlântico
 
A palavra negro
tem grito de estrelas ao longe
sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
dos olhos
 
A palavra negro
tem chaga tem chega!
tem ondas fortesuaves nas praias do apego
nas praias do aconchego (...)

(extraído do site do autor)

 

A palavra negro revela uma potência de repetição e significado, principalmente na sílaba gro, numa sonoridade recorrente nas palavras aconchego, segredo, chaga, chega e apego. A repetição (anáfora) do título, reforça a audição de pertencimento, contradição, combate e revelação. Este é um poema frequentemente declamado por Cuti nas performances de espetáculos, rodas de poesia e saraus.

O paralelo, entre oralidade e escrita, é uma marca do legado africano na poesia cutiana, pois o autor relata que “daí nasceu a roda de poemas”, pras “pessoas se sentirem mais à vontade com a poesia”, num movimento que não é estritamente de formação de leitores, mas de vivência da oralidade, num diálogo, de separação não congelada, entre voz e página. A aproximação ancestral da poesia de Cuti está também no sagrado, relembrando e ressignificando o oriki (forma poética nagô-yorubá), de evocação energética, comunitária, oralizada e transcrita que, em contraste com os cânones e as formas europeias, tem referências na mitologia africana:

 

OGUNHESSÊNCIA
palavra negro
treva de corpo inteiro
mergulhada na luz
do orixá guerreiro.

(Negrhúmus líricos, p.35)

Tradicionalmente, os orikis são emitidos pra definir nomes (oriki-nome), batizados, funerais ou celebrar deuses (oriki-orixá), numa linguagem poética do cotidiano yorubá, cultura fundamental das práticas do Candomblé no Brasil. Ogunhessência é uma reverência a Ogum (orixá da guerra e da metalurgia), evocando, desde o título, o nome e a saudação (Ogunhê!) do orixá, num neologismo com a palavra essência, revelando um dos eixos primordiais na criação poética de Cuti. A alusão ao oriki já aparece em sua obra no poema Oriki para Arnaldo Xavier, homenagem póstuma ao escritor citado no título:

 

ORIKI PARA ARNALDO XAVIER
(…)
axévier,
que este luto não seja mais uma luta de nossas contradições de viver
e sim um desprendimento de tudo
uma profunda e pacífica
meditação

é mais que urgente
que aprendamos a amar diferente
antes que seja tarde (...)

(…)
que tua passagem e lembrança
nos sejam
um bálsamo
para continuarmos a viagem.

(do site Vermelho.org)

 

Segundo pesquisa descrita no livro Oriki Orixá, de Antonio Risério, o oriki é um “(...)gênero poético é um conjunto de linhas longas, médias, curtas, agrupadas não em obediência a um esquema genérico rígido – e dado de antemão –, mas em função da definição do objeto tematizado (…) Construído com base numa sintaxe de montagem, o oriki aparece como uma espécie de colagem verbal, cujos blocos linguísticos, ou unidades temáticas, não possuem uma ordenação rigorosa, podendo inclusive ser subtraídos numa ou noutra performance (...)” (p. 43-44). O estilo se assemelha aos poemas de Cuti, pois o forma sintática (sentido da palavra no verso) é parte considerável na criação, leitura e análise. Neste trecho traduzido de um oriki de Ogum, podemos observar essa parecença:

(…)
Quando Ogum despontou
Vestido de fogo e sangue
O pênis de muitos queimou
Vagina de muitas queimou

Senhor do ferro
Que enraivecido se morde
Que fere ferroa e engole
Não me morda (…)

(…)
Nao me torture, Ogum terror.
Mão comprida
Que livra teus filhos do abismo
Livra-me.

(in Oriki Orixá, p.129)

A relação entre literatura, identidade, oralidade, formas fluídas e performance é algo agregado por Cuti, desde sempre, em seu trabalho e é referência pra autores negros que declamam e publicam nos saraus periféricos de São Paulo. Allan da Rosa, Elizandra Souza, Akins Kintê, Raquel Almeida, Sacolinha, Débora Garcia e este que escreve são autores que participam em algumas edições dos Cadernos Negros e organizam e/ou são frequentadores de saraus, numa trança entre a geração de Cuti e a ebulição literária dos últimos anos em Sâo Paulo. Além disso, Cuti casou parceragens com Akins Kintê no espetáculo Negroesia (2007), na coorganização do livro Pretumel de chama e gozo - Antologia de poesia negro-brasileira erótica (Ciclo Contínuo Editorial, 2015) e com o hip hop em apresentações e gravações com o rapper paulistano Raphão Alaafin.

O poema é o gênero mais veiculado entre os autores negros da periferia de São Paulo, por conta dos saraus e agora também pelos slams (batalhas de poesia). O texto falado é a coluna de todo encontro, pela influência histórica do rap, do samba, da capoeira, das batalhas de improviso, da embolada, dos contadores/as de causo, das cantigas de terreiro e da Literatura Negra.

Dois exemplos dessa relação entre a poesia negra periférica, a geração Cadernos Negros e a obra de Cuti, são os poemas Brasilândia – 8542, de Akins Kintê, e Sagrado Sopro, de Raquel Almeida:

Brasilândia – 8542
No busão das seis
as nega véia
anseio de chegá às oito
subi morro descê favela
não perdê a novela

(...)
tiram força não sei donde
pra suportá
no horário nobre o terror psicológico
e depois madrugas aflitas
de maridos alcoólicos.

