Artigo Amara.Moira set.18 Luisa.Vasconcelos

 

Cem anos depois de O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, romance esquecido do nosso Naturalismo e recolocado em debate, na década de 1980, por uma tradução americana como um dos primeiros no Ocidente a apresentar um protagonista homossexual, surge como forte candidato à lista das grandes obras injustiçadas pela crítica literária brasileira Princesa (1994). Trata-se de um livro de memórias gestado em italiano, na prisão romana de Rebibbia, pela mulher trans paraibana Fernanda Farias de Albuquerque em coautoria com Maurizio Jannelli, um intelectual italiano ex-integrante das Brigadas Vermelhas, enquanto ambos estavam lá presos.

Publicada pela Sensibili alle foglie – cooperativa editoral idealizada por presos políticos de Rebibbia interessados em produzir e divulgar obras, dentre outros assuntos, sobre a luta armada italiana e dispositivos de exclusão social e a experiência do cárcere –, o livro viu sua primeira edição esgotar quase imediatamente. Foi traduzido já nos primeiros dois anos de existência para o grego, português, espanhol e alemão, virou canção, conhecidíssima na Itália, nas mãos de Fabrizio de André e Ivano Fossati (Prinçesa, do álbum Anime Salve, de 1996), inspirou peças, filmes e documentários e converteu-se em símbolo da luta pelos direitos trans no país. Hoje é conhecido como um dos primeiros e mais paradigmáticos casos da chamada letteratura italiana della migrazione.

Tudo isso é Princesa, palavra tomada de empréstimo ao português e que dá nome a todas às suas versões, incluindo a italiana (o termo correspondente nesse idioma seria principessa e a cedilha encaixada ao título da canção de André e Fossati dá a entender que, sem o diacrítico, ainda que reconheçam a palavra como estrangeira, a pronúncia esperada na Itália seja não o nosso , mas tchê, como em ciao/”tchau”), obra que já no título incorpora a dúvida e a ambiguidade. Esses dois elementos darão a tônica desse livro que, no Brasil, para além duma meia dúzia de referências esparsas, e da excelente tese de doutorado de Luciana M. M. Ulgheri, tem sido solenemente ignorado.

É livro de difícil classificação, o que se deve muito a esse idioma que, ao fim de inúmeras reescrituras, fez-se o italiano límpido, conciso, poeticíssimo do Maurizio editor/biógrafo (“para se tornar acessível a um público mais amplo”, conforme se lê em seu prefácio), mas o tempo todo salpicado pelo português coloquial da Fernanda personagem/narradora. Um português repleto de marcas da terra e cultura em que ela se criou, no interior da Paraíba, e que recebe um glossário ao final do livro para se tornar legível em italiano (é nossa a única edição que o abandona, com seu português translúcido de cabo a rabo). Biografia de Fernanda, autobiografia a quatro mãos? Tradução, adaptação de um suposto original escrito por Fernanda em português?

Não, não há um original em português. Há, isso sim, os manuscritos em italiano da própria Fernanda, datados de setembro de 1991 e intitulados Sono venuta di molto lontano (recentemente, eles, junto do texto publicado em livro e de um acervo de ensaios a seu respeito, foram disponibilizados pelo website www.princesa20.it, em comemoração aos 20 anos de publicação da obra), nos quais se pode ver com clareza a forma como a autora pensava sua história e estimar as transformações pelas quais esta passou até tomar forma de livro e converter-se não mais na história só dela, mas dos dois, Fernanda e Maurizio.

Dois? Em verdade três, pois intermediando essa relação havia ainda a figura de Giovanni Tamponi, pastor sardo condenado à perpétua por assalto a banco, que resultou na morte de um segurança da instituição. Giovanni foi quem primeiro sugeriu à Fernanda – recém-chegada à prisão por tentativa de homicídio (sob efeito da cocaína, ela havia esfaqueado a dona da pensão em que morava por esta ter-lhe roubado U$S 5 mil), momento também em que se descobre soropositiva – a escrita como forma de “não se despedaçar”, de “não se esquecer de ter nascido livre”. Foi ele também quem colocou Fernanda e Maurizio em contato, para que o caderninho de capa amarela contendo esses originais, junto a outros tantos bilhetinhos que correram pelas três celas, pudesse receber a atenção merecida. Seu nome, no entanto, ficou de fora da lista de autores, ainda que Maurizio, no prefácio, assuma que aquele é um texto escrito a seis mãos.

