Capa.set18 4 Maria Julia Moreira

 

Abaixo, duas cartas de August Willemsen (1936-2007), tradutor das obras de Graciliano Ramos para o holandês, ao seu cunhado Paul. Provavelmente, trata-se da primeira tradução das cartas de Willemsen para português. As notas são do Pernambuco.

***

 

Quebrangulo, 3 de julho (de 1973)

Querido Paul,

Na cidade natal de Graciliano Ramos. A casa ainda existe, assim como a loja de seu pai. Tudo em tons pastel. Rosa velho, sépia, azul aguado. O prefeito, Eustáquio Soares, um sertanejo curtido, com olhos azuis quase fosforescentes, tinha histórias sobre a família de Graciliano, algumas das quais anotei antes que eu esqueça. Especialmente sobre os Ferro, a família do lado materno.

O alferes Jacinto Ferro tinha ficado viúvo. Num sábado, ele foi de Quebrangulo até Palmeira montado em seu jegue. (Escrevo um pouco sob a influência da lembrança do que ouvi, no estilo de narração de Soares: enunciações curtas, os longos silêncios no meio você tem que imaginar.) Nunca montava outra coisa, só jegue. Quando ia fazer compras, entrava nas lojas com jegue e tudo e nunca apeava. Em Palmeira [nota 1] ele foi até a mulher de Pedro Vila-Nova, que era costureira. Falou do alto do jegue: “Aqui tem tecido para fazer um terno para a missa de sétimo dia da minha mulher. Venho buscar semana que vem”. “Está bem”, disse a mulher de Pedro Vila-Nova, “mas preciso tirar as medidas.” “Tirar as medidas? Mas eu não vou apear.” Ela tirou as medidas com ele montado no jegue. Dessa maneira chegou perto dele e ele reparou: “A senhora é uma mulher bonita, não tem vontade de viver com um homem?” “Eu sou casada, meu senhor.” “Não foi isso o que eu perguntei. Perguntei se a senhora não tem vontade de viver com um homem. Se não, então não. Se sim, então venho buscar o terno semana que vem e já levo a senhora junto.” Na semana seguinte, ele chega de novo a Palmeira montando seu jegue com alforjes laterais. Vai até a mulher de Pedro Vila-Nova. O terno está pronto. “Quanto devo para a senhora?” Paga no ato. Pedro Vila-Nova, informado por sua mulher, está sentado em uma cadeira na calçada. “E qual é a sua resposta à minha proposta? Se a senhora quiser viver com um homem, monte aqui atrás.” Ela vai para dentro da casa, pega uma trouxa de roupas que tinha deixado pronta, pisa no pé do marido quando passa por ele e monta na traseira do jegue com o alferes Jacinto, que faz uma saudação ao esposo: “Até mais, Pedro Vila-Nova.” Eles viveram juntos até que ela morreu.

O alferes Jacinto Ferro criava abelhas. Gente da região comprava mel a ele. Chega um menino para comprar mel. Jacinto tira o mel do favo com pequenas ripas e assenta as ripas usadas sobre recipiente de mel, para escorrerem. Coloca a primeira ripa e vê que o menino pega e lambe. Ele não diz nada. Com a segunda ripa acontece o mesmo. Na terceira ripa ele pergunta ao menino: “Quer comer mel?” “Quero, sim, senhor.” “Com farinha ou sem farinha?” “Com farinha.” Um pouco depois, quando termina, o alferes Jacinto convida o menino para entrar, serve a ele um prato fundo cheio de mel com um monte de farinha em cima e fica do lado com um chicote na mão. Na metade do prato o menino começa a enjoar. “Você queria comer mel, vai comer mel”, diz Jacinto, e ergue o chicote. O menino come mais um pouco, então de repente foge, é perseguido pelo alferes Jacinto, leva umas chibatadas com o chicote e cai no lago da barragem. Com a cabeça mal fora d’água, vomita todo o mel.

O alferes Jacinto tinha um casal de escravos que estimava muito. Certo dia, sumiu um porco. Ele encarrega o negro de encontrar o porco. Isso às cinco da manhã. Às sete horas o negro retorna: impossível encontrar o porco. O alferes Jacinto diz: “Esse porco tem que ser encontrado.” O negro sai de novo, procura até as nove horas. Volta até o alferes Jacinto: continua impossível encontrar o porco. O alferes Jacinto pega um chicote e dá duas chibatadas no negro. O negro diz: “Ninguém jamais me surrou em toda a minha vida”. Vai para casa, mata seus porcos, suas galinhas, mata seus quatro filhos, enforca a mulher e a si mesmo.

