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Quando li a notícia sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro, o primeiro que me ocorreu foi como os generais brasileiros têm nomes típicos de generais brasileiros: Braga Netto, Villas-Bôas, Costa e Silva, Castelo Branco etc. É uma impressão, claro, mas me deixou com um saborzinho de certeza cósmica na boca, logo depois das ânsias de vômito – a de que o Brasil tem mania de militarismo e uma volúpia por mãos de ferro. Somos tarados por coturnos.

A medida é inédita, mas o Rio está acostumado à presença das Forças Armadas. Vira e mexe soldados e blindados aparecem, mais para dar a impressão de que algo está sendo feito do que para resolver qualquer coisa. Bastam as declarações do interventor Braga Netto para entender que o objetivo é simplório: fazer com que a população “perceba a sensação de segurança”. A intervenção foi declarada sem planejamento. O próprio Braga Netto foi pego de surpresa.

A história brasileira é cheia dessas surpresinhas. O golpe de 1964 foi precipitado pelo afobamento do general Mourão Filho, que, dias antes do planejado, deu para descer de Juiz de Fora com suas tropas para ocupar o Rio de Janeiro. Ou vai, ou racha. Acabou que foi – e rachou a até hoje frágil democracia nacional. O mesmo general redigiu o infame Plano Cohen, que serviu como justificativa para a instauração do Estado Novo. Detalhe: o documento era um estudo, a simulação de uma hipotética tomada de poder pelos comunistas.

Ler sobre a ditadura militar, da monumental coleção de Elio Gaspari até as próprias memórias de Mourão Filho, nos coloca diante de uma incômoda verdade. Aqueles que tomaram o poder – assim como os que foram depostos – eram, em sua esmagadora maioria, homens medíocres. Gente mediana: burra, mas esperta o suficiente para dar golpes; não propriamente covardes, mas acostumados a “contornar os caminhos da coragem” (como Gaspari caracteriza João Goulart). Nunca houve um Aníbal brasileiro, um Alexandre, um Júlio César. Napoleões, aqui, só nos hospícios.

Nossa maior guerra se deu contra um país minúsculo, o Paraguai – e contávamos com a ajuda de outras duas nações, Uruguai e Argentina. Dificilmente um triunfo à la Termópilas. Os conflitos internos usualmente contrapuseram batalhões bem- armados a insurgentes maltrapilhos. E é a figura de Antônio Conselheiro que nos vem à mente quando lembramos Canudos. Conselheiro que podia ser tudo, menos medíocre. Nosso fetiche por botas e fardas é bem esquisito, portanto. Mas quem sou eu para julgar perversões alheias.

Foi Marques Rebelo quem melhor pôs em cena a mediocridade e o improviso dos militares brasileiros, em seu pequeno romance O simples coronel Madureira. Publicado em 1967, antes do período mais sombrio e sanguinolento da ditadura, não sofreu censura nem porão, apesar de ser uma sátira bem evidente do governo.

O coronel reformado Jonas Madureira da Silva Filho, conhecido na intimidade como “Madu”, deixava correr seus calmos anos de aposentaria no subúrbio carioca, quando o Alto Comando Revolucionário do Exército o convoca para servir à nação. Surpresa! Patriota, medíocre e com um pouco de preguiça, Madureira aceita e é nomeado interventor no Segal, o Serviço Geral de Abastecimento de Lubrificantes, cujo nome, carregado de conotações sexuais, é tanto uma referência ao golpe quanto à paixonite que Madu nutrirá por uma secretária. São lubrificadas também as brechas por onde se metem aspones com pistolão e sem competência. Lubrificadas, as línguas que proferem lugares-comuns sobre a moral e a Revolução.

Madureira é um medíocre com boas intenções, mas o inferno da repartição lhe é completamente misterioso. Não sabe fazer nada, não entende os jogos políticos, nunca é promovido. Em determinado momento, sente uma faísca de ambição, mas logo desiste do alpinismo burocrático. É um imbecil simpático, resignado, que sequer chega a ter que provar se é ou não covarde. Porém, é de Madus que se faz uma ditadura. Palavras vazias, mesquinharia, moralismo barato.

Marques Rebelo não é desconhecido, embora não tenha o reconhecimento que merece. Trata-se de um dos maiores expoentes de uma linhagem da qual fazem parte Machado de Assis, Lima Barreto e Manuel Antônio de Almeida – escritores que poderíamos chamar de “autores de costumes”, cada qual ao seu jeito, mas sempre atentos à vocação primeira do romance, que é a inovação formal. Os três volumes de O espelho partido o comprovam, o fragmentado Marafa e o debordiano avant la lettre A estrela sobe também.

O simples coronel Madureira, menos ambicioso formalmente, foi uma oportunidade de satirizar a ditadura, que ainda engatinhava. Por ter saído antes dos maiores terrores, é geralmente considerado “inocente”. Entretanto, é justamente essa “inocência” que, hoje, nos alerta para o que pode vir por aí. A sátira tem como esperança meio boba impedir o surgimento do insatirizável – o horror. Sem que Rebelo soubesse, o horror estava próximo, e viria pelas mãos dos mesmos homens medíocres que seu romance ridicularizava.

 

* Victor Heringer (1988-2018), escritor e poeta, autor de O amor dos homens avulsos e Glória

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