O tradutor, de certo modo, é um profissional das sombras. Não que se envolva nelas para, sorrateiramente, na primeira oportunidade, cravar um punhal traiçoeiro nas costas do autor, e de quebra ferir o coitado do leitor. Mas porque seu lugar, vamos dizer, funcional é à sombra do autor: é nesse que a luz incide, e deve incidir. É dele a obra. É ele o criador. É o nome dele que aparece na capa e na lombada. O do tradutor, geralmente, apenas na página de rosto, quando muito um editor mais generoso o põe na quarta capa.

Você talvez ache esquisito que num mundo em que os holofotes parecem ser tudo alguém opte por ficar à sombra. “Este cara — a esta altura você já percebeu que sou tradutor — deve morrer de medo de se expor!” Mas a gente se expõe sim. O que o tradutor leva de pancada você não imagina. Os italianos, com aquele seu veneno renascentista de que usaram e abusaram nas lutas pelo poder, pródigos nele foram os Bórgias, chegaram a cunhar um dito peçonhento: traduttori, traditori, tradutores, traidores. O autor comete uma passagem infeliz? O tradutor respira fundo e a reproduz: não cabe a ele corrigir o autor (salvo com o consentimento deste, se vivo: correção psicografada não vale). O leitor percebe a falha e não hesita: “Este tradutor é um traidor!” Natural, depois de tantos séculos e tanta gente dizendo isso... Deve ter até quem ache que só existimos para atraiçoar o autor. Mas não é essa nossa razão de ser, você sabe. Modéstia à parte: à sombra e tomando água fresca, o tradutor cumpre uma função imprescindível, a comunicação entre povos de fala diferente.

A certa altura da Educação sentimental, Flaubert aponta que há homens que têm como missão servir de intermediários; você os atravessa como uma ponte, diz ele, e segue em frente. O tradutor é uma ponte assim, que leva o autor estrangeiro a seu leitor e vice-versa.

Voltando ao jogo de luzes e sombras. Faz uns anos, circulava com certa desenvoltura a ideia de que tradução é recriação, o que tornava de certo modo o tradutor um coautor. Isso pode ser verdade na poesia, onde o poeta que verte outro poeta cria um novo poema, de que o original é a matéria-prima. Para citar um pernambucano, é só ler as traduções do Bandeira. Mas na prosa essa ideia é incabível, salvo em casos excepcionais. Nela, a tradução perfeita seria a que replicasse tal qual o texto original, criando como que um clone deste na língua do tradutor, feito aquela simpática ovelhinha, como se chamava mesmo, Dolly? Meta inalcançável, claro. Nessa impossibilidade, o tradutor, fixando sempre essa estrela guia, trata de se manter fiel a seu autor, à letra do seu texto, ao seu estilo.

Isso do estilo é uma questão muito séria. Outro dia mesmo foi levantada pelo Paulo Bezerra, esplêndido tradutor de Dostoiévski. Numa entrevista mostrava ele como as traduções antigas deformaram a escrita: nossos tradutores verteram de segunda mão, geralmente das péssimas (isso o Bezerra não disse, digo eu) traduções francesas do século 19 começo do 20, que edulcoravam a linguagem rude do russo genial. Bezerra a restitui, essa rudeza, como aliás as novas traduções que vêm sendo feitas na França.

Às vezes, um autor de estilo enrolado, que o tradutor tem de respeitar, provoca novas lambadas no tradutor: “Eta tradução enrolada!” Nem passa pela cabeça do leitor que é uma característica do autor.

O tradutor, ao escrever sua tradução, se esforça por se anular como escritor. Pronto, lá vem você outra vez: “Não disse que este cara tem um problema? Acha o máximo se anular!” Acho mesmo, mas isso só mostra que o tradutor é um ser perfeito, além de sábio e inspirado.

Não é pretensão minha, não, quem diz assim é uma máxima taoísta, e com taoísta não se discute, que eles sabem das coisas. Olhe só: “O homem perfeito não tem eu [o tradutor se anula], o homem inspirado não tem obra [ela é do autor], o homem sábio não deixa nome [quem deixa é o autor].” Viu?

Bom, tudo isto vem à baila por causa de um autor que traduzo desde a primeira obra sua publicada aqui (Noturno do Chile, em 2004): Roberto Bolaño. Só não verti uma, Estrela distante, que ficou aos cuidados do Bernardo Ajzenberg. Os refletores já tinham se acendido sobre Os detetives selvagens, a segunda a sair no Brasil, que demonstrava ser Bolaño um marco da literatura hispano-americana contemporânea. Este ano focaram-no a plena luz com o lançamento de 2666, que o confirma como um dos mais importantes autores do século 21 e teve uma formidável repercussão, aqui e no mundo todo. Foi tanta luz, que até o tradutor saiu da sombra. (Fico imaginando como deve se sentir o bacurau quando o farol do carro bate em seus olhos.) E tome telefonema e e-mails indagando sobre o mister de tradutor, sobre minhas traduções do Bolaño, sobre ele, sua obra, até artigo me pedem, como você está vendo.

Bem, já disse o que penso sobre meu ofício, como procuro exercê-lo e como é portanto o trabalho (prazer imenso) de traduzir Bolaño. Agora vou fazer que nem o bacurau: voar de volta pra sombra, vai que o carro me atropela...


Eduardo Brandão é escritor e tradutor da obra de Roberto Bolaño lançada pela editora Companhia das Letras

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