Essas são histórias que ninguém nunca tinha me contado. Feldmann não as menciona: em Infância elas também não aparecem. Eu as escutei e me dei conta: “Fora de Quebrangulo talvez eu seja a única pessoa na terra que sabe disso.” E o que é Quebrangulo?

O trem que eu queria pegar hoje de manhã em Palmeira descarrilou. Sorriso de reconhecimento. Depois de uma longa espera, veio uma caminhoneta, que ficou abarrotada de gente e bagagens. Viagem incômoda. Cheguei perto de meio-dia em Quebrangulo, encontrei a única pensão do vilarejo e comi ali, servido pela filha, de novo uma beleza improvável, assim no meio do nada absoluto. Parece Anouk Aimée [nota 2], só um pouco mais cheinha. Depois caminhei, o usual caminho até o cemitério (um conjunto de montinhos com cruzes caídas, cerquinhas azul celeste ao redor, inscrições desbotadas pela chuva, fotos esmaltadas, muitas sepulturas de crianças), fotografei, comi e conversei com Eustáquio Soares. Agora estou aqui escrevendo num café de dimensões realmente extravagantes, um hangar, quatro mesas de bilhar, um balcão de uns 20 metros, incontáveis mesas e cadeiras. Por que nós não temos uma coisa assim na Holanda? As conversas que tive até agora deixaram claro para mim que o que eu estou fazendo nesta viagem já foi em grande parte feito por Helmut Feldmann e Moacyr Santana [nota 3] (não por “grandes nomes” da crítica literária brasileira). Não vejo problema, desde que eu possa ficar à vontade. Em Palmeira, tive uma tentação que já havia tido antes: a de ficar aqui. No Colégio Estadual tinha um francês que ensinava francês. Bem, eu poderia ensinar francês, alemão, inglês e português aqui, e não seria muito mais útil que continuar em Amsterdã contando coisas que todo mundo pode ler por conta própria? A ideia se tornou ainda mais sedutora (será que nunca vou me tornar um pouco normal?) porque eu, depois de um encontro com uma pessoa naquele Colégio, fui assediado por um batalhão de alunas com uma sede de conhecimento, uma avidez, uma pureza, tão comovente. Terminou sendo uma espécie de entrevista/palestra improvisada, que me saiu com uma desenvoltura que me fez suspeitar que eu fosse um outro, e que só acabou depois de umas duas horas. E quando eu finalmente fui embora vieram as menorzinhas, de 12, 13 anos, atrás de mim: “Como você se chama, americano?” “Augusto, que nome bonito.” “Eu gosto de homens altos.” “Eu gostaria de ter você como professor.” E isso, note bem, não puxando o saco, ou talvez só um pouquinho, o suficiente para ser agradável. E foram comigo até a loja de Luís, um verdadeiro cortejo. Veja, isso, sim, é um trabalho prazeroso.

 

Viçosa, 4 de julho (de 1973) [nota 4]

Deixado pela caminhoneta em frente ao enésimo Hotel Commercial. Melhor que em Palmeira: tem até instalações sanitárias. Só as pessoas não me agradam tanto. Um dono repugnantemente gordo, lento, malcriado, que afasta com violência um mendigo cego e perneta (é, o destino às vezes castiga de um jeito) sempre que o homem dá um passo no limiar. Ninguém se importa com ele. Risadas, escárnio. Dizem que ele é louco, porque resmunga e vocifera sem parar, mas na sua situação não vejo isso como indicação de desequilíbrio. À noite, “sem-teto” acampam em frente ao hotel na calçada do outro lado da rua (defronte, eles não são tolerados), munidos de fogareiros a carvão, espigas de milho, esteiras de palha, na esperança de alguma sobra do hotel. Pratos pela metade voltam para a cozinha praticamente diante de seus olhos. Latões de óleo com restos de comida são jogados fora e tudo é comido por cachorros e mendigos. Estou nesse hotel.

