Carlos F Moises out.17

 

Para além do interesse pelos livros, pelos textos, o leitor de poesia costuma ter algum fascínio por essas figuras humanas que passaram pela vida colocando-a em palavras. Seres que, de tempos em tempos, publicam e se dedicam a buscar leitores para tudo aquilo que, no geral, as pessoas escondem: suas fragilidades, suas paixões, suas derrotas, seus amores e sonhos impossíveis. Tanto pelo que dizem quanto pela forma como cuidam anos a fio de pequenos livros como se fossem – e são – imensos tesouros, poetas encantam pela espécie de lição ética que vai contida, em muitos casos, na dedicação à poesia.

A partida recente e precoce de Carlos Felipe Moisés (1942-2017) – ainda mais para quem, como eu, teve a honra e o prazer do convívio durante um bom tempo – colocou diante de seus leitores essa constatação de uma falta muito especial. Carlos Felipe vinha há décadas atuando exemplarmente no campo minado da poesia e de suas “tarefas auxiliares” – a crítica, a teoria, a docência, a tradução, a edição, os eventos, a correspondência etc. – e a impressão de todos que acompanhavam sua produção era de que muito mais estava por vir, sempre, dada a vitalidade das ideias e dos versos recentes.

Mais que isso: minha impressão particular era de que, neste momento, com sete décadas de vida e três quartos delas dedicados à poesia, Carlos Felipe havia chegado a um ponto em que a escrita de poesia e a reflexão sobre ela se fundiram num outro nível: deixando aquela mais leve e forte, deixando esta mais precisa e clara.

É à luz desta afirmação que pretendo tratar aqui de Dádiva devolvida: poemas escolhidos (Lumme Editor, 2016), antologia com pouco mais de 100 poemas que Carlos Felipe organizou um ano antes de falecer, sacando de todos os seus livros aqueles textos em que “julga(va) ter acertado a mão”. A obra poética de Carlos Felipe, antes da antologia, encontrava-se nos seguintes livros: A poliflauta (1960), O signo e a aparição (1961), A tarde e o tempo (1964), Carta de marear (1966), Poemas reunidos (1974, que incluía o inédito Urna diurna), Círculo imperfeito (1978), Subsolo (1989), Lição de casa & poemas anteriores (1998, um livro novo seguido da republicação quase integral de todos os seus livros até então), Noite nula (2008) e Disjecta membra (2014).

Quando organizou sua Antologia poética, em 1962, Drummond afirmou ter olhado para os poemas que havia produzido, em quatro décadas até então, principalmente com a preocupação “de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto”. No intuito de fazer a “arrumação” de seus poemas, Drummond separou os poemas por eixos temáticos: o indivíduo, a terra natal, a família, amigos, o choque social, o conhecimento amoroso, a própria poesia, exercícios lúdicos e, por fim, “uma visão, ou tentativa de, da existência”.

Em Dádiva devolvida, Carlos Felipe seguiu o caminho de Drummond e olhou para sua obra em busca dos temas recorrentes, separando os poemas em seções com os seguintes títulos: Natural, Humores, Rascunho, Figuras, Animalia & Al, e Inventário. Ao fugir da ordenação cronológica e agrupar os poemas por tema, como afirmou Antonio Carlos Secchin, “todos os poemas do autor, de certa maneira, se torna(ra)m simultâneos”. Dessa forma de “arrumação”, portanto, resultou não apenas um livro novo, mas também uma renovação do sentido dos poemas que conhecíamos em edições anteriores.

Neste sentido, percebe-se que, nessas antologias, a releitura que o poeta faz de sua própria obra em busca dos temas que unem poemas escritos em momentos diferentes de suas vidas atua não só como uma chave de interpretação, mas também para criar laços novos entre as fases e facetas que os livros vinham revelando até então. Em Carlos Felipe, cada fase nova, cada nova volta que sua voz dava, vinha sempre a partir das tensões que a fase anterior sugeria, como se o motor da criação fosse a reflexão sobre si mesma.

Na grande entrevista que deu ao poeta Ricardo Aleixo anos antes, Carlos Felipe se referia a isso: “a dificuldade que tem sido contrariar minha propensão, que vem de longe, para o mais derramado, para o sentimental. [...] Na fase inicial, em razão das influências recebidas na adolescência, eu achava que poesia só era compatível com austeridade. Como isso corresponde a uma das facetas do meu modo de ser, não vi mal algum em caminhar por aí, nos primeiros anos. Mas como o meu modo de ser compreende outras facetas, a partir de certo momento comecei a me esforçar para que outras formas de vibração, como o humor e a ironia, tivessem ingresso nos poemas. Mas só consigo ir mudando aos poucos. A passagem de uma fase a outra, para mim, precisa ser de dentro para fora: eu não conseguiria mudar radicalmente, para recomeçar em outro diapasão. Ao longo das mudanças, algum lastro deve permanecer, ainda que reduzido ao mínimo essencial. Só espero que esse lastro não desapareça antes de chegar ao mínimo” (publicada em parte no blog Jaguadarte, em janeiro de 2005 e, na íntegra, como posfácio de Noite nula).

Esse poeta que busca sua voz, a cada fase, “de dentro para fora”, que afina as notas novas no diapasão construído pacientemente por décadas, é aquele que vai voltar para sua obra, visando à antologia, certamente com o ouvido atento para os momentos em que essa conversa consigo mesmo se deu de modo mais intenso, mais vivo.

