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São inúmeros os motivos que colocam As meninas, o principal livro de Lygia Fagundes Telles, em um lugar especial na literatura brasileira contemporânea. A precisão técnica e a força da denúncia são alguns deles, sem dúvida. Mesmo a questão cronológica, para a compreensão da importância do romance, é decisiva. Publicado em 1973, As meninas parece fornecer uma resposta à difícil questão que outro grande romance que o antecedeu, Quarup, de Antonio Callado, colocou: como agir com as consequências do golpe de 1964? Todas as opções seriam delicadas e cheias de nuances, sem falar que inevitavelmente entrariam em choque.

Lygia Fagundes Telles responde, de forma artisticamente notável, à pergunta no romance As meninas. Antes de discutir sua proposta, porém, vale também lembrar que o romance antecede justamente os livros que iriam, muitas vezes de forma objetiva e corajosa, denunciar a violência com que o regime militar lidava com a oposição. O que é isso, companheiro? é de 1979. Seis anos antes, porém, As meninas denuncia com bastante coragem e inequivocamente a tortura que o governo brasileiro praticava contra os opositores do regime:

“Ali me interrogaram durante 25 horas enquanto gritavam, traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar os choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice. Penduraram-me no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram-me então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência. Os tapas que me davam eram tão fortes, que julguei que tivessem me rompido os tímpanos: mal ouvia. Meus punhos estavam ralados devido às algemas, minhas mãos e partes genitais completamente enegrecidas devido às queimaduras elétricas. E etcétera, etcétera.” [nota 1]

O trecho acima é a reprodução de um panfleto que a escritora recebeu em sua casa. Sem nenhuma alteração, ela o colou ao livro, antecipando também o uso de documentos na ficção, que seria bastante comum alguns anos depois. Em entrevista recente, a autora explica o que a impulsionou:

“E então por essa época, querido, quando estava escrevendo o livro, eu recebo um panfleto de um sujeito que eu não conhecia, se eu não me engano ele era um engenheiro que deve ter morrido porque desapareceu, um panfleto contando a tortura dele no DOI-Codi. Eu morava com o Paulo Emílio na Rua Sabará, Rua Sabará, 400, perto da Polícia Federal, onde diziam os vizinhos ouviam gemidos, gritos nos porões, onde eram torturados os presos políticos da ditadura militar. Quando eu recebi esse panfleto, eu disse: ‘Paulo, eu recebi esse panfleto…, e eu queria aproveitar esse panfleto no livro que eu estou escrevendo’, e ele disse: ‘Você aproveita, mas cuidado porque o livro pode ser censurado’” [nota 2].

Por essa mesma posição de centralidade, depois da ação e antes da denúncia da reação desproporcional e ilegal por parte do Estado, dá para afirmar com segurança que um dos aspectos mais interessantes do livro é seu lugar de mediação. É provável que Lygia Fagundes Telles tenha notado que vivia um momento de preparo para a transição. Para ela estava claro que a ditadura consolidaria seus interesses e depois os militares sairiam de cena. Foi o que de fato começou a acontecer com muita lentidão em 1979, com a lei de anistia e, seis anos depois, com a eleição indireta e malograda de Tancredo Neves à presidência da República.

Ao unir três moças diferentes em um espaço confinado, a hospedagem de um convento, tendo sempre uma freira responsável por seus cuidados, o livro deixa claro que a questão é mesmo a convivência. As meninas propõe uma solução para a vida em meio à tensão: as três podem ser muito diferentes, mas se apoiam, ouvem umas às outras e dividem todo tipo de dificuldade, emoção e esperança: “Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas fazendo doce, sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora. Faço filosofia”. [nota 3]

A proximidade entre elas causa choque, claro, mas ao mesmo tempo oferece saídas. Às vezes é um acordo, outras é preciso se distanciar um pouco para não piorar as coisas. Sempre porém há a consciência de que elas precisam umas das outras. Nessas passagens o romance assume um forte tom lírico: “Chegou. A janela do seu quarto acabou de se acender, ah, Lião, acho que nunca sua presença foi tão desejada. Se não fosse tão tarde e se Aninha não estivesse nesse estado gritaria com todas as minhas forças, Lia de Melo Schultz! E você responderia: ‘Presente!’”. [nota 4]