(do livro Punga, p.18)

 

Sagrado Sopro
Colhi a mais bela palavra
O mais belo canto
Pra oferecer aos céus
Pra oferecer ao encanto
Deixei me envolver
Nessa brisa, nesse manto
(…)
Oyá
Envolve sobre mim sua tempestade
Pois tempestiva sou
Me acalenta em serenos sonhos de criança
Me embala nessa dança
Que não cessa e não cansa.

(do livro Sagrado Sopro – do solo que renasço, p.63)


No poema de Kintê, o verso livre é tomado pela fala das ruas (Vila Brasilândia, zona norte de SP, na tradicional linha de ônibus 8542), e o poeta conclama um espaço de singularidade e circulação comunitária. A linguagem segue a influência das línguas de matriz banto e yorubá no português brasileiro escrito por Kintê. Ao escrever as nega véia, como em as folha ou as menina, o autor segue o padrão linguístico destas matrizes, que marcam o plural somente no primeiro elemento (as/os). Assim como ao suprimir as consoantes finais das palavras, em chegáperdê suportá, segue a estrutura silábica banto e yorubá, que não apresentam terminação com consoantes.

Já no poema Sagrado Sopro, Raquel Almeida se religa à sua ancestralidade feminina e africana. Desde o título da poesia, a autora reverencia Oyá, anunciando um dos principais regimentos dessa divindade yorubá (o sopro), depois retoma o signo nas palavras brisa tempestade. Os versos iniciam fazendo uma oferenda (ato comum no candomblé), porém a poeta lhe dedica uma oferenda de palavras, sua matéria-prima. Ao longo do texto, o vento é retomado e provoca o movimento que embala nessa dança, que sugere o bailado no ritmo da rima. Por fim, o elemento sagrado se sobrepõe pela aliteração e sugere uma aproximação entre som e sentido em sobre; sua; sou; sereno; sonho; criança; nessa; dança; cessa; cansa.

Como na poesia de Cuti, os versos negros dos saraus paulistanos não miram às tradições da poesia canônica. Em ambos os casos, podemos propor uma leitura pra analisar métricas, rimas, aliterações e metáforas, porém é fundamental considerar a perspectiva identitária de cada autoria, pois esses poemas dizem pra ecoar, pra reverenciar o que veio antes, provocar circularidade, e tornar visível, artisticamente, o verbo que historicamente foi negado. São experiências singulares de artistas que ampliam as referências estéticas e de representação literária, num diálogo contínuo com suas identidades e fazeres.

Em Negrhúmus líricos (aqui o neologismo está desde o título fundindo a palavra negro com a fertilização do húmus), Cuti reafirma intimidades e contrastes com São Paulo a partir da identidade negro-brasileira. No livro, a cidade está refletida em Casarão Paulistano, versando encruzilhadas, livramentos e sonhos em meio a uma urbe perfumada de sangue negro. Este poema abre as portas de uma mansão colonial, revelando horrores internos, muquiados nas belezas dos jardins, impregnados nas paredes frias e no chão encerado.

 

(…) A ironia dos barões segue manchando as paredes
e o chão exala suas orgias violentas
(…)
estupros sussurram nos cantos dos quartos
cantos bastardos
para semáforos
favelas
penitenciárias
nutrição da poesia incendiária
(…)
passa um ônibus na avenida paulista
e alguém cochicha:
que bela casa
que maravilha!
E a poesia lá dentro
sai na porrada com os fantasmas do lugar (…)

(Negrhúmos líricos, p.49)

 

A Poesia é fio condutor, sujeito do poema, é quem revela as atrocidades do lugar, situado na manjada avenida paulista, destacando uma casa cheia de poesia e rosas de mentira. A luta da Poesia, nos versos finais, é colocada em oposição a morbidez da casa, onde a beleza da casca atrai a atenção, mas a arte, signo forte de memória e intuição, conflitua com a podridão do porão. A citação da avenida paulista é descrita com as iniciais em negrito, reforçando a sugestão graúda do nome, recurso utilizado na obra de Cuti e reforçado, várias vezes, em Negrhúmus líricos.

Outro poema que rememora São Paulo em Negrhúmus líricos é Paradócil, onde o eu, ao chegar, sente um misto de fragmentação e acolhida, repulsa/harmonia reforçada no neologismo/ironia do título:

Quando chego
o cheiro de são paulo me arregaça as narinas
arde a imo
desperta a pressa
e me atomiza

o carinho que nela reside
recolhe-me os pedaços
e posso respirar
do carbono seu óxido
em paz
sorver o oxigênio
entre pétalas do bem querer
e à margem contemplar
meu sonho tiête.

(Negrhúmus líricos, p.106)

A cidade é mediada pelas sensações e pela violência. Carinho e paz aparecem como complementos de fragmentação e sufoco, refletindo algumas características conhecidas de são paulo. Na margem, o Paradócil está no horizonte recortado por rios, signo fortalecido no último verso, em que meu sonho tiête, pode se referir ao sonho do rio límpido ou a cidade de Tietê, interior do Estado de São Paulo, região de migrantes e reduto do povo negro. O sonho remete também as memórias, vivências e sapiências que forram as maletas dos migrantes em busca de alvoradas na megacidade.

Assim, Negrhúmus líricos, revisita São Paulo e espelha a obra de Cuti na sensibilidade e no sagrado. Seja na intuição, ligada à memória e a Poesia, que (literalmente) sai na mão com a realidade, em Casarão Paulistano, ou pelo olfato aguçado de ardências e saudades no bafo carbônico de Paradócil. Em ambas, o mote da violência e da resistência reforçam um eu-lírico-negro, sobrevivente do racismo cotidiano, onde o Húmus da poesia de Cuti, germinada desde 1978, cultiva a reexistência da vida, e sua arte reinventa os caminhos trilhados entre letras e labutas.

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