É fútil o que aparentemente não tem, não terá consequência. Mas, para mim, sujeito amoroso, tudo o que é novo, tudo o que desarranja, é recebido, não sob a forma de um fato, mas sob a forma de um signo que é preciso interpretar.
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso [nota 1]
Por ocasião das comemorações do centenário de Roland Barthes, em 2015, a marca francesa Hermès lançou o lenço “Roland Barthes – Fragmentos de um discurso amoroso”, ornamentado por pequenos quadros e remetendo tanto à ideia de texto como de fragmento. Ao lado de outras homenagens feitas à data, como seminários, publicação de livros, edição de textos inéditos, o crítico foi lembrado como expressão significativa do reino da moda, por meio do livro mais acessível ao público não acadêmico. A inscrição do título e de seu autor no objeto a ser comerciável e exposto como mercadoria burguesa permite associações as mais variadas, notadamente quanto ao lugar da literatura e da crítica na sociedade de consumo e no espaço acadêmico. Como entender a relação da crítica com a escolha de um objeto, feito de seda, tecido igualmente nobre e deslizante e que se destina a compor elegantemente o corpo de quem o veste? Como não remeter ao termo tecido, no sentido barthesiano de texto, conjunção mais do que óbvia entre a peculiar escrita do autor, marcada pelo cuidado e zelo com a linguagem, e o objeto? O texto Fragmentos de um discurso amoroso transforma-se, literal e metaforicamente, em lenço a ser manuseado e exposto pelos mais distintos usuários e relido sob a forma de outro meio de comunicação.
Representante da crítica semiológica e do estudo da cultura em todas as suas formas, como arte, literatura, cinema, fotografia, design, moda, Barthes introduziu uma série de conceitos que permanecem até hoje nos anais da crítica, como o da morte do autor, texto legível e o escrevível, prazer do texto, o biografema. A homenagem confirma a generosidade do escritor para as demais manifestações que não se circunscrevem à autonomia da literatura, uma forma de alertar para o aspecto impuro e múltiplo da maioria dos discursos. O diálogo interdiscursivo e cultural convida os representantes contemporâneos da crítica a romper os limites disciplinares e a se lançarem no espaço heterogêneo das produções artísticas e midiáticas. Há muito essas barreiras já começaram a se diluir, comprometendo a defesa da homogeneidade dos discursos e se opondo à crítica voltada apenas para a elucidação dos procedimentos literários, esquecendo-se de compreendê-la como integrante de uma visão cultural capaz de atingir outros aparatos e desdobramentos.
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Embora o exemplo da homenagem a Barthes pela Casa Hermès possa traduzir a distância entre culturas e meios de se chegar à alta-costura/cultura, como indicador da “fina” crítica francesa e da diferença em relação ao exercício da crítica nos países periféricos, consegue-se criar o paralelo entre as duas situações. É inegável admitir a dimensão da contribuição do pensamento francês para a formação de várias gerações de críticos latino-americanos, sem mencionar a permanência do discurso filosófico na constituição do imaginário teórico entre nós. Se os conceitos transitam em várias áreas e se completam na abordagem heteróclita do texto literário, não há como escapar da existência da abertura disciplinar e da relativização dos empréstimos retirados aqui e ali de outras áreas.
Nesse sentido, Barthes transita de modo descontraído tanto na compra pelos usuários do lenço Hermès quanto na adaptação tupiniquim de seus aportes teóricos. O que entra em pauta é a distinta e desejável fruição do objeto estético, entendido na sua peculiaridade e diferença quanto às antigas e hierárquicas concepções do termo, confundido com a alta-costura/cultura. Jacques Rancière já nos alertava sobre as políticas da escrita e a partilha do sensível, entendendo ser o regime estético das artes o ruído no sistema da representação, à medida que “uma época e uma sociedade possam ser lidas nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer (Balzac)” [nota 2].
A democratização e ampliação do conceito de estético contribuem igualmente para o abalo de parâmetros relativos às diferentes concepções de gosto e fruição, entendendo ser impossível restringir a noção a discursos desvinculados de forte tendência laboral, inseridos na exclusividade de sua comunicação. Estética não designaria a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte, ainda com Rancière, mas “um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento” [nota 3]. A prática da vanguarda, iniciada no início do século XX, já acenava para a supressão da arte como atividade separada, devolvendo-a à própria experiência, à vida que elabora seu sentido. Como “modo de pensamento”, a prática estética tem a liberdade de atuar nos mais diversos discursos, sejam eles considerados “nobres” ou “marginais”, o que permite a fruição e a produção mais democrática das manifestações literárias e midiáticas.
A escolha do lenço barthesiano como objeto teórico para a construção de uma das faces da estética vinculada à literatura e à moda confere legitimidade à esperada ruptura da crítica literária com o espaço fechado de recepção pelos leitores, por dirigir-se ao ambiente público do consumo. Como peça fetiche, voltada para um número talvez reduzido de usuários, a compra do Fragmentos de um discurso amoroso traduziria o desejo de se apoderar, mesmo que parcialmente, do objeto amado, pela desejável junção entre sujeito e objeto. O fetichismo do mercado é responsável pela sensação ilusória de posse do produto, à medida que a compra do lenço significaria a conquista de um bem cultural (leio Barthes por meio do tecido de seda que envolve meu corpo, posso ter uma experiência sensível com a crítica e não mais encará-la como afastada do cotidiano e da recepção individual de cada um). Não seria esta uma das saídas também esperadas para que se entenda a possibilidade de ser a literatura usufruída de outras maneiras, por comunidades distintas, sem que se privilegie esta ou aquela interpretação? Embora pareça temerária a alguns a aceitação do papel da mídia e do consumo como mediadores da aproximação do público leigo com a crítica, seria ainda desejável incentivar o diálogo entre núcleos heterogêneos de leitores, a fim de obter, por essa razão, respostas que não sejam unívocas.