Muitas vezes é um elemento externo que ameaça a convivência. A mãe fútil de uma, o vício da mais “perdida” e a militância política da Lia, personagem icônica dos nossos anos 1970. Quando as meninas percebem que seu mundo está para explodir, arrumam planos para a sobrevivência. Nesse momento, a violência que toma conta do país invade a vida delas, mas não tira a esperança: “- Lião, Lião, você está brincando! E a nossa festa de despedida? A gente tinha combinado uma festa. – Não dá pé. Um dia a gente festeja que vai chegar o tempo de festa, agora é arrumar a mala e tocar pro aeroporto, ô que medo. Não sou nem passarinho nem nada – resmungou levantando a mala”. [nota 5]

Não é o caso de dizer, porém, que Lygia Fagundes Telles defende que a sociedade vai ter que conviver e dar um jeito de acomodar conflitos e diferenças. Ela não é uma autora ingênua. É na forma, ainda outra vez, que achamos a resposta. O livro tem uma estrutura febril. Tudo é muito urgente, complexo e carregado. No final, uma das mulheres acaba não resistindo e morre. Não se trata da maneira saudável de crescer e passar a juventude. As outras duas conseguirão continuar a vida, depois que o romance acaba. Lia vai ao encontro do namorado guerrilheiro, que estava preso e foi trocado por um embaixador. As “meninas”, portanto, seguem a vida sem deixar de lado esperanças e lutas. Não há nenhuma concessão.

O romance termina com duas das amigas armando um plano para que a trágica morte da terceira não impeça que a vida delas, por mais conturbada que esteja, continue. O ambiente é praticamente onírico, mas o plano mirabolante é colocado em prática e tudo indica que dará certo. A morte não vai impedir a luta. É tudo o que se pode vislumbrar em 1973, quando o romance é lançado. Os amigos sumindo, quem continua vivo precisa sair do país e com isso as amizades vão se romper.

O final do livro parece justamente ser o auge da febre que toma conta de todas as páginas. Parece que o tom acelerado terá que, dali em diante, diminuir. A autora deixa claro, portanto, que a doença política que abatia a sociedade brasileira estava levando à morte. Evidentemente, a cura só poderia chegar com um tratamento. A metáfora médica aparece no livro inúmeras vezes. Para as coisas voltarem ao normal, será preciso observar os sintomas e esclarecer com clareza o que estava acontecendo: a violência política impedia a convivência, causava a morte e separava as pessoas. Ela é que precisava ser tratada. No caso, isso só poderia ter sido feito com esclarecimentos formais de culpas e procedimentos judiciais adequados.

Como sabemos, o Estado brasileiro continuou matando depois da ditadura. A proposta de Lygia Fagundes Telles não ecoou. Se o Brasil antes assassinava os opositores da ditadura, agora são os pobres, sobretudo não brancos, que são mortos. A polícia brasileira, herdeira do aparato repressivo da ditadura, é uma das mais letais do mundo. A doença não foi sequer diagnosticada e foram levados à justiça apenas os opositores da ditadura. Os crimes cometidos pelo Estado brasileiro entre 1964 e 1985 jamais foram julgados graças a uma lei de anistia que já foi contestada inclusive por organismos de direito internacional, aos quais aliás o Brasil nunca respondeu adequadamente. O resultado é que não temos até hoje uma democracia de fato legítima. É isso o que acontece com países que não dão a menor bola para seus grandes escritores.

 

NOTAS

[nota 1]. Cf. TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pág. 148.

[nota 2]. A entrevista foi publicada na edição de abril de 2013 da revista Brasileiros. Nessa mesma entrevista, a propósito, a autora explica por que o livro não foi censurado: o censor achou o livro tão chato, que não conseguiu passar dá página 20. O panfleto está depois da 200. Agradeço a Nilton Resende a lembrança.

[nota 3]. Cf. TELLES, Lygia Fagundes. Op. cit. Pág. 191.

[nota 4]. Idem. Pág. 249

[nota 5]. Idem. Pág. 251

 

>> Ricardo Lísias, escritor e pesquisador, é autor de A vista particular

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