Rubem Fonseca mai.18 HanaLuzia

 

Escrever nos dias de hoje sobre Rubem Fonseca é enfrentar totens e tabus. Parece não haver formas de mediação; ou se ama ou se odeia o escritor que revolucionou a literatura brasileira nos anos 1960/1970 e continua influenciando, mesmo que estes não saibam, as novas gerações que mergulham na violência urbana, no gênero policial, na fauna de personagens marginais e exóticos e na representação metaficcional da figura do escritor. É preciso depor o pai-escritor. Evento que se torna mais difícil quando um dos temas caros a Rubem Fonseca é a discussão sobre as diversas personas do escritor no tempo presente e como estas se articulam ao fetiche literário a ao fetiche mercadológico. 

Nesse quadro, Rubem Fonseca tem o mérito de ser o primeiro autor contemporâneo a sistematicamente ficcionalizar as relações entre o livro-mercadoria, o literário e a máscara autoral, muitas vezes criando dobradiças entre a figura do escritor e do detetive/assassino. Assim, este ensaio investiga alguns dos diversos personagens escritores de Rubem Fonseca, e como o próprio autor termina por se tornar um personagem de si mesmo, tanto na ficção como no imaginário que contamina à vida literária.

Em A reinvenção do fetiche literário, Italo Moriconi sintetiza: “O fetiche é o literário e sua morte e ressurreição cíclicas são a definição mesma de história literária”. Penso nessa frase e na curta vida – apenas alguns parágrafos – do personagem secundário João, do conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. João será o mentor de Augusto Epifânio, o escritor andarilho e sem livros publicados, personagem instransponível para se entender o lugar da literatura na obra de Rubem Fonseca.

A Augusto Epifânio, João ensina que havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de 600 páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos.

A morte de João não é mais que a morte definitiva do gênio romântico, o mito do escritor fracassado. Morrer de cansaço e tristeza apontam para um mundo que não existe mais, em que escritores como João e Augusto Epifânio são sujeitos à margem, crendo na literatura em seu estado de incorruptibilidade. O escritor cuja voz é apropriada pelo narrador e tem sua morte, bem como o fim de seu livro, narrada de forma desdramatizada, nada deixa como legado, não se inscreve na história da literatura. Serve à arte entendida aqui como um trabalho obstinado, diário, silencioso, fora do tempo, ou seja, fora das relações do capital. João e Epifânio, cegos pelo desejo de não conspurcar a literatura, não enxergam o quanto a idolatria por uma literatura purificada é o outro lado da moeda da mercadoria como fetiche, como definida por Marx.
Retorno a Moriconi:

“Tudo isso mudou. As sucessivas levas de novos escritores surgidas nos últimos anos, com algumas exceções, não têm estado nem um pouco interessadas em desconstruir o signo literário ou questionar convenções de qualquer tipo, até porque esse questionamento já se tornara ele próprio convencional e repetitivo. Elas têm se mostrado interessadas em recuperar e praticar o valor positivo do fetiche literário enquanto algo pragmático”.

Acrescento uma volta ao parafuso, em companhia agora do personagem John Landers/Petter Winner, do conto Romance negro. De forma programática, alguns escritores das novas gerações levam a sério o jogo das intertextualidades (que são cifras restritas a certos grupos de leitores), oscilando entre referências à cultura pop e outras que evidenciam o caráter cultivado do ficcionista – ou seja, tudo que se une pelo signo de uma pretensa pauta de referências fragmentárias, casuais, mas que, ao mesmo tempo, evidenciam o caráter “cultivado” do autor em procedimentos estéticos típicos da pós-modernidade. Esse jogo mais reforça a persona do escritor do que abala propriamente o estatuto do literário. E, no entanto, esse ficcionista deverá cumprir as mesmas redes de obrigação de quem faz best-sellers.

