A poeta polonesa Wisława Szymborska (1923-2012) ficou conhecida por seus versos que entretecem o bom humor com a trágica condição humana. Poucos sabem que ao lado de sua poesia “séria” a poeta era também dada a brincadeiras de todo tipo, entre elas as brincadeiras poéticas. Enquanto ainda vivia, vieram a lume Rymowanki dla dużych dzieci (Riminhas para crianças grandes) nas quais, ao lado de limeriques que criava desde os anos 1950, apresentava também ao público os novos gêneros poéticos por ela inventados e praticados. Entre esses devemos mencionar: moscovinas (moskaliki), dasvodcas (odwódki), melhoríadas (lepieje), escutações (podsłuchańce) e altruitinhas (altruitki).
Os poemas eram criados pela poeta como uma brincadeira literária, exercitada só ou num grupo de amigos. O gosto de Szymborska pelas brincadeiras absurdas era patente e lendário. Sabe-se, por exemplo, das cartas de amor para uma amiga escritas pela poeta fingindo-se de guarda do estacionamento perto do qual as duas costumavam passear durante as férias. Os encontros na casa da autora – nos quais os convidados, além de fazer loterias para ganhar objetos cafonas, poderiam ser recebidos com uma sopa em pó que era servida ao lado dos pratos nos quais a anfitriã despejava água quente – também fazem parte das lendas literárias de Cracóvia.
Nas brincadeiras literárias, Szymborska podia contar com grandes parceiros. Além dos literatos que de vez em quando participavam delas, devem ser mencionados três homens próximos a ela: Adam Włodek, poeta e seu primeiro marido, Kornel Filipowicz, escritor e seu companheiro de vida e Michał Rusinek, que foi seu secretário depois da “catástrofe de Estocolmo”, como a poeta se referia ao fato de ter sido laureada com o Prêmio Nobel. Este último foi chamado por ela de “meu primeiro secretário”, numa clara alusão aos primeiros secretários dos partidos comunistas e ao fato de ter sido o primeiro (e o único) a lhe secretariar. Ele foi o autor dos nomes dos gêneros poéticos dasvodcas e melhoríadas e coautor (junto com Joanna Szczęsna) do nome moscovinas. Podemos supor que a ele e a seu apreço pelas brincadeiras e absurdos devemos o convencimento da poeta de que essas obras mereciam ser publicadas. Rusinek, além de parceiro de Szymborska do limerique sobre a “certa Mônica de Washington”, foi também autor de várias brincadeiras literárias. Numa delas, como presente a ela, dirige-se à poeta fazendo alusão a um de seus poemas, Elogio dos sonhos:
Se com um quadro de Vermeer postada face a face
O lado direito da tela atenta examinasse
Uma inscrição veria que nela se encontrava
Dizendo: “Nos meus sonhos escrevo como Wisława”.
É a Rusinek também que devemos a edição de suas outras brincadeiras poéticas no livro Błysk rewolwru (O brilho do revólvi) e o registro da última coisa escrita pela poeta, já num respirador artificial, um pouco antes da morte. Curiosamente, na brincadeira, como em toda sua obra, o bom humor acompanha a consciência da tragicidade da vida:
Os holandeses são uma nação sabida
Quando cessa o respiramento natural,
Sabem o que fazer da vida!
As dasvodcas eram poeminhas de uma linha, baseados no dito polonês: od wódki, rozum krótki, que poderia ser traduzido sem a rima como “da vodca, a mente fica curta”. Fundamentando-se no ritmo do provérbio e sua absurdidade, que tenta dimensionar fisicamente algo tão abstrato como a mente, Szymborska começou a criar provérbios próprios, com nomes de vários tipos de bebidas alcoólicas, marcados pela brevidade, disparate e, acima de tudo, bom humor.
As moscovinas, por sua vez, eram baseadas numa versão da letra da canção independentista Polonez Kościuszki, de 1792, refeita pelo poeta e soldado Rajnold Suchodolski no início do século XIX. A versão de Suchodolski marcada pelo páthos nacionalista e o uso que foi feito dela já tinha sido motivo de sátira pelo poeta Konstanty Ildefons Gałczyński (por pouco tempo vizinho de Szymborska) e por Adam Włodek na Casa dos Literatos, uma espécie de colcoz literário em Cracóvia. Talvez tenha sido seu conhecido senso do absurdo conjugado com a veia lírica que inspiraram o jovem casal que, a partir dos versos: “Quem disser que os moscovitas/ dos polacos são irmãos/ irá pra forca maldita/ no claustro de Santo Adão”, criou o gênero poético que zombava do nacionalismo ufanista polonês. As primeiras duas linhas devem conter o início de uma ameaça a quem ousar afirmar que alguma nação é de alguma maneira melhor que a polonesa ou pode ser com ela igualada. A terceira linha concretiza a ameaça, prevendo o triste destino de tal sacrílego, o qual se dará no lugar determinado pela quarta linha, geralmente relacionado com um lugar eclesiástico, uma vez que, como todos sabem, os poloneses são um povo muito católico. As rimas são alternadas, seguindo a fórmula ABAB.
