Estupro e literatura fev.19 Luisa.Vasconcelos

 

Faz quinze anos desde meu primeiro contato com Os Lusíadas, de Luís de Camões. A minha curiosidade foi despertada por um professor de literatura que, em meio à apresentação da obra, abordou en passant o “inesperado e maravilhoso erotismo” de uma passagem, a Ilha dos amores, canto IX. Buscando-a em sebos, deparei-me com uma edição de 1948 minuciosamente comentada por um tal professor Otoniel Mota, catedrático da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP), e fiz dela minha companheira constante por bons tempos.

Nada encontrei, contudo, de erotismo no texto, mesmo tendo-o lido com esmero e me comprometido a decorar passagens inteiras. Pensando, a princípio, tratar-se da sensibilidade exacerbada do professor ante versos como “os esperem as Nymphas amorosas, /De amor feridas, pera lhe entregarem /quanto delas os olhos cobiçarem”, só anos depois, já na faculdade de Letras, vim a entender o real motivo.

Chegando ao esperado canto IX, não me dei conta de que, sem qualquer aviso ou indicação, a estrofe 65 tinha sido simplesmente apagada e da 70 pulava-se direto para a 85, eliminando por completo a passagem considerada obscena. Desconheço se a supressão não declarada era prática usual em outras edições, mas, de qualquer forma, é interessante pensar que uma obra de 1572, impressa originalmente “com licença da Sancta Inquisição” (conforme se lê no frontispício da edição princeps), tenha sido, mais de 350 anos depois, censurada dessa forma. E justo numa edição que, em muitas de suas páginas, apresenta mais notas de rodapé do que versos.

E o que se encontra de tão perigoso nesse episódio e, mais especificamente, nessa cena que envolve as 15 estrofes suprimidas? Desejosa de premiar os “esforços despendidos por Vasco da Gama na conquista do caminho marítimo para a Índia” (nota de Ivan Teixeira, para a edição de Os Lusíadas, da Ateliê Editorial), assim como de estabelecer “uma progênie forte e bela, dotada do poder de regenerar o mundo corrompido e mau” (verbete Ilha dos amores, de Vitor Aguiar e Silva, para o Dicionário de Luís de Camões), Vênus ordena a Cupido, Deus do amor, que fleche as mais belas Nereidas, ninfas do mar. Quer que elas se apaixonem pelos navegantes portugueses antes mesmo de os conhecerem. E que as traga, então, à ilha que ela fez surgir em meio ao Oceano Índico, aonde a expedição logo aportará.

A mulher como prêmio, a gravidez como cereja do bolo. Não espanta que Camões, no século XVI, assim o pensasse, mas, sim, que ainda hoje nossas sensibilidades leitoras não sejam capazes de perceber essa narrativa (sequer em hipótese) como violenta. Se eles, por seus feitos ingentes mereceram tal recompensa, que crimes teriam elas cometido para receber tal destino? A forma como se dá o encontro das ninfas com os portugueses, no entanto, merecerá consideração especial, sobretudo em função dos usos que têm sido feitos da passagem.

Vênus contou mais do que com flechas para deixar as ninfas de amor dos Lusitanos incendidas, requisitando também que a deusa Fama apregoasse, em seus ouvidos, os louvores da gente navegante / mais do que nunca os de outrem celebrara. E, em relação ao encontro com os portugueses, que jamais precisaram de flechadas ou mesmo de ações divinas para se enamorarem (e é importante que percebamos isso, os significados de “amor”, e os riscos desse amor, para cada parte envolvida), Vênus orienta ainda as ninfas a ocultarem a “flama feminina” por sob uma “pudicícia honesta”. Deixem-se estar pelos campos fingindo, “como incautas”, perseguir animais, tornando-se, elas próprias, o animal perseguido: “que vista dos barões a presa incerta, /se fizessem primeiro desejadas”, paralelo que na estrofe seguinte será enfatizado, “de acharem caça agreste desejosos, /não cuidam (‘percebem’) que, sem laço ou redes, caia /caça naqueles montes deleitosos, /tão suave, doméstica (‘familiar’) e benigna (‘agradável’)”.

