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Em O reino deste mundo, romance de 1949, o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) faz uma incomparável (re)criação dos ocorridos que precederam a Revolução do Haiti (1791-1804), exibindo as etapas de um processo que levaram a antiga colônia francesa a se tornar uma nação independente.

O romance, mais do que interpelar a maneira como os fatos da Revolução Haitiana estariam presentes nas consciências como um acontecimento do passado, busca compreender como esses eventos foram incorporados na estrutura temporal das relações. Por isso, o escritor opta por ocultar, sob uma aparente intemporalidade, o cotejo de datas e cronologias.

Passados 70 anos desde sua primeira publicação, O reino deste mundo segue oferecendo grandes possibilidades de imaginação política e poética – encontrando diálogo com debates que ocupam lugar de destaque no pensamento teórico contemporâneo.

A “impensabilidade” da Revolução

No ensaio An unthinkable history, Michel-Rolph Trouillot enfatiza a “impensabilidade” da Revolução do Haiti. Ele argumenta que a emancipação revolucionária conquistada por ela desafiou o cerne das suposições ontológicas e políticas dos pensadores europeus. Afinal, a capacidade de escravizados africanos almejarem sua liberdade, desenvolverem estratégias para assegurá-la e fundarem um Estado independente estava fora do quadro de compreensão destes pensadores, mesmo os mais radicais. Por isso, viram-se obrigados a torcer as explicações para os limites de suas próprias visões de mundo.

A escravidão racial e seus pressupostos sobre a desigualdade humana não foram desafiados mesmo por aqueles que aparentemente admitiam a possibilidade da Revolução, já que a identificação do Homem universal com o sujeito europeu e masculino teria criado uma escala de humanidade que comprometeria o entendimento destes pensadores.

Trouillot utiliza a noção de “impensabilidade” para tratar também de intérpretes modernos que, assim como seus antecessores, desconsideraram a ideia de que escravizados poderiam ser agentes conscientes e responsáveis por suas próprias lutas de libertação. A Revolução Haitiana, então, perverteria as respostas ao desafiar os próprios termos em que as perguntas foram formuladas.

Valendo-se de um admirável domínio dos recursos narrativos, Alejo Carpentier propõe, através de sua literatura, uma aproximação destes eventos por meio de caminhos distintos daqueles costumeiramente empregados nas concepções historiográficas – fortemente aficionadas por fontes escritas. A resposta encontrada por ele para tornar a Revolução pensável foi a de buscar fixar a perspectiva no polo daqueles que a produziram, uma vez que não há situação histórica fora da atividade situante dos agentes. Logo, não há outro modo de contar uma história senão elegendo o ponto de vista de uma das partes.

Assim, o autor nos apresenta um mundo em que o real maravilhoso está livre de uma realidade seguida em todos os seus detalhes, fazendo eco à afirmação de Édouard Glissant de que o passado não deve ser recomposto somente de maneira objetiva, ou mesmo subjetiva, mas deve também ser sonhado de maneira profética, sobretudo para as pessoas, comunidades e culturas cujas vozes foram subjugadas no processo histórico.

O real maravilhoso americano

No já bastante frequentado prólogo de seu livro, Carpentier explica o que entende por real maravilhoso. Diz que, depois de sentir o nada irreal sortilégio das terras do Haiti, em visita feita ao país em fins de 1943, acabou por ser “levado a aproximar a maravilhosa realidade vivida (ali) à extenuante pretensão de suscitar o maravilhoso que caracterizou certas literaturas europeias”. Nelas, o maravilhoso seria buscado senão por meio de “velhos clichês e truques de prestidigitação”. Como atesta o crítico Emir Rodríguez Monegal, esse texto acabou por tornar-se mais famoso que o romance, convertendo-se em uma espécie de prólogo a la nueva novela latinoamericana.

Por vezes injustamente apontado como um autor exotista, comparado aos cronistas e viajantes que construíram os mitos edênicos que fundamentaram o imaginário do Ocidente sobre a América, a proposta de Carpentier é, ao contrário, a retirada do maravilhoso do terreno da fantasia. Seu projeto deve ser entendido como um experimento ético e existencial em que o maravilhoso esteja assentado sobre realidades também empíricas, mas cujos pressupostos ontológicos sejam fecundados pelas presenças africanas e ameríndias no continente americano.