As melhoríadas nasceram do encontro da poeta com “um menu de uma estalagem na periferia da cidade, onde ao lado do nome da sopa alguém escreveu, ‘horrível’, com mão trêmula”, como relata a autora em seu livro. O dever poético de criar uma poesia que, a serviço da sociedade, poderia avisar os outros sobre os perigos ocultos nos restaurantes e hotéis foi a motivação para o surgimento do gênero.
As altruitinhas, por sua vez, foram inspiradas num bordão da propaganda comunista dos anos 1950 que inspirava os clientes que conviviam com a escassez diária de produtos básicos a consumi-los, apelando para seu altruísmo. O bordão que inspirou a poeta: “Poupando do trabalho a sua senhora,/ macarrão pronto adquira agora” não apenas induzia ao consumo do produto, que nem sempre era fácil de encontrar, mas antes de tudo apelava à bondade inata de todos os seres humanos e por isso mereceu sua continuação em forma de novo gênero lírico. Que “a senhora” teria que trocar o tempo de preparo do macarrão pelo tempo de esperar na fila para, contando com a boa sorte, poder adquiri-lo, pouco importava às autoridades que, incentivando o altruísmo dos maridos, esqueciam das realidades “das senhoras” e do mercado.
As escutações são uma forma de prosa poética baseada naquilo que a poeta ouvia andando pela cidade, no bonde, na fila, no elevador, no parque, no café e em mil outros lugares. São pedaços de conversas alheias captadas no seu cotidiano e registradas.
Por fim, os limeriques não são, obviamente, um gênero inventado por Szymborska, mas um que ela praticou criativamente ao longo de toda a vida, principalmente nas viagens, inspirando-se nos nomes dos lugares pelos quais estava passando ao longo do caminho. É claro que às vezes as viagens só aconteciam passando o dedo pelo mapa. O atlas geográfico foi um grande aliado da obra limeriquiana de Szymborska, que dizia que da casa na qual não há um atlas geográfico, é preciso mudar-se com a máxima urgência possível.
Os poeminhas que acompanham este artigo, traduzidos por mim em dueto com Eneida Favre, são parte do livro previsto pela editora Âyiné para o segundo semestre que, além de apresentar uma seleta de obras não sérias de Szymborska, conterá uma coletânea de colagens da poeta. As colagens fazem parte da veia criativa não oficial da autora e foram feitas ao longo de 40 anos como postais-presentes para os amigos dela. Assim como os poeminhas, os postais primam pelo humor absurdo e associações inusitadas. Na união de dois elementos estranhos entre si, os dois perdem seu sentido inicial e chamam a atenção para aquilo que acontece entre eles, criando um novo e inesperado sentido.
O início das colagens se deu provavelmente como uma alternativa à falta de postais bonitos na Polônia comunista no fim dos anos 1960 e continuou como uma tradição até a morte da poeta. Relatam que durante, aproximadamente, um mês por ano, geralmente novembro, Szymborska anunciava que não iria receber visitas, pois estava brincando de artista. O chão e as superfícies do minúsculo apartamento em que viveu por muito tempo (até poder mudar para um mais confortável depois de ganhar o Nobel) virava um carpete de velhos jornais e catálogos dos quais a poeta recortava os elementos para as colagens. As colagens eram personalizadas, pois eram postais enviados para pessoas específicas. Um tipo de correspondência e troca de afeto originais e criativos que exploravam a vocação de artista da palavra e artista plástica, pois poucos sabem que a estreia de Szymborska em livro foi como ilustradora de um manual de inglês e de um livro infantil.
O grande recado dessa obra da poeta que soube falar das agruras da vida com um sorriso, por vezes irônico, por vezes triste, por vezes cálido, é a necessidade de mantermos viva a nossa criança interna, exercendo a arte de brincar de fazer arte. Fazendo isso, por um lado, tratamos seriamente as coisas não sérias, respeitando as regras de jogos e brincadeiras; por outro, aliviamos dessa maneira a inevitável seriedade da brincadeira chamada vida.
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Altruitinhas
Prolongue a curta vida do ratinho.
Vá lá no canto e coma o chumbinho.
Para dar folga aos nossos pobres deputados,
cuspa ódio e ameace pra tudo quanto é lado.
Dasvodcas
Da cerveja, o usuário cacareja.
Da pinga, a barriga te xinga.
Melhoríadas
Melhor ter a sogra vesga em seu lar
que ovo com maionese aqui devorar.
É melhor um fim amargo
que pedir aqui aspargos.
Limeriques
Certa Mônica de Washington
não se atinha ao bom-tom
e por isso no salão oval
atuou no sentido oral
acompanhada de bom som
Moscovinas
Quem afirmar que um ianque
fala a língua polonesa
sofrerá um fado punk
na praça de Santa Chiesa
Escutações
No banco de jardim
No começo eu gostava de todas as mulheres: gordas, magras, velhas, novas, louras, morenas. Depois comecei a ficar um pouco mais seletivo – melhor as jovens, melhor as louras do que as de cabelos escuros e melhor ainda as de cabelos castanhos, magras, mas não esqueléticas. Depois disso, comecei a apreciar lâmpadas à meia-luz, música baixinha, roupas íntimas transparentes e dois cálices de um bom vinho na mesinha. Eu pensei que o meu bom gosto estava cada vez mais apurado, mas era o início da impotência...