1.
No dia 25 de janeiro de 1977, a escritora Lygia Fagundes Telles viaja a Brasília para entregar a Armando Falcão, ministro da Justiça, um manifesto assinado por 1046 intelectuais e artistas brasileiros. Está acompanhada da colega Nélida Piñon e do historiador Hélio Silva. No documento, pede-se o fim das restrições à liberdade de expressão e dos constrangimentos na criação artística. Estamos em pleno regime Geisel e, nos bastidores do Planalto, sova-se o “Pacote de Abril”, a ser imposto à nação por decreto. O ministro se mostra indiferente ao teor reivindicativo do manifesto e afirma que, “com serenidade e firmeza”, manterá o exercício da censura. Poucos conhecem essa faceta pública da notável ficcionista paulista.
No Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade lê os jornais do dia e por eles espreita os passos atrevidos de Lygia. Em carta datada de 16 de fevereiro, o amigo e admirador felicita-a pela coragem: “Estou acompanhando pelos jornais o movimento desencadeado pelos escritores e artistas, no qual você desempenha um papel de responsabilidade consciente, indo a Brasília para entregar o papel à fera”. Em seguida, o mineiro matreiro matiza o ceticismo que lhe é proverbial (o poeta se abstivera de assinar o documento): “Era de se prever que o documento não modificasse a atitude do governo, mas um resultado positivo se alcançou: ele se sentiu obrigado a explicar-se, percebeu a importância do pronunciamento e pela primeira vez reconheceu a existência de uma opinião de classe contrária à censura”.
No início daquele mesmo ano, Drummond acompanha a imagem de Lygia na telinha. Ouve suas palavras e, reminiscente das artimanhas do velho DIP [nota 1], percebe o uso pelo arbítrio da tesoura e da mordaça. Ao final da carta citada, lamenta o exercício impune da serenidade e firmeza ministerial: “Incrível a mutilação do seu programa no Globo Repórter!” E acrescenta: “Mesmo assim, o que sobrou deu para se divulgarem algumas verdades. Gostei. E ver você na TV é uma maneira de matar saudades”.
Num século em que com frequência o gosto pela política na madureza asfixia o encanto juvenil pelas artes, é extraordinário que a destemida mensageira da classe seja defensora do artesanato artístico e uma apaixonada da arte literária. Com obra ficcional admirada pelos pares e pelas novas gerações, Lygia é ainda quem melhor soube se comunicar em público com o curioso das coisas literárias. Posso atestar que, em auditórios localizados nos quatro cantos do país e do mundo, sua presença física é luminosa e suas palavras, apesar de serem rigorosas e valentes, são apreendidas e sorvidas com espanto e deleite em virtude da paixão que as sustém. Ao microfone ou em entrevista, não se esconde em evasivas. Oferece a espinhosa receita da iguaria que oferece: “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever, e rasgar muito. Eu rasguei muito”. E, fincada nos mitos do dia, aconselha aos aspirantes ao estrelato: “Se você pretende ser dançarina, ou se você quiser ser a (atleta) Daiane dos Santos, vai ter que trabalhar muito”.
À participante política e defensora do trabalho de arte se soma a intelectual que reconhece o caráter discricionário do “chamado à literatura”. Da perspectiva de quem quer ser autor, repetia, “escrever é uma vocação”. Chamados haverá muitos, no entanto, poucos serão os escolhidos, reza a letra do Evangelho. A vocação, manifestação obscura da humildade e da esperança humanas, abre e acelera o mistério que une o caráter do escritor e suas palavras à sensibilidade e à mente do leitor. “Se não houvesse leitores, ainda assim você escreveria?” – pergunta-lhe Edla Van Steen em 1981. Lygia rebate. O leitor e seu compromisso com a boa literatura são cria do estofo do escritor, do sangue dele. Explica-se: “Se o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir a cumplicidade do seu próximo. Fará um trabalho esvaziado, morno”. Lygia se perfila com Nietzsche. No capítulo Ler e escrever, de Assim falava Zaratustra, está dito: “De tudo o que se escreve só gosto daquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreve com o teu sangue e descobrirás que o sangue é espírito”.
Ainda sobra alguma tinta na paleta do retratista, e não servirá para emprestar colorido apenas circunstancial à figura humana, embora assim se goste de creditá-lo. Lygia é mulher que, em sociedade patriarcal, adota três profissões de homem. Advogada, escritora e membro da Academia Brasileira de Letras. Modesta, a promotora pública destaca a preeminência das primeiras escritoras, elas, sim, “verdadeiras malditas a arrebentarem seus espartilhos”. Perspicaz, a artista de sucesso lembra como se desgastou o tópico crítico que julgava a escritora brasileira narcisista, preocupada com a própria face, com o umbigo. O desgaste do desdém crítico já transparece nas leituras consagradoras de Ciranda de pedra (1954) e não se justifica por a romancista ter adotado uma escrita objetiva, tradicionalmente masculina, mas por ela ter ido até as raízes históricas do patriarcalismo e por nelas ter encontrado “a razão do feitio monologal e intimista” da escrita feminina. Irônica ou autoirônica, a acadêmica acrescenta que não há que se ter vergonha de a “mulher-goiabada” ter sido estrela nas quermesses do interior paulista. E menos vergonha deve sentir a escritora por ter recebido dela a tradição de ensimesmamento no trato carinhoso com o alimento sob as chamas. Por pouco que a mulher-goiabada se distraísse, o doce pegava no fundo do tacho. O trabalho doméstico fundamentou as invenções do olhar criativo da mulher e as reenviava ao belo rosto afogueado pelo calor da invenção literária.
2.