“A cada passo encontrava o real maravilhoso. Mas pensava, além disso, que essa presença e vigência do real maravilhoso não era privilégio único do Haiti, mas, sim, patrimônio da América inteira, onde ainda não se terminou de estabelecer, por exemplo, um inventário de cosmogonias.”

Ao convidar o leitor a conhecer um mundo em que o “real” e o “fantasioso” não se distinguem nos termos impostos pela racionalidade ocidental, Carpentier nos oferece um prodigioso campo de imaginação teórica, bastante próximo de debates que hoje ocupam lugar central em diferentes áreas do conhecimento, sobretudo na antropologia e na filosofia.

A virada ontológica na antropologia

Fazer uma espécie de “inventário das diferenças” entre as muitas culturas é uma das razões de ser da antropologia. Por isso, foi por meio de experiências em campo que antropólogos e antropólogas sentiram a necessidade de não mais tentar definir como as culturas se enquadram no mundo da cosmologia ocidental, mas, ao invés disso, buscaram a compreensão de que mundo(s) existem para estes sujeitos – e quais as decorrências sociais, culturais e políticas de suas visões. Afinal, como alertou Isabelle Stengers, a ciência quando se engaja para determinar o que deve ser reconhecido como realmente existente termina por produzir tristes inquisidores.

Essa alteração se deu no pensamento antropológico a partir de uma radicalização do entendimento de que muitos dos problemas que antropólogos/as levavam para campo não faziam sentido se vistos pela perspectiva daqueles com quem se estava estudando. Portanto, melhor seria praticar uma antropologia comprometida em investigar quais perguntas os próprios sujeitos se fazem e buscar as respostas oferecidas por eles.

Foi assim que, nas últimas duas décadas, teve lugar um processo que ficou conhecido como “virada ontológica”. De forma bastante resumida, a expressão faz referência a uma transformação em parte importante da produção antropológica, na qual preocupações mais propriamente epistemológicas cederam espaço a reflexões sobre a dimensão ontológica da existência.

O reino deste mundo

Em O reino deste mundo, Alejo Carpentier evoca a mítica presença do líder maroon (equivalente local de quilombola) François Mackandal, de quem, segundo o escritor, “ficou toda uma mitologia, acompanhada de hinos mágicos, conservados por todo um povo, que ainda se cantam nas cerimônias do vodu”. É partindo da perspectiva “deste povo” que trilhamos o real maravilhoso da obra, por meio da vida do escravizado Ti Noel, fiel seguidor das ideias de Mackandal.

Certo dia, enquanto agarrava a cana em feixes, metendo as pontas entre os cilindros de ferro, aos empurrões, Mackandal teve sua mão esquerda decepada. Tempos depois ele foge e seu amo organiza uma batida, embora sem dar-se muito trabalho. “Pouco valia um escravo com um braço a menos”. Além do mais, “todo mandinga – era coisa sabida – ocultava um fugitivo em potencial. Dizer mandinga era dizer rebelde, revoltado, demônio. Por isso os desse reino eram tão mal cotados nos mercados de negros.”

Desde a fuga, Mackandal se concentrou em longo e paciente trabalho: extrair da natureza formas de envenenar colonos europeus. Mackandal, que se fizera ogã do rito Radá, tornou-se assim o Senhor do Veneno, proclamando a cruzada do extermínio que deveria acabar com os brancos colonizadores e criar um grande império de negros livres. 

Rapidamente, o veneno se espalhou pela planície, entrando pelas casas e dizimando famílias. Conhecida a procedência do caso, começou-se uma verdadeira caçada atrás de Mackandal. Mas, dotado do poder de transformar-se em animais, ele visitava as fazendas da planície para vigiar seus fiéis e saber se ainda confiavam em sua volta.

Quatro anos duraria a espera até que Mackandal retornasse em seu corpo humano, durante uma celebração do vodu. Capturado pelos brancos em meio aos festejos, foi levado para ser queimado em praça pública. Entretanto, os negros demonstraram revoltante indiferença diante do corpo que era metido no fogo, uma vez que estavam cientes dos poderes do mandinga. “Naquela tarde, os escravos retornaram a suas fazendas rindo por todo o caminho. Mackandal cumprira sua promessa, permanecendo no reino deste mundo. Uma vez mais os brancos eram ludibriados pelos altos poderes da outra margem.”

