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Com o intuito de discutir os desafios políticos e sociais do Brasil, diante do novo mandato presidencial, vários intelectuais – entre eles: Sérgio Abranches, Ronaldo de Almeida, Angela Alonso, Celso Rocha de Barros, Monica de Bolle, Cristhian Dunker, Ruy Fausto – repensam os caminhos futuros do regime democrático na antologia intitulada Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje publicada, pela Companhia das Letras, no dia 1º de janeiro de 2019. Publicamos, a seguir, um trecho do ensaio O passado que não passou, de Heloisa Murgel Starling, no qual a historiadora analisa relações entre a ditadura, o anticomunismo e o nosso período vigente. O livro já está disponível em e-book e será lançado, em formato impresso, no dia 21 de janeiro. 

 

As eleições de 2018 interromperam a estabilidade da vida política do país. Mas foram disruptivas também por um segundo motivo. A Presidência da República será ocupada por um candidato explicitamente comprometido com um ideário político de extrema direita, manejando uma agenda de valores ultraconservadora e tolerante com a violência sectária entre seus apoiadores. Nenhum outro candidato presidencial em condições reais de disputa na história republicana assumiu esse ideário — e a lista inclui Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello. Por outro lado, a candidatura de Bolsonaro cerrou fileiras com um agregado de movimentos politicamente organizados à direita, com a ambição de criar, em curto prazo, um novo polo partidário. Desde 1937, com a dissolução da Ação Integralista Brasileira (AIB) pela ditadura do Estado Novo, não existiam no país movimentos de ultradireita com ampla capilaridade social e pretensão a se organizarem partidariamente.

Para a candidatura de Bolsonaro conseguir ancorar esses movimentos em uma identidade ideológica comum, ganhar coesão política e se esparramar pela sociedade, faltava encontrar um operador simbólico. E então um velho ingrediente do passado se reapresentou na cena contemporânea: o apelo ao anticomunismo. Não foi o único apelo de campanha que Bolsonaro tomou em- prestado ao passado. Mas esse tinha sua eficácia comprovada. Afinal, derrotar o comunismo serviu de conduto para articular em uma retórica comum as diversas conspirações que fermentavam no meio militar, às vésperas do golpe que derrubou o governo João Goulart, em março de 1964.

O anticomunismo que assombra a imaginação da sociedade brasileira, porém, tem raízes mais fundas no passado. Sua origem provavelmente está na derrota da insurreição de 1935 — a frustrada tentativa da Aliança Nacional Libertadora de tomar o poder, pela via do levante militar armado em cidades como Natal, Recife e Rio de Janeiro. A combinação entre censura, repressão e propaganda desencadeada pelo governo de Getúlio Vargas produziu uma tempestade ideológica que associou a atuação dos comunistas ao escândalo do mal, infundiu terror no coração da população católica, ameaçou a respeitabilidade das classes médias e altas, e consolidou um imaginário anticomunista que acompanharia como fantasmagoria a história política do país. Os levantes de 1935 converteram-se na “Intentona comunista” — termo que significa intento louco ou insensato — e deram origem a uma narrativa com fabulação de sobra: os oficiais legalistas do 3o Regimento de Infantaria teriam sido friamente assassinados pelos próprios companheiros comunistas enquanto dormiam; o levante em Natal foi seguido de saques, depredações, invasões de residências e estupros.

Em 1964, o imaginário anticomunista voltou a exibir sua força. No dia 19 de março, em São Paulo, uma multidão saiu da praça da República e marchou compacta até a praça da Sé carregando faixas, bandeiras e uma profusão de rosários — para salvar o Brasil de Jango, de Brizola e do comunismo, gritavam em coro. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade teve o apoio explícito do governador do estado, Adhemar de Barros, e foi cuidadosa- mente preparada pelo ipes através das entidades que patrocinava, em especial, da União Cívica Feminina, um dos muitos grupos de mulheres organizadas pelo instituto em todo o país para fazer pressão política. Reuniu entre 500 mil e 800 mil pessoas e tinha dois propósitos principais: acentuar a fúria popular contra o comunismo e servir como um eloquente apelo da sociedade à intervenção das Forças Armadas. Entre 19 de março e 8 de junho de 1964, uma multidão marchou com Deus contra o comunismo que acreditavam infestar o governo de João Goulart — ou, após 31 de março, para comemorar a vitória do golpe que eliminou esse perigo — em pelo menos cinquenta cidades do país, incluindo capitais e cidades de pequeno ou médio porte.

Mas reinventar o anticomunismo nos dias de hoje acende a luz vermelha e pode ter um ônus pesado para a democracia. No Brasil atual comunismo é, para dizer o mínimo, um anacronismo. Surpreendentemente, porém, o apelo repercutiu com força na sociedade, se projetou por todo lado e muita gente ficou em polvorosa. Por algumas razões. Uma, o anticomunismo é manipulado presentemente no país de modo a mobilizar diversos preconceitos de ordem moral e política em diferentes grupos sociais. Seu conteúdo é vazio: serve para nomear e desqualificar genérica e literalmente o opositor — independente de quem seja.

Existe outra razão. Enraizado no imaginário da sociedade há mais de oitenta anos e sem dar sinais de que esteja indo embora, o sentimento anticomunista desata no sujeito uma base própria de afetos: ressentimento, medo, rancor, raiva. As pessoas se comportam como se algo lhes tivesse sido roubado pelo progresso da inclusão social, acreditam que o país precisa ser regenerado por meio da violência eliminatória, e se sentem ameaçadas em suas crenças ou demandas. Suspeita gera suspeita, e o anticomunismo se reproduz por conta própria; no limite, endossa a violência: os comunistas precisam ser expulsos das tocas em que escondem suas verdadeiras intenções, esbravejam hoje em dia os grupos de extrema direita.

Pode parecer uma história repleta de absurdos, mas é difícil desviar os olhos do que está acontecendo. As eleições de 2018 ter- minaram, o vencedor é exatamente o que parece, e ainda podemos nos perguntar se as aparências enganam. Algumas pessoas insistem em temer o comunismo, como se a Guerra Fria estivesse à es- preita numa curva do tempo. Outras receiam pelo fim da própria democracia. A sociedade brasileira continua entrincheirada, marcada pela polarização, e isso traz consequências: eleva a voltagem do radicalismo, faz aflorar a intolerância que nega qualquer divergência e elimina o horizonte da igualdade. Como foi que chegamos até aqui?

Na realidade, existe mais um ingrediente de nosso passado que não passou. Em uma sociedade de raiz escravista como a brasileira, historicamente violenta e autoritária, ainda hoje terrivelmente desigual, o caminho para a construção democrática não tem sido apenas volátil; ele é tortuoso, marcado por linhas quebradas e por reentrâncias, feito com pontos altos de otimismo democrático e baixos de inversão antidemocrática. O Brasil se abriu ao século XXI na expectativa meio eufórica de haver finalmente assentado sua experiência democrática — mas a democracia teve tempo de criar raízes em nossa sociedade? Ou elas cresceram pouco? Não sabemos. Contudo, nossa vantagem é essa. Não conhecemos de antemão onde a história vai dar — o futuro é uma questão em aberto. O golpe de 1964 pertence ao passado. E a história não chegou ao fim. Talvez seja uma boa hora para começarmos a refletir sobre o passado que não passou. Qual destino nós queremos dar à democracia no Brasil?

>> Heloisa Murgel Starling é historiadora e cientista política. É professora titular livre da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Seu livro mais recente é Ser republicano no Brasil Colônia (Companhia das Letras, 2018).

 

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