Era necessário que os portugueses, caçando animais selvagens para se alimentarem, não imaginassem o que encontrariam ali. Também que elas, uma vez descobertas por eles, se mostrassem surpresas e fingissem recato. Tudo isso sendo convenientemente alegado pela própria narrativa para justificar que, independentemente das reações desses navegantes, as ninfas não só já teriam dado o seu consentimento prévio, como seriam ainda responsáveis pelos desejos que despertassem.

Eis então que, na estrofe 70, os portugueses se lançam atrás delas e as ninfas, “mais industriosas (astuciosas) que ligeiras, /pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, /se deixam ir dos galgos alcançando”. Nem a presença de galgos, cães de caça, tem sido suficiente para problematizarem a propalada consensualidade do episódio, que até hoje tem sido ora “severamente julgado pelos leitores (...) pela sua sensualidade” (Vitor Aguiar e Silva), “indecorosa e indigna de um poeta católico” (Carolina Michaëlis, em Estudos camonianos), ora entendido como “uma fantástica festa dos sentidos”, com seus “ardentes gemidos de prazer e de gozo ilimitado”, além dos “graciosos negaceios femininos” (Ivan Teixeira). Todas as posições nos parecem insuficientes.

Essa específica estrofe vem sendo, inclusive, citada ipsis litteris em trabalhos jurídicos para diferenciarem do estupro isso que, representado pelas ninfas, seria “a instintiva ou convencional relutância ao pudor ou (...) jogo de simulada esquivança ante uma vis grata (‘violência apreciada’)” (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal 1983) ou, ainda, “o simples jogo de sedução, indicativo de charme e de provocação, (...) relutância que em verdade representa a anuência com o encontro carnal” (Cleber Masson, Direito Penal, vol.3, 2018). Nesse meio, Rita Pereira Garcia foi das poucas vozes a colocar em questão o significado da passagem, citando-a logo após afirmar que “numa sociedade ainda profundamente machista, (...) não falta quem interprete um inequívoco ‘não’ como convite à insistência ou até como uma concordância envergonhada” (Mobbing ou assédio moral no trabalho, 2009). Na crítica literária, desconheço quem avente similar hipótese.

Retomando o episódio, a indústria (astúcia) seguirá sendo apontada por trás de cada gesto das ninfas, perceptível agora na queda que uma delas sofre, enquanto fugia, e que é prontamente traduzida em termos de convite à cópula: “Uma de indústria cai, e já releva (‘desculpa’), / com mostras (‘demonstrações’) mais macias que indignadas, / que sobre ela, empecendo (‘atrapalhando-se’), também caia / quem a seguiu pela arenosa praia”. E, mesmo quando não é apontada, parte-se do pressuposto de que elas estariam encenando: “elas começam súbito a gritar, / como que assalto tal não esperavam”.

Essa pressuposição de “fingimento” nunca é posta em dúvida pela narrativa, ainda que algumas passagens deixem claro que, para as ninfas, a força física era uma questão: “umas, fingindo menos estimar (‘temer’)/ a vergonha que a força, se lançavam / nuas por entre o mato, aos olhos dando / o que às mãos cobiçosas vão negando”. A própria equação apresentada (“fingir temer menos a vergonha do que a força”) é estranha, perigosa; esse fingir com que se inicia podendo tanto inverter o peso que o medo e o pudor assumem, quanto anular a importância dos dois elementos. Daí a desacreditarem a palavra da mulher e a capacidade de ela falar por si é apenas um passo.

Tudo acontece como se, uma vez flechadas, já não houvesse limite, qualquer ação lhes sendo permitida. Os valorosos guerreiros, no entanto, desconheciam as maquinações de Vênus e, pela forma como procedem, é de se imaginar que, com ou sem flechas, agiriam da mesma forma. Mais do que isso: ainda que concluamos que, sim, elas estivessem “fingindo”, é forçoso reconhecer que eles não estavam a par desse fingimento e que o fingimento só teria existido para atraí-los e excitá-los. A passagem deixa claro o quanto o estupro, seja vivido, seja imaginado, cumpre um papel real no despertar de tais desejos.

