O que dizem as autobiografias trans, em especial as primeiras, pioneiras, escritas ainda nos anos 1980? Talvez devêssemos começar a responder à pergunta analisando a forma como à época foram lidas, com atenção sobretudo para o que os próprios livros que as trazem dizem sobre o que elas dizem. Partindo dessa perspectiva, assumem significado especial a capa e folha de rosto da primeiríssima dessas obras, A queda para o alto (Vozes, 1982), por trazerem como indicação de autoria apenas “Herzer” e não o nome completo do autor, que só se dará a conhecer na frase que abre a contracapa:
“Aos 20 anos de idade (NOME DE REGISTRO) Herzer, ou Anderson Herzer, como ela passou a se autodenominar depois de assumir uma identidade masculina, encontrou na morte o fim de seus dramas”.
A rasura do que vai entre colchetes na citação deve-se ao fato de que a informação, além de ser desnecessária, também nos violentar, o que não impede que esse dado siga exercendo fascínio em quem não é nós. Para nós, esse dado é um fantasma, palavra sempre lembrada quando nos querem ferir, acuar: qual o seu nome de verdade, o nome que diz quem você é? Anderson, no caso, mas permitir que ele se chame assim pode pôr todo um sistema de nomeação em xeque. O poder de renomear-se é o poder de romper com a norma, em especial quando esse re-nome desdiz o gênero que, com base em seu genital de origem (“de origem”, pois lembremo-nos sempre das cada vez mais comuns cirurgias de redesignação sexual), lhe impuseram. Poder demais para uma pessoa só, e é no intuito de inviabilizá-lo que vemos, já nessa primeira frase, escancarar-se o nome de registro do autor.
Narrativas trans atiçam a curiosidade há tempos, vide o frisson causado por nomes como Lili Elbe, Christine Jorgensen, Roberta Close, mas é necessário neutralizá-las quando dadas a conhecer. No caso de Herzer, isso operou-se em três níveis dentro do próprio livro que traz seu relato. O primeiro, pelo apagamento de qualquer prenome na capa e folha de rosto (o que não impediu que a autoria do livro fosse, por anos, atribuída ao nome feminino acima rasurado, como se vê no próprio prefácio que Rose Marie Muraro escreveu para a autobiografia de Loris Ádreon, Meu corpo, minha prisão (1985), obra discutida adiante).O segundo, pela imposição na contracapa de um nome e gênero incondizentes com os que o autor assumiu ao longo de todo o relato e usou para assinar o texto. Ele se reconhece e é reconhecido por seus pares como Anderson, nome que só descobriu poder ser depois de preso na FEBEM, esse não lugar onde passou a adolescência quase toda. Mas é preciso que o próprio livro que encampa o relato desdiga essa possibilidade (nessas sutilezas, flagra-se a tentativa de garantir que a obra seja lida como fruto da loucura).
O terceiro ponto é a explicação. Nos prefácios, dois dos maiores defensores do jovem, o então deputado Eduardo Suplicy e a presidenta do Movimento em Defesa do Menor Lia Junqueira, para além de estipularem o tratamento no feminino como regra (Suplicy chega mesmo a dizer que o fazia a despeito dos pedidos do autor), ainda resolvem trazer um relato extra, ausente da autobiografia, relato supostamente contado a eles pelo próprio Herzer e que, ambos acreditam, “explicaria” a sua transição (p.17): “Bigode (apelido de um suposto namorado de Anderson) morreu no asfalto, num acidente de moto. [NOME DE REGISTRO], que agora conhecia o amor, não podia deixar Bigode morrer. Assim, num passe mágico, Bigode continuou vivendo através de [NOME DE REGISTRO]”.
Era necessário uma justificativa, explicar o que houve com esse indivíduo que, criado para ser mulher, passava a se entender e a querer ser reconhecido como homem, e eis que então Junqueira e Suplicy, no esforço de manter suas próprias identidades a salvo, se valem de uma narrativa que, se de fato existiu, Herzer com todo o direito decidiu ocultar (“Provavelmente porque preferia não ter mais a lembrança de se sentir mulher, optou por não contar esse episódio em seu livro”, diz Suplicy à página 11).