Como as coisas logo se tornam rotina: caminhar, visitar os lugares “gracilianos”, conversar com peritos no assunto. Aqui encontrei dois moradores muito idosos, provavelmente os únicos contemporâneos ainda vivos do que é descrito em Infância (começo do século): Veridiano Sousa de Vasconcelos (nascido em 1886), já um tanto ausente, e Sinfrônio Vilela (1893), um pouco surdo mas ainda inteiramente lúcido. Aliás, o homem mais feio que eu já vi, mas um charme! Um mulato de 80 anos com um nariz como um cacho de uva, uma mancha de nascença, uma pele destruída pela varíola, dois olhinhos pequenos, juntos, vesgos, mas extremamente vivos, e uma memória perfeita. Isso eu posso afirmar, pois conheço Infância praticamente de cabeça, e ele se lembra de todos os personagens dali — uma sensação estranha. Suas histórias, naturalmente, não são mais que uma confirmação de Infância, mas o que agora me dou conta, e que faz aumentar ainda mais minha admiração por Graciliano, se isso é possível, é que Graciliano escreveu como esse homem fala. Não exatamente, claro, pois Sinfrônio fala de maneira “incorreta” e Graciliano escreveu de maneira “correta” — gramaticalmente falando. Quero dizer o tom, o ritmo, a intensidade que resulta de uma linguagem escassa, simples, no verdadeiro sentido da palavra. (Isso, a propósito, torna Graciliano, na minha opinião, muito difícil de traduzir: “literatura” não é difícil, mas tente traduzir um analfabeto.) O confuso e emocionante foi que, embora estejamos acostumados com a ideia da realidade transformada em literatura, aqui aconteceu o contrário: a literatura foi retransformada em realidade. Esse também foi o caso em Canudos, mas lá foi com respeito ao ambiente, paisagem, natureza, quase matéria mineral. Aqui foi com pessoas. Fiquei boquiaberto escutando as lembranças de Sinfrônio. Cícero Feitosa, a “criança infeliz” de Infância: um menino que, porque era feio e sujo, era infernizado e evitado por todos, zombado por seus pais, acossado pelo professor, e que se tornou mau e vingou-se.

Graciliano escreve sobre ele (evidentemente tenho o livro ao alcance da mão): “Deixei-o no colégio, perdi-o de vista. E reencontrei-o modificado. Ao iniciar-se no crime, andaria talvez pelos 15 anos. Atirou num homem à traição, homiziou-se em casa do chefe político e foi absolvido pelo júri. Realizou depois numerosas façanhas; respeitaram-lhe a violência e a crueldade. Sapecou os preparatórios num liceu vagabundo. Na academia obteve aprovação ameaçando os examinadores. Bacharelou-se, fundou um jornal. Como o velho diretor, seu carrasco, fechara o estabelecimento e curtia privações, deu-lhe um emprego mesquinho e vingou-se. Caprichou no vestuário: desapareceram as nódoas, a formiga, o mofo. E teve muitas mulheres. Foi em casa de uma que o assassinaram. Deitou-se na espreguiçadeira, adormeceu. Um inimigo, no escuro da noite, crivou-o de punhaladas”.

Isso (e foi traduzido às pressas numa posição incômoda, com uma máquina infernal entre as pernas, na cama do hotel, livro à esquerda, cachaça à direita) — isso é escrever. Um homem como Graciliano Ramos deve ter se sentido muito solitário em seu próprio país: quanto melhor ele escrevia, mais feio as pessoas achavam. O que ele tenta em vão nos primeiros três de seus quatro romances, escrever como um analfabeto escreveria, se soubesse escrever, uma dificuldade que em seu quarto romance ele contornou ao escrevê-lo na terceira pessoa (de analfabetos praticamente sem palavras), consegue fazer em Infância ao não imaginar um escritor, mas a si mesmo. Mas Jesus, Paul, fico cansando você com um autor que você nem pode ler, que não está traduzido. Também não posso fazer nada, é com isso que estou ocupado. E sejamos sinceros: levando tudo em conta, isso não é apenas sobre o escritor, também é sobre linguagem, coisa que interessa a todos nós, e também é um pouco sobre mim.

Agora chega. Não preciso nem sair do lugar para adormecer. Adeus.

Guus

 

NOTAS 

[nota 1]. Palmeira dos Índios, município alagoano do qual Graciliano foi prefeito (de 1928 a 1930).

[nota 2]. Atriz francesa com mais de 70 filmes no currículo, entre eles La dolce vita (1960, de Fellini) e Um homem, uma mulher (1966, de Claude Lelouch).

[nota 3]. Moacir Medeiros de Sant’Ana e Helmut Feldmann, críticos que analisaram a obra de Graciliano.

[nota 4]. Viçosa, município de Alagoas (não confundir com o município mineiro de mesmo nome).

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