Na entrevista citada, Carlos Felipe já destacava, de sua obra até então, “Mário de Andrade em San Francisco” e “Mais um dia” como poemas que “registram, com fidelidade, o meu sentimento das coisas”. De certo modo, a voz desses poemas, ambos pertencentes a seu livro de 1989, Subsolo, parece ter, de fato, sido a (auto)influência mais forte para a poesia que Carlos Felipe escreveu dali em diante e, também, para as escolhas que fez ao reler toda sua poesia para pensar e montar Dádiva devolvida.

José Paulo Paes, ao resenhar Subsolo, viu que ali estava um poeta que revirava a si próprio, que atacava, sem dó, seus próprios flancos: “Posto assim entre a poliflauta da juventude e a monoflauta da madureza, entre a negação e a afirmação de si, entre a perda de viver e o ganho de sonhar, entre o desencanto de tantos dias e o encanto de mais um dia, Subsolo assume o oxímoro ou paradoxo da vida sob o signo do sempre recomeço, que é, de resto, o próprio signo da poesia” (Folha de S.Paulo, 16/12/1989).

Mário de Andrade em San Francisco talvez seja o poema mais emblemático do acerto de José Paulo Paes quanto à obra de Carlos Felipe, por reunir num giro colossal as principais referências de sua formação literária e existencial. A começar por Mario de Andrade, poeta de sua predileção, que é levado para uma jornada em que encontra Allen Ginsberg, Leadbelly e Sosígenes Costa. E Ginsberg aparece não apenas nominalmente, mas também na própria forma como a imaginação do poema se espraia.

Dedicado a Roberto Piva e Claudio Willer, desde aí já se colocam alguns indícios do desafio que Carlos Felipe enfrenta no poema: um leitor dos mais dedicados de Mário de Andrade, que o tem também como grande influência nas fases iniciais de sua poesia, mas igualmente forjado pelas flexões da contracultura na poesia brasileira dos anos 1960, vai a San Francisco em busca de uma São Paulo “na voz de Mário, teu poeta”, fazendo fundir, nos versos livres, a geografia da cidade norte-americana à da capital paulista.

O resultado desse “sono em delírio” é um poema cosmopolita como, de fato, era a figura de Carlos Felipe (que viveu nos EUA e na Europa durante diversos períodos), arrastando o paulistaníssimo Mario de Andrade pelas espirais do tempo-espaço da poesia e da vida, com o assombro do desenraizamento, como na seguinte passagem:

[...] : como teu coração paulistano, Mário,
que um dia você enterrou no Pátio do Colégio
e ali estava, quente e vivo,
entre as ruínas da O’Farrell quase esquina com a Market,
dedilhando um blues sem esperança
: como tua língua,
que você um dia guardou no alto do Ipiranga,
para cantar a liberdade (saudade)
mas esta já não foi possível encontrar mais, não.
Por isso também nos perdemos e nos achamos
– comoção de nossas vidas! [...]

É este poeta, entre a paixão paulistana e a vivência do estrangeiro, entre a força do modernismo luso-brasileiro (Pessoa pesava-lhe tanto quanto Mário) e a poesia incendiária dos beats, que vai olhar em 2016 para o conjunto de sua obra e sacar dali vários poemas que, em níveis diferentes de elaboração, demonstram como sua voz desde sempre resultou das tensões que o levaram e mantiveram dedicado à poesia por décadas.

Num belo artigo sobre Noite nula, Reynaldo Damazio arrisca definir o combustível da aventura poética de Carlos Felipe: “No íntimo de toda reflexão residem indagações que dizem respeito ao sentido do poético como possibilidade de entendimento do mundo; de construção da identidade a partir de novos parâmetros (dialógicos, lúdicos, éticos); de revelação do inesperado, do renovador, nas estruturas calcificadas do cotidiano; da rebelião permanente contra os esquematismos, as burocracias de toda ordem, que tentam aprisionar a liberdade criativa de ideias e comportamentos em papéis pré-estabelecidos num teatro de horrores” (publicado na revista Poesia Sempre, nº 32, ano 16, 2009).

Não é por acaso, neste sentido, que Carlos Felipe destacou sua predileção também por Mais um dia, outro poema longo, com versos mais curtos e ritmo mais tenso, mas com o mesmo tom revolto contra a rotina que marca sua busca por uma vida-poesia que faça sentido, que se incendeie, que seja digna das forças que carrega:

[...] um novo dia igual
aos dez mil novecentos e cinquenta
já percorridos,
gastos à mesa dos bares,
a acumular nas retinas
a imagem velha dos insetos
que roem a carcaça do dia,
jogada na calçada
[...]
Dez mil
novecentos e cinquenta dias
consumidos à distância,
no silêncio do quarto
onde rodopia
há trinta anos
a mesma velha inútil melodia.
[...]
a gota perdida
do ódio por tudo
e por nada : ódio
só afago, inofensivo,
guardado no fogo
brando em que me consumo
há dez mil
novecentos e cinquenta dias. [...]

Num dos aforismos sobre poesia incluídos em Disjecta membra, Carlos Felipe anota: “Um tempo ou uma cultura francamente favoráveis à poesia? Então a poesia já não será necessária, não fará falta alguma.” Essa ideia de que a poesia somente se justifica a contrapelo, em atrito com seu tempo e com a cultura em que se insere, talvez ajude a entender suas escolhas e, de alguma maneira, a atravessar a formidável coleção de poemas de Dádiva devolvida. E não se deve concluir daí que a poesia se rende, inútil, ou se compraz em viver em ambiente desfavorável. Pelo contrário, justamente porque a vida segue soterrada sob os milhares de dias, que são apenas “mais um”, é que a poesia deve existir, insistir, persistir. Carlos Felipe, como poucos, soube mostrar como se faz.

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