Perceba-se, desde já, que os incômodos de Junqueira e Suplicy, manifestos na necessidade de encontrarem uma “explicação”, esse “passe mágico”, assim como os dos guardas e do diretor da FEBEM, que a todo momento sentiam a masculinidade de Anderson como ameaça, violentando-o e gritando para ele coisas como “machão sem saco, machão sou eu que tenho duas bolas” (p.76), dizem mais sobre as angústias deles frente a essas novas narrativas de gênero, do que efetivamente sobre o jovem trans. Esses incômodos, contudo, dizem também de um mundo onde ele não poderia existir, um mundo assustado por saber que a mera existência de Herzer, se permitida, obrigaria as regras que antes valiam serem revistas. Nesse sentido, não me parece absurdo conjecturar que o suicídio a que ele recorreu meses antes da publicação do livro deveu-se, ao menos em parte, à constatação de que o só lugar onde poderia ser Anderson era entre pares, no presídio.
Seu livro nasce como denúncia das violações cometidas contra menores em situação de cárcere, mas nas entrelinhas e nos paratextos fica evidente que sua vocação era, junto a essa denúncia, escancarar o caráter compulsório da cisgeneridade, a guerra travada contra qualquer outra narrativa de gênero. Primeira autobiografia trans do Brasil, ainda que o autor sequer conhecesse essa nomenclatura, A queda para o alto abriu caminho para as duas que viriam a seguir, essas já muito mais conscientes do que representavam: Erro de pessoa - Joana ou João? (Record, 1984), de João W. Nery, e Meu corpo, minha prisão - autobiografia de um transexual (Marco Zero, 1985), de Loris Ádreon.
Uma coincidência salta aos olhos já nas duas capas, o fato de “transexual” aparecer tanto no subtítulo de Meu corpo, minha prisão quanto no texto de apresentação de Erro de pessoa: “O depoimento de um transexual brasileiro que, nascido mulher, finalmente se realizou como homem”. No entanto, a palavra vir acompanhada de artigo masculino em ambos os casos, ainda que Nery seja um homem trans e Ádreon uma mulher trans, é bastante indicativo da situação distinta em que cada um desses sujeitos podia enunciar a própria condição.
Nery foi pioneiro em pensar a transgeneridade e o direito de se afirmar não só trans, mas homem. É filho da classe média carioca, psicólogo de formação, com pai perseguido pela ditadura e convívio desde a infância com importantes intelectuais, razões que colaboraram para que ele travasse contato precoce com as recém-iniciadas discussões das ciências psi sobre questões trans e também com as cirurgias (à época clandestinas, ele uma das primeiras cobaias) que permitiriam a seu corpo ser lido como masculino.
Como reflexo dessa consciência, vemos a marcação de masculino presente não só na palavra “transexual”, mas também em “nascido mulher”, marcações que servem para afirmar que o gênero do indivíduo trans, a verdade sobre o que somos, deve ser definido não pela designação recebida ao nascer, mas por aquela através da qual nos reconhecemos. “Nascido mulher”, aliás, talvez se deva mais a uma decisão editorial, tentativa de explicitar o livro a um leitor com dificuldades em conceber outra forma de existir que não a cisgênera, do que ao discurso do próprio Nery, que na “Nota do autor” diz, para explicar o que é, “ter nascido homem, aprisionado num corpo de mulher”.
As narrativas capazes de explicar o que somos estavam começando a se inventar, mas ainda muito contaminadas pela perspectiva cisgênera, o que se percebe em “corpo de mulher” (ideia hoje tão criticada pelo movimento trans e pelo feminista), na ideia de nascer no corpo errado (forma de responsabilizar o corpo pelas violências que sofremos, não a sociedade), mas também na de “transexual feminino” que Nery, nessa mesma nota, usa para referir-se aos homens trans. Na republicação da obra em 2011, como Viagem solitária – memórias de um transexual 30 anos depois, o termo apresentado já na contracapa seria agora “transexual masculino” – o ponto de vista trans dando cada vez mais as caras na discussão.