Na dobradiça Landers/Winner, como já foi sacralizado pela crítica literária, o escritor anônimo se debate entre furar o cerco do mercado editorial, bem mais flexível em nossos dias, e torna-se presa do aparato de editores, feiras, entrevistas, críticos etc. Landers assassina Winner. No caso, mata o irmão, numa virada tragicômica própria de Rubem Fonseca. Máscara da máscara que não pertence mais a si mesmo, mas ao mercado. Como sentencia Vera Follain de Figueiredo: “O texto é o assassino: o assassino do autor, porque abarcou toda sua realidade”.

Devorado pela grife Landers e pelo duplo fetiche literário-mercadológico, Winner só pode existir como simulacro. Pelo assassinato, transformou a si mesmo em máscara autoral e objeto mercadológico. O crime perfeito é a impossibilidade que sua identidade seja revelada.

Como em Romance negro, a crítica literária tende hoje a desaparecer desse novo arranjo. Enquanto, escritores como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna incluem em seus textos a figura do editor como um antagonista, nos novos modelos de escritor as relações com os diversos atores do campo literário – editores, curadores, antologistas, seguidores anônimos de seus perfis, jornalistas, organizadores de feiras e festivais, agentes literários, júris de bolsas de residência, prêmios, traduções – são contatos e etapas tão ou mais significativas para a repercussão de sua obra – ou seria do próprio autor? – do que a escuta da crítica especializada. Separados da crítica, mercado, autor e fãs poderiam enfim viver em adoração uns aos outros? E não é sintomático que seja um autor como Rubem Fonseca, consagrado, porém recluso e sem perfis nas redes, que venha recebendo críticas tão virulentas pelos jornais?

O trecho inicial de Buffo & Spallanzani, publicado em 1985, evoca a discussão sobre literatura e trabalho e coloca dois modelos de escrita contrapostos. Gustavo Flavio, personagem emblemático de Fonseca, escritor de dezenas de livros, relata um pesadelo recorrente a sua parceira, Minolta. No sonho, Tolstói está diante do escritor e diz, em russo, “para escrever Guerra e paz fiz este gesto 200 mil vezes”. O gesto é estender a mão e molhar a pena no tinteiro, instrumento de trabalho escritor, e tornar a escrever. Em tom ameaçador, o Tolstói do pesadelo de Gustavo Flavio continua:

“Anda, agora é tua vez.

Perpassa, por mim, uma sensação aterradora, a certeza de que não conseguirei estender a mão centenas de milhares de vezes para molhar aquela pena no tinteiro e encher as páginas vazias... Então me vem a convicção de que morrerei antes de realizar esse esforço sobre-humano”.

A grandeza literária só pode ser alcançada pelo trabalho árduo, pelo “esforço sobre-humano” que se contrapõe à produção em série de Gustavo Flavio. Ao revelar num pesadelo o modo de trabalho prosaico de um escritor que mudou os rumos da literatura, Rubem Fonseca desfetichiza o literário. Escrever é trabalhar. Duzentas mil vezes é o montante da força de trabalho aplicada à obra. Ao mesmo tempo, Gustavo Flavio, máscara de Ivan Canabrava, revela a incapacidade da repetição do gesto de trabalho em tempos em que a mercadoria-livro já sai da fábrica/editora cada vez mais velha, antiquada. Por isso é preciso sempre jogar no cenário novos nomes, oferecer uma constância na produção, permanecer produzindo, fazer circular nome e obra.

“Para escrever Morte e esporte – agonia como essência – eu enchi o meu computador de milhares de informações –, tudo o que eu ia lendo nos livros dos outros, que por sua vez haviam lido no livro dos outros et cetera ad nauseam. O computador arquivou essa massa brutal de dados nas inúmeras ordens que me interessavam e na hora de escrever bastou-me apenas apertar uma ou duas teclas para, num segundo, a informação que eu queria aparecer no vídeo no momento certo. Morte e esporte não passa de uma imensa colcha de milhares de pequenos retalhos velhos que, juntos, parecem uma coisa original.”