Causa espanto o sucesso das adaptações da obra literária de Lygia pelos meios de comunicação de massa. Tanto nos contos quanto nos romances, ela traz para a literatura contemporânea brasileira o sentido do texto escrito de acordo com as formas de espetáculo privilegiadas pelas classes populares. Herdeira confessa de Machado de Assis, para quem o espetáculo da ficção se passa no palco da corte, onde se agigantam as emoções do drama burguês ou a mímica abusiva da ópera, Lygia decide eleger, à semelhança de peão afeito às lides agropecuárias, a arena de rodeio para surpreender os personagens humanos que, frente à fatalidade das forças espelhadas na fauna e na flora selvagens, se manifestam por trejeitos de desordem interior e por palavras e atos de rebeldia. O peão se faz, no entanto, pastor para conduzir os rebeldes à mão caridosa do bem, que os tornará ordeiros, mansos e disciplinados. Revolta frente às intempéries desonrosas da vida é a condição do ser na comunidade. Disciplina alcançada pelas artes fidalgas do amor é o destino da criação no planeta.
Lembremos Clarice Lispector, sua contemporânea e amiga: “Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado”.
Em Lygia, a nostalgia de não ter nascido bicho tem como consequentes “a inquietação” e “a raiva”. Nesse alicerce dramático, a ficcionista ergue a rebeldia instintiva e a disciplina do amor como pilares da sua prosa. A rebeldia é a fome da nossa memória ancestral carente de verdade humana. Ela leva os humanos a competirem com a inclemência dos poderes infernais e divinos que modelam tudo e todos. Feita palavra, a rebeldia é motor da invenção ficcional. Recria artisticamente o mundo. É criação, no sentido absoluto do termo. “Lamber a cria, a gente dizia no mundo dos cachorros e gatos”, gosta de lembrar quando é inquirida sobre a natureza do trabalho de arte. “Minha infância é inteira feita de cheiros”, lê-se em As meninas (1973). Em Ciranda de pedra, Virgínia descobre: “Mais importante do que nascer é ressuscitar”.
Se em última instância a revolta instiga e fomenta o caos na comunidade e no mundo, já a disciplina manifesta a soberania do amor no reajuste das relações entre a natureza e os homens, entre estes e ela e dos homens entre eles. Revolta e disciplina intercambiam seus papéis e seus valores em tramas ficcionais e se sucedem até na relação entre os vários contos dentro duma coleção. Porque simbólicas são definitivas as palavras que Lygia coloca à abertura do livro A estrutura da bolha de sabão: “Fiz alterações nos textos, sou uma inconformada. As ficções desgarradas. Recolhidas e tosquiadas. O pastor junta o seu rebanho”. O Evangelho, acrescento eu, nos ensinou que a ovelha desgarrada é a única a inspirar a compaixão do Senhor. Como escreveu Gregório de Matos: “não queirais, Pastor divino, / Perder na vossa ovelha a vossa glória”.
Cara: revolta. Coroa: disciplina. Revolta ou disciplina? Revolta e disciplina. A ambivalência. Em depoimento, a romancista esclarece: “Quero que meu leitor seja parceiro-cúmplice nessa ambiguidade que é o ato criador. Ato que é desespero e apaziguamento. Ansiedade e celebração”. Parodiando o poeta Murilo Mendes, digo que Lygia segura com sobrenatural elegância o fio que conduz da arena de rodeio ao Gólgota. Sem parodiá-lo, cito novamente Murilo: “Um ouvido resistente poderia perceber / o choque do tempo contra o altar da eternidade”.
A ficção de Lygia Fagundes Telles não tem essência a ser procurada pelo leitor. Há que se aprender a conviver com ela, como se convive com um gato, por exemplo. “O gato Astronauta me dava”, lemos em As meninas, “aulas diárias de preguiça e luxúria. Todo feito de delicadezas perigosas, o meu gato. Ou Demônio?” Assim o livro de Lygia e seu leitor. Em conferência em Paris, na Sorbonne, confidencia: “Não espero ser compreendida, espero ser lida. Se possível, amada – confessei a um leitor que parecia preocupado, gostava dos meus livros, mas muita coisa não conseguia compreender”.
Aparentemente excessiva, a demanda concreta da autora se explica. Existe na sua ficção, como na filosofia de Albert Camus e na prosa de D. H. Lawrence, um cristianismo sem Deus. Vale dizer: a alma reside na carne, o espírito no sangue. Em depoimento, afirma: “Levanto a pele das personagens que é a pele das palavras, quero o mais íntimo, o mais secreto, e nessa busca me encontro”. A escritora se encontra na pele que recobre a carne secreta da palavra ficcional e também a do personagem. Ela conhece o quilate do vocábulo e da cria e os reconhece como autênticos pelo que eles têm de pele que pulsa ao ritmo do coração. Todas as sensações e paixões dos seres viventes estão a nu e a descoberto na letra do livro. Estão à flor da pele.
Na prosa de Lygia, a sensualidade felina programa a criação de inúmeros e inesquecíveis personagens, de que a ficcionista, é inventariante incorruptível e zelosa colecionadora. Lembremos uma vez mais Murilo Mendes. De versos do poema Ofício humano: “As harpas da manhã vibram suaves e róseas. / O poeta abre seu arquivo – o mundo −, / Vai retirando dele alegria e sofrimento / Para que todas as coisas passando pelo seu coração / Sejam reajustadas na unidade”.
NOTAS
[nota 1]. Criado pelo Estado Novo a fim de servir como censor, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) existiu entre 1939 e 1945, sendo desativado após a ditadura Vargas
>> Silviano Santiago é escritor, poeta, crítico literário e ensaísta. É autor de Machado