O italiano aprendido nas ruas e no cárcere por Fernanda, em seus poucos anos de Itália, é o idioma desses manuscritos. Um idioma macarrônico, caótico, altamente inventivo, de fronteira quase de sobrevivência, escancarando o abismo que separa o italiano do português ao mesmo tempo em que ensaia um espaço onde os dois idiomas se fundam, se confundam (como traduzi-lo, aliás?). Mas desse idioma quase nada se conserva na versão final, que brincou com muita liberdade com os escritos de Fernanda, alterando personagens e sequências, inserindo situações novas, desdobramentos plausíveis, ênfases inusitadas etc. (liberdade demais em alguns casos, como por exemplo em recorrentes pensamentos racistas colocados na conta da autora, muitos deles direto em português, e que não se encontram em passagem alguma dos originais... como interpretá-los? Maurizio assumiu ter buscado inspiração em Guimarães Rosa para entender a cultura em que Fernanda se criou, intuito louvável, mas talvez seja a hora de começarmos a editar e traduzir não só a versão urdida por Maurizio – lindíssima, há de se reconhecer –, mas também a gestada por Fernanda com suas palavras e visão de mundo).

E o que nos conta Princesa, o livro? Do corpo como prisão (na já clássica metáfora com que tentam nos explicar, apreender, o famoso “nascer no corpo errado”, como se houvesse “certo”), à prisão do corpo em Rebibbia. Um corpo que nunca coube em padrões, corpo que nunca coube no armário, narrando em minúcia as experiências de cunho sexual, aos milhares, sempre no limite entre a sensação de prazer (o prazer possível, momento em que encontrava um mínimo de afeto e reconhecimento) e a consciência da violência, vividas na infância e adolescência nas mãos de meninos mais velhos e homens adultos, os mesmos que em público a humilhavam.

As duas metades de coco com que imagina os primeiros seios, os tamancos emprestados da mãe, o vestido, esmalte nos dedos, os jogos em que ela era a vaca e Genir o touro, o faz de conta como espaço de experimentação e autodescoberta, mas também de reinvenção da realidade, realidade que, no fim das contas, ela vai percebendo que não passa de papéis, de interpretação... você é o que você faz, é o que são capazes de ver em você. É isso ou como entender o fato de que, na relação sexual (que outra coisa não é senão jogo), diga-se que ela “se fez de mulher para homens”, pondo-se em jogo somente a identidade dela e não a dos demais participantes?

Ela queria essa identidade em jogo, queria esse papel, esse faz de conta em estado permanente, e por ter chegado cedo à intuição de que gênero não é destino irreparável, nem genital, viu-se autorizada a acreditar que haveria solução para seu impasse. Uma solução encontrada a princípio nas brincadeiras infantis, então no sexo, depois nas roupas, dali na prostituição e, por fim, via hormônios e silicone, em intervenções corporais permanentes (todas clandestinas à época e, em alguma medida, ainda hoje). Eis como o livro apresenta esse momento em que, finalmente, ela se vê arrastada para o mundo das mulheres (p.82):

“Uma mulher com pau, eu sei. Mas o que eles não veem é o que não convém ver. E eu os ajudo. Dou garantias. Sei escondê-lo com habilidade e experiência sob a minissaia. Apertado em calcinhas elásticas. Minguado pelos hormônios. Amassado de tal modo, que só quem procura encontra. (Sei que talvez não seja assim. Muitos sabem, percebem. Veem e mesmo assim se comportam como se eu fosse toda mulher. E este ‘como se’ para mim é muito. Talvez tudo. Embaraçados com a situação, a maioria prefere confiar na aparência convencional: peitos, bunda, tudo no lugar, então, senhorita. Na praia e no restaurante. Para mim a vida é outra.)”

