Mas Deus está deste lado?
As meninas, Lygia Fagundes Telles
Não estamos vivendo em 1973. Mas, de certa maneira, estamos. Muita coisa nos separa daquele ano em que Lygia Fagundes Telles — uma contista, sobretudo — publicou o livro que é geralmente considerado seu melhor romance, As meninas. O Brasil àquela altura se aproximava de uma década debaixo da ditadura instaurada pelo golpe de 1964, e o aparato do Estado estava no auge da repressão violenta contra qualquer um que ousasse contrariar sua visão autoritária-nacionalista. Quarenta e cinco anos depois, o Brasil e o mundo se deparam com a ascensão de discursos fascistas. As meninas é um romance para ser lido em qualquer época, e suas lições nem de longe se restringem a questões referentes a regimes autoritários, mas, em tempos assim, de extrema direita, o livro parece particularmente relevante.
Eu estava morando no Brasil em 2016, quando Donald Trump foi eleito o 45º presidente do meu país. Tendo acompanhado com um pequeno grupo de amigos no meu minúsculo apartamento em Botafogo a apuração dos votos que resultaram em sua inesperada ascensão à presidência dos Estados Unidos (ver essas palavras juntas continua, quase dois anos depois, me provocando espanto), me acomete uma sensação de desespero parecida ao saber que, quando este texto chegar às mãos do leitor, existem boas chances de Jair Bolsonaro ser o 38º presidente do Brasil. Por isso, me parece essencial ressaltar que, à maneira de clássicos como Primo Levi ou Simone Weil, As meninas é um livro que pode iluminar um pouco esses tempos sombrios.
Mais do que a afinidade pela força bruta, o que aproxima os discursos opressores do passado e do presente é a tentativa de nos vender uma visão nacionalista amparada na ideia de uma sociedade homogênea — “um povo só” — que não permite a dissonância ou a diferença e, por isso, em nada corresponde à diversidade constitutiva do mundo humano. Daí a importância de As meninas nos dias de hoje: com sua gama de vozes e circunstâncias variadas, tudo na construção da obra de Lygia Fagundes Telles está na contramão dessa visão unívoca e limitadora propagada pela extrema direita.
As meninas não é o primeiro romance no qual Telles recorre a uma narração polifônica – alternando-se entre as perspectivas e vozes de três personagens femininas. Ela havia ensaiado essa técnica de composição quase 20 anos antes em Ciranda de pedra, livro que marcou sua estreia no romance. As meninas conta a vida de três jovens estudantes que moram em um pensionato de freiras em São Paulo no ano 1969, AI-5 em pleno vigor: a primeira, Lorena, vem de família abastada e oscila entre ruminações artísticas e sonhos de casamento com um certo M. N., que por sua vez já tem mulher e filhos; Lia, a segunda, filha de baiana com alemão, faz parte dos movimentos de resistência à ditadura e tem namorado preso; a terceira, Ana Clara, se entrega à droga e a um traficante, mas nutre ambições de casar com um misterioso noivo rico que talvez exista, talvez não. Ela acaba morrendo.
De certa maneira, a convivência de três moças, vindas de situações familiares, sociais, e econômicas bem distintas – desde a tradicional família brasileira à família nenhuma – já apresenta uma certa afronta à ideia de homogeneidade essencial aos projetos nacionalistas e autoritários. A crítica do romance a esse ideal não se faz por meio de uma desconstrução argumentativa de valores autoritários, mas pela própria maneira como a história se constrói e por aquilo que dá a ver ao leitor. A propósito desse último aspecto, penso aqui, é claro, na conhecida inclusão no livro do relato de uma sessão de tortura perpetrada pelos agentes do regime militar, relato registrado num panfleto que chegou às mãos da autora e foi por ela transposto para sua obra. Mas penso também em como As meninas expõe as ramificações mais insidiosas do conservadorismo autoritário que deu sustentação ao regime.