A associação mais próxima da tradução do livro de Barthes em adorno corporal reside na atitude transformadora de sua linguagem crítica como inserção do sujeito no gesto enunciativo, fruto da reunião da experiência pessoal com a teórica. Defensor da escrita que se inscreve sob a marca do corpo, do toque sensível na página em branco, pela contaminação entre sujeito e objeto, o crítico francês abriu portas tanto para exageros interpretativos cometidos pelos seguidores, como ampliou a dimensão rarefeita dos estudos literários. A crítica contemporânea, guardadas as distintas tendências, reveste-se do estatuto ambivalente de uma linguagem entre ensaio e ficção, teoria e autobiografia, narrativa e documento. Diante da precariedade dos meios e dos suportes comunicativos, a literatura, o livro e a crítica perdem a antiga hegemonia e se transformam em práticas culturais, compatíveis com outros textos e despidos de autonomia.
A presença autoral, antes marcada pelo domínio da escrita e sua propriedade, cede lugar à enunciação coletiva, à mistura dos gêneros e à dicção narrativa da crítica. A separação heterodoxa entre ensaio e ficção é substituída pela concepção de uma linguagem que desconfia da natureza científica do texto crítico, atribuindo-lhe maleabilidade no trato com os temas, sem colocá-los em situação exclusiva. Os leitores atuais se interessam pela gama variada de manifestações artísticas ou não, por fragmentos textuais pertencentes a outras disciplinas, causando a percepção fraturada e serial do pensamento. A literatura e a estética tornam-se independentes dos suportes tradicionais e se integram ao circuito aleatório das forças expressivas da atualidade, como as intervenções midiáticas das redes sociais.
Para se discutir hoje as dinâmicas das humanidades no Brasil, nada mais estimulante do que pensar de forma positiva quanto aos destinos da criação e da imaginação nas artes, na crítica e nas ciências, com o objetivo de acreditar na flexibilidade e na ausência de barreiras entre as subjetividades e o espírito de pesquisa. Não seguimos mais a cartilha da universidade moderna, pautada pela rigidez dos campos disciplinares e subjugada pelo horizonte estreito da especialização e da exclusão. Adeptos, na teoria, da abertura transdisciplinar e da aceitação do outro como parte integrante do processo civilizatório – quando a universidade passa a aceitar no seu corpo discente representantes das minorias sociais, pessoas cuja experiência poderia ser considerada preconceituosamente fraca –, agimos, na prática, de forma ambígua, optando pelo brilho e a excelência. A reflexão sobre os impasses sofridos pelas mudanças ocorridas nos últimos anos no meio acadêmico torna-se também obrigatória para a retomada da categoria da sobrevivência do intelectual, muitas vezes imerso no pessimismo e sujeito às oscilações das ações afirmativas.
Se a tecnologia franqueou horizontes e transformou os saberes em jogos e arranjos à disposição de todos os que frequentam a academia, não será apenas por esta via que a universidade terá firmado, nos dias atuais, seu perfil. Impossível negar a necessidade de engenho e arte na pesquisa, o lance pessoal na construção de saberes. Na crítica literária, campo de minha atuação, são vários os caminhos para se conseguir impor a pesquisa, sem que o apelo à novidade esbarre no lugar-comum, na repetição do já dito e do consagrado. O que é indispensável, nesta empresa, é a restauração e singularização do novo, sem correr risco de continuar reproduzindo conhecimentos. Uma vez mais, a técnica da bricolagem deverá atuar como traço capaz de dar sobrevida aos objetos esquecidos pela crítica e rever tradições. O processo ambivalente de lembrar e esquecer modelos impostos pelo pensamento hegemônico resulta na captação dos intervalos do saber, na aceitação do ritmo intermitente entre a luz e a escuridão.
Os saberes contemporâneos se produzem por meio da relação contraditória entre o traço pessoal/impessoal do já feito, do já dito, do ready-made – objeto consagrado tanto pela vanguarda quanto pela prática experimental da bricolagem e da singularidade da assinatura do sujeito no reencontro do novo e da invenção. A relação estreita que aqui se propõe entre arte e ciência pauta-se pela utilização do procedimento de apropriação de materiais consagrados ou rejeitados pela tradição, com vistas a redimensioná-los. O olhar singular do sujeito diante da proliferação de resíduos e traços culturais existentes constitui a marca da diferença e do trabalho de interação com o já dito. O silêncio, o não saber, assim como a fugacidade e a precariedade dos valores e dos objetos de análise tornam-se matéria digna de ser expressa, seja por meio da retomada do direito à repetição do impensável, seja como resistência ao lugar-comum. Construir, pela bricolagem de materiais em processo de rearranjo, novos objetos, reside no deslocamento contínuo dos lugares fixos, na prática do diálogo metafórico criado pela arte da imaginação. Gesto ambíguo de afastamento e de afirmação de si, de participação da experiência do outro.
A retomada da imagem do lenço barthesiano, no início do século XXI, como ícone da proliferação do discurso crítico no interior da mídia e do consumo, representa não só a apropriação do valor conferido a outros campos como alerta ao espírito conservador, na luta pela autonomia da literatura e da impessoalidade da crítica. Os temas literários ganham espaço e se instalam de modo atuante na recepção de novos leitores, admitindo-se a abertura discursiva para os demais registros do saber, sejam eles aceitos ou não pela tradição acadêmica.
NOTAS
[nota 1]. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.76. (Coleção Roland Barthes)
[nota 2]. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo; EXO experimental org. Ed. 34, 2005. p. 47.
[nota 3]. RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 11.
*Eneida Maria de Souza, professora emérita da UFMG, é autora de Crítica cult