O que Gustavo Flavio vê como negatividade é contestado pela forma do próprio romance que temos em mãos, repleto de acúmulos de referências e metalinguangens inseridas no enredo.

Se Gustavo Flavio é máscara de Ivan Canabrava, se Winner é duplo e máscara de Seller, se Augusto é máscara de Epifânio e duplo de João, José (2011), romance memorialístico escrito em terceira pessoa, poderia ser espelho do conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro? Uma das várias máscaras de José Rubem Fonseca dispersas ao longo de sua obra e vida?

José é a história da formação como leitor do futuro Rubem Fonseca. Entre os livros e, futuramente, a cidade do Rio de Janeiro, José divide seu tempo. Ler e flanar. Deslocar-se pela grande cidade que, finalmente, está à altura dos histórias de aventura de autores franceses que lia na infância em Juiz de Fora, a mesma cidade onde nasceu Zé Rubem. Nessas memórias ficcionalizadas, é a a cidade que encontra o seu leitor.

Como separar então José de Augusto Epifânio? O andarilho, como José; o futuro escritor, como José. O apaixonado pelo Rio, como José. Personagens se articulam para formar uma imagem de escritor que continuamente adiciona ou retira novos pedaços, nunca chegando a um retrato final, mas sempre oferecendo novas leituras, para quem o Rio de Janeiro foi determinante na construção de sua obra.

“A maior de todas as criações humanas é a cidade. É no centro do das cidades que seu passado pode ser sentido e seu futuro, concebido. Ainda que leitura e imaginação disputassem o mesmo espaço e certamente o mesmo tempo em sua mente, Naquela cidade, no Rio de Janeiro, José descobriu a carne, os ossos, a índole das pessoas; e os prédios tinham forma, peso e história.”

Se aos olhos do menino José tudo é encanto, a cidade como uma extensão lúdica de descoberta de si e do outro, em A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, o mesmo centro do Rio já é ruína, crise social, miséria instalada ao rés do chão. Acompanhar Epifânio é presenciar a descoberta do outro que a rua esconde/desvela a quem tem olhos de ver. Assim, o projeto literário não mercadológico de Augusto fica adiado eternamente. Ou é o próprio conto que lemos, Augusto usando a máscara de Rubem dessa vez? A literatura – retirada do esquema do mercado – torna-se vida, experiência, ainda que o final do conto não aponte para nenhuma reconciliação, pelo contrário, entre Augusto e a cidade.

Há ainda aqui, para concluir, outra máscara projetada sobre Rubem Fonseca nesses últimos tempos. O recolhimento dele, sempre avesso a fotografias, entrevistas e aparições públicas, parecia em alguns momentos um gesto literário capaz de somar-se a outros de seus personagens-escritores. Ou então, mera excentricidade. Na última década, no entanto, novos dados da biografia do autor tem vindo à tona, com destaque para a vinculação entre Rubem Fonseca e a ditadura civil-militar. Desde os anos 1990, já se sabia que o escritor havia trabalhado como roteirista para o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (1962-1964), considerado a celúla ideológica do golpe de 1964. No entanto, a historiadora Aline Andrade Pereira ressalta que José Rubem Fonseca era o diretor responsável pelo Grupo de Publicações/Editorial. Isto é, todos os assuntos referentes à opinião pública e jornais estava a cargo do escritor.

Esse episódio biográfico entra em choque, por certo, com a imagem do escritor crítico à sociedade da época e ele mesmo futura vítima da censura a seu livro Feliz Ano Novo (1975). Mais interessante do que optar por uma biografia em acordo com os nossos afetos, o fato em questão me parece inserir esse novo Rubem Fonseca na galeria de personagens-escritores de sua obra e também aprender a lidar com esse retrato do autor entre o fetiche do literário e a mercadoria fetichizada. Ou ainda, escutando a ordem do fantasma de Tolstói: “Anda, agora é tua vez”.

 

* Giovanna Dealtry é professora e pesquisadora da UERJ.

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