Lia é menos cativa das atitudes da sua época do que suas amigas, assumindo uma atuação política que a retira, em parte, da posição de observadora passiva da sua própria vida. Mas a morte da Ana, a eventual volta de Lorena para a casa de sua mãe e o exílio da Lia reforçam a falta de mobilidade do grupo e das mulheres em geral. Este é o mundo que resulta de um sistema político e um projeto de sociedade que preza a autoridade acima de tudo. Apesar das conquistas dos últimos quase 50 anos — o período que separa a trama do romance dos dias de hoje — o surgimento de figuras como extrema direita, com suas atitudes e comportamento agressivamente danosos à vida de qualquer que um se desvie da norma por eles ditada, assegura que o romance da Lygia permanece mais atual do que nunca.
O grande paradoxo do romance é a coexistência de um desafio às atitudes da época e da reiterada decepção que o leitor sente, por outro lado, ao ver as três meninas repetirem comportamentos e pontos de vista que reforçam os preconceitos de então. Nesse jogo de contraposições, está parte da genialidade do romance de Telles.
As três narradoras (existe um quarto narrador, que se utiliza da terceira pessoa e se insere em contraponto à narração em primeira pessoa de cada uma das meninas) apresentam um repertório amplo de atitudes ultrapassadas que persistem (ainda que em menor grau) nos dias de hoje, a começar pelo desdém que Lorena mostra por religiões afro-brasileiras. Os maiores desejos das três, além disso, estão sempre indissociavelmente ligados à presença de um homem. As protagonistas de Lygia se encontram fadadas a certas desvantagens devido às atitudes vigentes em sua época — até o título do romance remete a uma falta de protagonismo nas suas próprias vidas —, mas seria um equívoco tratá-las como vítimas. Elas evidenciam ao mesmo tempo os perigos de uma volta ao passado e as possibilidades que existem diante de sistemas opressores.
As jovens estudantes em torno das quais gira a trama do romance são espelho da sociedade que ora as privilegia, ora as oprime. Ana Clara serve de arquétipo da mulher exaltada por uma sociedade conservadora: sua arma principal é sua beleza, mas ela se encontra presa num redemoinho de dependência química e afetiva, de abuso de drogas e relações amorosas destrutivas, sua potência sempre atenuada pela fragilidade. Sob este aspecto, lembra Marilyn Monroe, ícone da época que imediatamente antecede a de Ana Clara. Embora perdida, ela se mostra ciente da insuficiência de uma felicidade que depende de fatores exteriores quando confessa, em diálogo silencioso com seu amante Max: “Não sinto nada nem com você, nem com ninguém.” Incapaz de combater as forças que conspiram para seu declínio, ela não será simples testemunha da sua própria desgraça.
Lorena, por sua parte, considera que a única possibilidade de uma vida feliz passa por um casamento com um homem que já é marido e que nunca irá deixar sua mulher. “Preciso de um homem em tempo integral,” ela diz a certa altura. Nascida em berço esplêndido, ela toma por si o papel de protetora de Ana Clara e Lia, oferecendo-lhes sempre perfumes, sais de banho, e outros marcadores do seu privilégio. Como assinala Renata Wasserman [nota 1], Lorena representa a mulher civilizada (e a civilização em geral), mas com suas boas intenções acaba perpetuando o ideal da mulher “bela, recatada, e do lar”.
Mesmo Lia, que atinge uma certa independência e protagonismo no curso da sua vida, segue para a Argélia atrás do namorado depois que ele é solto pelas forças da repressão. Existe, para o leitor que acompanha sua trajetória, certa frustração de ver alguém evidentemente capaz de superar as limitações impostas ao seu gênero, seguir, no final, um rumo convencional. Não é de todo impossível que Telles estivesse criticando a falta de imaginação por parte de Lia em escolher não superar estas limitações.
Curioso é, nesta onda de líderes nacionalistas e autoritários, refletir sobre como esta fragilidade, esta busca por um homem salvador, também vai além de uma questão da condição feminina numa sociedade patriarcal. O desespero das três meninas é pouco diferente do clamor dos trumpistas e bolsonaristas — enfim, de quaisquer grupos que busquem refúgio sob o manto do nacionalismo e da xenofobia — por um salvador que, no final, nada fará senão dar continuidade à sua marginalidade.