Já em casa, o colono monsieur Lenormand de Mezy comentava com a esposa sobre a insensibilidade dos negros ante o suplício de um semelhante, tirando disso considerações filosóficas sobre a desigualdade das raças humanas, em um discurso floreado por citações latinas. Se, sob o manto do humanismo universalista (com seus ideais abstratos de liberdade e igualdade), violações de direitos eram perpetradas pelo colonialismo escravocrata e justificadas por uma epistemologia eurocêntrica, Mackandal escapara da dominação europeia ao movimentar-se fora dos termos de sua metafísica absolutista. “O que sabiam os brancos de coisas de negros?”

Nas páginas do romance, somos apresentados também à figura de Bouckman, o Jamaicano. Nas matas de Bois Caimán, Bouckman convocaria os negros a uma grande sublevação, partindo dele a admonição final.

No processo da Independência, as práticas do vodu funcionaram como espécie de linguagem comum por meio da qual se comunicavam os escravizados na luta por liberdade. Evento emblemático, a cerimônia de Bois Caimán foi alvo constante de disputas na construção da narrativa histórica sobre o país. Ora evidenciada, ora apagada, nas páginas de Carpentier, a cerimônia tem um importante lugar de destaque.

Na terceira parte do romance, Ti Noel, que fora levado a Cuba durante a fuga de seu amo, regressa já velho ao Haiti como homem livre, pois a escravidão havia sido abolida com o triunfo de Jean Jacques Dessalines. Entretanto, Ti Noel espanta-se com o que vê: sob o domínio de Henri Christophe, um rei que, sendo negro, escraviza outros negros, ele encontra um Haiti que caminha à margem dos preceitos africanistas dos primeiros líderes da Independência Haitiana, já que o monarca procurava dar aparência europeia à sua corte.

Ti Noel é escravizado novamente, mas vê-se livre em seguida graças a uma rebelião incitada contra o despotismo do rei. A terceira parte chega ao fim com a queda do reino e o suicídio do monarca.

O velho Ti Noel retorna à morada em que vivia com seu antigo amo, mas sua tranquilidade é novamente interrompida com a chegada dos mestiços republicanos que formam uma nova casta aristocrática e opressora. Exausto, Ti Noel resolve refugiar-se. É quando voltam à sua mente reminiscências de coisas contadas por Mackandal. Então, dá-se conta de que o mandinga se disfarçara de animal, durante tantos anos, para servir aos homens, e não para desertar do terreno deles. Em um supremo momento de lucidez, volta-lhe à visão os heróis que revelaram a força e a abundância de seus antepassados da África, o que lhe faz acreditar novamente em possíveis germinações de porvir.

A literatura como teoria-prática da descolonização do pensamento

Em Metafísicas canibais, Eduardo Viveiros de Castro defende que “se estamos todos mais ou menos de acordo para dizer que a antropologia, embora o colonialismo constitua um de seus a priori históricos, está hoje encerrando seu ciclo cármico, é preciso então aceitar que chegou a hora de radicalizar o processo de reconstituição da disciplina, levando-o a seu termo. A antropologia está pronta para assumir integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”.

Segundo Viveiros de Castro, uma verdadeira antropologia devolve-nos sempre uma imagem de nós mesmos na qual não nos reconhecemos, “pois o que toda experiência de uma outra cultura nos oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa própria cultura”.

Ainda que se trate de um romance, e não de uma obra de teoria antropológica, O reino deste mundo, ao narrar um processo histórico a partir de uma perspectiva “nativa”, é capaz de nos proporcionar um radical exercício de alteridade antropológica. Talvez por isso a obra de Carpentier costume frequentar tantas epígrafes de etnografias produzidas a partir do Caribe. Um ótimo exemplo de que a literatura, assim como a antropologia, pode operar como teoria-prática da descolonização do pensamento.

Em um mundo que não para de desabar sobre nossas cabeças (sobre umas mais do que em outras), em um tempo em que o desespero ante o infindável reviver de cadeias e a proliferação de misérias faz com que os mais resignados acabem por aceitar como prova de inutilidade toda rebeldia, o romance de Alejo Carpentier mantém impressionante vigor e nos oferece a possibilidade de imaginarmos outro(s) mundo(s) – e, quem sabe, entendermos um pouco mais sobre o nosso.

>> Leonardo Nascimento é jornalista e mestrando em Antropologia (UFRJ).

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