Loris Ádreon, por sua vez, teve mais elementos para pensar sua condição trans do que Herzer, a começar pelo fato de conhecer a palavra “transexual” e, por meio de notícias de jornal, a cirurgia pioneira feita por Christine Jorgensen. Mas acabou, como Herzer, vítima de um projeto editorial transfóbico, cissexista.
O primeiro ponto que chama a atenção é, já no prefácio, a pergunta feita por Rose Marie Muraro, organizadora do livro e pessoa que também teve papel decisivo na publicação de Herzer, para instigar Loris, à beira do suicídio, a escrever (p.5): “Por que em vez de se matar você não escreve sua história?” A pergunta é irresponsável e cruel por pressupor que se tratasse de uma simples questão de escolha, mas surtiu efeito, e é interessante ver o que leram nesse relato não só Muraro, mas as outras três figuras convidadas por ela para comentar a obra.
Muraro, no prefácio, assume o assombro que sentiu ao topar com um texto que apresenta “um estilo ginasiano”, mais parecendo “uma fotonovela cheia de chavões”, e que, no entanto, traz um conteúdo “profundamente explosivo”. Assombro similar ao que experimentou quando viu Loris a primeira vez (p.5): “Quando o vi pela primeira vez, com os primeiros rascunhos deste livro, confesso que fiquei com medo. À minha frente estava um ser indefinido, nem homem nem mulher, ambíguo por dentro e por fora”.
Muraro a trata no masculino, forma de proteger-se de qualquer identificação (o vanguardismo de Nery, que não pede licença para se afirmar homem, fica evidente quando o confrontamos com as outras obras), mas percebam a palavra medo. Há algo de angustiante em deparar-se com pessoas trans, algo que soa exagerado ou fora de lugar, algo que parece indefinível e que, talvez justamente por isso, desestabiliza. Mas essa desestabilização é, ao menos em parte, entendida por Muraro como positiva, o que a leva a concluir que “Lorys (sic) como mulher tem muito a dizer do mundo dos homens e, como homem, do mundo das mulheres” (p.8).
Distinta é a posição adotada pelos demais nomes. Fábio Lacombe traz a lenda de Pigmalião, rei que, tendo “horror às mulheres”, esculpiu “a estátua de uma mulher tão formosa, pela qual se apaixonou perdidamente e acabou obtendo dos deuses que se tornasse viva e pudesse desposá-lo” (p.137), para pensar o caso de Loris, com a diferença de que agora seria esculpida “em seu próprio corpo a imagem da mulher” (p.138). Já Herbert Daniel vê importância no livro por Loris encarnar “uma das formas mais frequentes e oprimidas de vivência homossexual (...) vivência que recusa a homossexualidade, por se tratar de um desvio incompreensível para a dualidade sexual” e decreta que “a única mulher que pode ser” é “a fêmea abstrata do macho real” (p.136, itálico do autor).
Bernadette Lyra vai além ao demonstrar seu desprezo pelo que chama de “melodrama circense, com pitadas de telenovela pornô, ambientado entre selvas e igarapés” (p.131). Loris passou parte da vida em Manaus e no interior do Amazonas, o que faz com que a ambientação do relato seja essa, mas estranha o texto poder ser entendido desta forma, quando praticamente o que há ali são denúncias de estupro.
A escolha vocabular para caracterizar a obra diz muito dos pontos de partida da leitura de Lyra e do mal-estar que sentiu com a compreensão de Ádreon como mulher. Para a comentadora, “a palavra do texto resulta contraditória na medida em que, se fazendo passar pela fala da fêmea é, num jogo de inversos, uma fala do macho” (p.133), “transexualidade” se tornando “a palavra mágica”, o “abracadabra” feito por Loris para resolver a questão.
Três textos pioneiros, três autores trans que, ao escrever da maneira como vivem a própria identidade, da recusa em aceitar que o gênero se define pelo genital com que nasceram, convidam a pessoa que não é trans a ter também que pensar sobre si, sobre o que houve para que ela fosse mulher, ele homem. A reação que receberam deixa evidente o quanto é mais fácil negar sutil ou descaradamente a legitimidade dessas identificações do que ter que investigar a própria e, nisso, a pergunta de Muraro, “suicídio ou autobiografia?”, segue dizendo das formas como fazemos sentido.