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Acontece algo interessante quando investigamos o modo como Telles constrói sua narrativa. Vale aqui voltar ao ensaio de Wasserman, para quem a quarta voz narrativa, impessoal, aparece no livro como um contraponto que expande os limites de percepção de Lorena, Lia, e Ana Clara. Ao longo do romance, as meninas se misturam com freiras, traficantes, homens de indústria, membros da guerrilha, acontecimentos que, como aponta o mesmo ensaio, mobilizam outras perspectivas e pontos de referência que complementam os das protagonistas. Mesmo quando estamos seguramente dentro da perspectiva de uma só personagem, a claustrofobia predominante em certas cenas nunca chega a extinguir os laços do leitor (e das próprias personagens) com o mundo fora das consciências delas.
Porém, não é só pela representação de uma sociedade complexa através de suas diversas protagonistas que Lygia lança sua crítica ao Estado autoritário e à sociedade. Nem tampouco por trazer à tona as várias maneiras pelas quais essa mesma sociedade compromete as meninas. É pela adoção de uma narração que muitas vezes recorre ao fluxo de consciência que Lygia arma a última fase da sua desmontagem das falsas normas. A história da literatura é cheia de exemplos parecidos; para falar em só um deles, olhemos para Allen Ginsberg e Jack Kerouac, em cuja obra existe uma tradição de empregar o fluxo de consciência em prol de um projeto político-literário, o aparente sem-nexo e o delírio surgidos desta narração (só superficialmente fora de controle) que abrem uma ruptura na realidade arrumadinha oferecida pelas autoridades e por aqueles que compram esta realidade ilusória. Esta saída dos eixos, que representa de uma vez uma quase-incapacidade de comunicar-se em pensamentos lineares e uma revolta contra as normas, ocasiona o desmoronamento de uma proposta para uma organização da sociedade que depende de linhas retas e frases de efeito — “Brasil: ame-o ou deixe-o,” “Make America Great Again.” Se olharmos para esta técnica narrativa como representação de uma mentalidade insalubre (ou de forma temporária ou permanente), não podemos deixar de condenar a sociedade que produziu o distúrbio – penso aqui, especificamente, nas falas da Ana Clara sob efeito de drogas.
Se reconhecermos nas meninas personagens que muitas vezes fogem às nossas expectativas e nossas esperanças, é nisso que reside o que parece ser uma mensagem duradoura da autora, que em vez de apresentar-nos heroínas de caráter inquestionável oferece protagonistas comprometidos que possam, ainda assim, servir de modelos.
O desfecho do livro reforça esta intenção. Depois da súbita morte de Ana Clara no pensionato de freiras, Lorena toma uma decisão que mantém vivo o futuro. Ciente dos esforços das freiras do pensionato em prol da proteção dos opositores à ditadura, Lorena reconhece que chamar a polícia implica deixar as freiras sob suspeita, situação que daria à ditadura uma desculpa para acabar com as intervenções de certos setores da Igreja pela vida de presos políticos e movimentos de resistência. Lorena troca as roupas de Ana Clara e leva seu corpo até uma praça abandonada para fazer parecer que a amiga morreu ao sair da festa. Evitando assim qualquer consequência para as freiras, Lorena representa a possibilidade de até os cidadãos mais imperfeitos contribuírem para a saída de tempos escuros. É com este gesto que o livro chega ao seu fim, acenando com alguma esperança de que mesmo os defensores do status quo se desfaçam da sua conivência e entrem na construção do amanhã.
NOTAS
[nota 1]. WASSERMAN, Renata R. M. The guerrilla in the bathtub: Telles’s “As meninas” and the irruption of politics. Modern Language Studies, vol. 19, no. 1, 1989, pp. 50–65. Disponível em: www.jstor.org/stable/3195266.
>> Eric M. B. Becker é escritor, editor e tradutor