O que se vê e o que se deixa de ver, a vida pela lógica do como se, do faz de conta, essa mulher com pau que, funcionando num primeiro instante como oxímoro, absurdo assumido, aos poucos desvela o colapso do sistema de gêneros, porque o como se que, a princípio, era apenas dela, logo se torna também de quem se faz testemunha. Em outras palavras, num mundo onde o genital com que se nasceu deixa de se fazer ver na forma como a pessoa existe, num mundo em que já não se sabe o genital com que a pessoa nasceu, então não só Fernanda pode ser Fernanda, como as demais pessoas precisarão buscar outra forma de explicar o que são, o que se tornaram.

Até onde você está disposto a ir pelo que acredita? Maurizio envolveu-se na luta armada de esquerda e encontrou a prisão perpétua, onde passou a questionar o sentido do que o fez chegar até ali. Como se lê no prefácio, em meio a essa crise de identidade que ele e seus companheiros viviam, o panorama monótono do cárcere foi completamente transformado pela inesperada aparição de travestis e transexuais, “perfumes de mulher invadindo olfatos desabituados; saias, meias e sutiãs pendurados nas janelas, (...) aqueles corpos fotocopiados das revistas sexy, (...) um atentado ao velho modo de comportamento na prisão”, indo ainda além em seu questionamento: “Como responder aos pedidos que faziam de serem chamadas no feminino? Às provocações exageradas? Mas, sobretudo, como interpretar os novos fantasmas que de noite começaram a habitar nossos sonhos?”

Não à toa essa passagem tão potente e poética da Fernanda-mulher-com-pau foi criação quase exclusiva dele, não se achando equivalente nos manuscritos que lhe deram origem. Não à toa também Princesa e não Principessa, pois Fernanda não se traduz, nem se explica, se impõe (e o mesmo se pode pensar em relação ao Sono venuta di molto lontano, os manuscritos da autora). Um livro que começa em primeira pessoa, tratando-a no masculino para, do meio em diante, oscilar entre essa opção e a feminina, às vezes tudo isso na mesma frase, como a própria Fernanda o fazia (é possível percebê-lo em vídeos da época). A possibilidade de vivermos integralmente no feminino, as narrativas que o permitiriam, estava só começando a ser inventada.

Mas para Maurizio, não, que referindo-se ao seu presente a trata sempre por ela, sempre por Fernanda, assim como os paratextos da edição italiana, espanhola e alemã (da grega só tive acesso à capa). A exceção fica por conta da edição brasileira (pela Nova Fronteira) que, à orelha do livro achou de bom tom apresentar nossa heroína como “Fernando, aliás Fernanda Farias de Albuquerque, a Princesa, 32 anos, nascidO na cidade paraibana de Alagoa Grande, travesti, condenadO a 6 anos por prostituição e tentativa de homicídio”. A condenação por prostituição fica na conta dessa edição também e espanta Fernanda ser colocada como travesti (não só aqui como no subtítulo à capa, “Depoimentos de um travesti a um líder das Brigadas Vermelhas” [nota 1]) quando, no prólogo, a tradutora afirma que ela expressamente solicitara ser tratada como trans/transexual. A cereja do bolo encontra-se na página com as informações catalográficas, onde se vê que o subtítulo com que se registrou a obra foi “A história do travesti brasileiro escrita por um dos líderes da Brigada Vermelha”..., única edição a negar-lhe a autoria da própria história.

Um dos primeiros relatos autobiográficos, no Brasil, de mulher trans e de trabalhadora sexual, e de longe muito mais enigmático que os dois que o antecederam (Meu corpo, minha prisão, de 1985, da mulher trans Loris Ádreon; e Eu, mulher da vida, de 1992, da prostituta Gabriela Leite), talvez seja hora de vislumbrarmos sua retradução. Mas uma que lhe leve a sério, uma que reproponha essa ambiguidade linguística tão característica sua, que nos imponha a necessidade de um glossário, que se interesse inclusive pela narrativa que forjou Fernanda. Quem sabe, então, não chame a atenção da crítica?

 

NOTAS

[nota 1]. As versões espanhola e grega não possuem subtítulo, a italiana só passa a tê-lo na segunda edição, de 1997 (Dal Nordeste a Rebibbia: storia di una vita ai margini). A alemã, feito a brasileira, desliza, mas só no subtítulo (Ein Stricherleben, algo como Uma vida de michê).

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