As restantes estrofes do pequeno episódio serão ocupadas sobretudo com as lamúrias que o soldado Leonardo (um grande desaventurado no Amor, nos diz a narrativa) dirige à Efire, exemplo de beleza, quando ele já estava cansado de correr ao seu alcance. Nelas, em meio a galanteios do tipo “espera um corpo de quem levas a alma” [nota 1], surgem versos que, desde sempre lidos como retóricos, metafóricos, parecem cada vez mais merecer outros tipos de leitura: “todas de correr cansam, ninfa pura, / rendendo-se à vontade do inimigo; / tu só de mi só foges na espessura (‘floresta’) ?”. O amado como inimigo, a vitória pelo cansaço.

É o direito a usar força física e, em última instância, a definir se esse uso seria ou não legítimo. É o poder de nomear como “amor” (ou qualquer outro vocábulo com propósitos similares, como: sexo, paixão, prazer e não, por exemplo, estupro, cárcere, servidão) os embates que ali se dessem. Além do fato de considerar aqueles corpos encontrados como disponíveis, usufruíveis, e, por fim, a inversão completa de sentidos que ainda hoje conhecemos tão bem, responsabilizando a vítima por tudo o que lhe acontece: ela (e não o perpetrador) detendo o real poder, ela e somente ela a culpada por fazer com que homens percam o controle, a cabeça, ajam da forma que agiram. [nota 2] 

A questão que aqui se apresenta não é exatamente deliberar se, nesse pequeno episódio, há ou não estupro, mas refletirmos sobre os sentidos de “amor” que o animam e passarmos, quem sabe, a desconfiar dessa palavra, do que ela tem podido significar, vê-la como não só aprazível, mas potencialmente perigosa. Até o século XIX, os dicionários da língua traziam estupro como “cópula com virgem, e violenta” ou “com mulher casada”, essa sendo uma violência possível de ser cometida apenas contra a mulher propriedade de um homem. Hoje, nossa compreensão vai se fazendo outra não só em relação ao estupro, mas em relação à mulher e ao próprio amor. Essas novas compreensões precisando se fazer notar também na maneira como relemos nosso passado, nossos clássicos.

Anacronismo? Mais anacrônico seguir vendo mulheres vulneráveis, reféns, como imagem de uma utopia, mulheres que fogem e acusam dor como representações de lubricidade e fingimento, esse fingimento (perverso, porque sempre suposto) sendo ainda tratado como excitante, como “graciosos negaceios femininos”. E eis o motivo pelo qual a Ilha dos amores, de uma mesma perspectiva machista, consegue tanto ser suprimida por indecorosa (caso da minha curiosa edição), quanto antologiada por seu erotismo, por exemplo, na Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, de Natália Correia, ou no Livro das cortesãs, de Sergio Faraco.

Faz-se urgente uma antologia da literatura misógina da língua portuguesa. Antologia comentada nos moldes minuciosos dessas edições de Camões. Mas agora por um viés de gênero, feminista. Um museu do pior que já se disse, também do que, sem muitas vezes nos darmos conta, ainda hoje se diz, para não sermos mais capazes de esquecê-lo nem de continuar a entendê-lo da mesma forma.


NOTAS


[nota 1]
. Ivan Teixeira, chamando o argumento de sofisticado, o traduz como “já que me roubou a alma, fica também com o corpo” – a mulher, mais uma vez, culpada.

[nota 2]. “Endechas a Bárbara”, uma das redondilhas mais famosas de Camões, é exemplar desse tipo de inversão: “Aquela cativa / que me tem cativo, / poque nela vivo, / já não quer que viva”.

 

>> Amara Moira é transativista, professora, escritora e doutora em Teoria e História Literária. Escreveu E se eu fosse puta?

 

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