Ana Paula Maia fev.19 Rodolfo.Buhrer

 

Assim na terra como embaixo da terra (Record, 2017), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, é o sexto romance publicado da escritora Ana Paula Maia, que também lançou Enterre seus mortos (Cia. das letras). Termos como hiper-realismo, hipercontemporaneidade, desumanização, violência, fulgurações do abjeto, vidas precárias, são recorrentes nos (poucos) trabalhos críticos debruçados sobre sua escrita, onde também se costuma destacar o lugar particular que a escritora vem ocupando no cenário literário nacional, outsider de lugares de enunciação instituídos ou politicamente reivindicados.

Assim na terra como embaixo da terra se passa em uma Colônia Penal para onde são enviados homens condenados por crimes hediondos. Não há nenhuma referência ao local onde fica a prisão. Isolada, é um espaço ficcional traduzível para diversas cartografias do mundo: poderia estar em qualquer encruzilhada global, poderia ser numa cidade inventada por Kafka. “Não havia placas de sinalização que direcionassem um caminho. O asfalto estava cheio de rachaduras e depressões. Nenhum animal rastejava no acostamento. Nenhum pássaro no céu ou mesmo pousado em uma árvore. Nenhum arrulhar. Nenhum ninho. Nem mesmo o vento era possível ser sentido. Ao olhar para trás, não podia ter certeza de seguir para o início ou para o fim, pois ambas as direções se assemelhavam.”

Mas há um elemento material inescapável que territorializa a ação, de modo que saibamos que a história se passa no Brasil: há ossos de escravos no subsolo, há um passado colonial em cova rasa, há um presente produzido na espiral-plantation, que nutre as continuidades nacionais mantendo certos paradigmas de dominação intactos. “As especulações em torno da Colônia são muitas. Tudo o que se sabe é que o lugar sempre esteve envolto em mistério de desaparecimento em massa e assassinatos. Há mais de 100 anos, quando os escravos que aqui viviam eram, em sua maioria, torturados e mortos, era conhecido como o Calvário Negro. Décadas depois da libertação dos escravos, um silêncio retumbante tomou conta da fazenda”. Ainda quando estes ossos vem à tona, “não comentam sobre o que desenterraram. No silêncio ficaram e no silêncio permanecerão”.

Na Colônia Penal reina Melquíades, o diretor, “cabeça lisa e branca como um ovo”, para quem todos precisam dizer “sim, Senhor”. Melquíades estava em início de carreira quando foi enviado à Colônia. “Passou mais tempo atrás daqueles muros do que a maioria dos criminosos que disciplinou.”.Retomando o arquétipo do Senhor (a masculinidade branca dominante), ele dispõe do necropoder (como visto em Necropolítica, de Achille Mbembe) sobre a vida e a morte de todos na colônia, dando o nome de “medida socioeducativa” às suas caçadas, nas quais os homens eram abatidos como bichos. Sendo parte do lugar que domina, Melquíades também foi por ele constituído, “jamais poderia viver em sociedade novamente, foi corroído pelo sistema que defende”.

Em um sistema opressor, ambas as partes da relação serão afetadas pelas diferenças que as hierarquiza. Assim pensou Toni Morrison, aos nos lembrar que “A escravidão dividiu o mundo ao meio, ela o dividiu em todos os sentidos. Ela dividiu a Europa. Ela fez deles alguma outra coisa, ela fez deles senhores de escravos, ela os enlouqueceu. Não se pode fazer isso durante centenas de anos sem que isto cobre algum tributo. Eles tiveram de desumanizar, não só os escravos, mas a si mesmos. Eles tiveram que reconstruir tudo a fim de fazer este sistema parecer verdadeiro”. Da mesma forma, Melquíades, “dedicou a vida a permanecer encarcerado” em um sistema que o enlouqueceu.

Mesmo Taborda, o carcereiro, “não se sente muito diferente dos presos que vigia”. Único funcionário que sobrara desde o anúncio de que a prisão seria desativada, ele é a voz narrativa que rompe os silêncios e revela os segredos subterrâneos do lugar, mas, sendo ele parte da manutenção do sistema, “do que omitiu, agora está aprisionado. Poderia atravessar os portões da Colônia, sentir a liberdade na carne, mas isso já não é possível no espírito. Sua alma, fisgada, já está enterrada, e o peso que sente abater-se sobre seu espírito é a terra que pesa toneladas sobre si”.

Dessa forma, ainda que seu fim já esteja anunciado, o sistema da Colônia está em vigor e todos estão submetidos ao horror: enquanto os apenados são vertidos em coisa, objeto, animal, escravo – os administradores performam a outra face da mesma moeda: “É uma coisa lenta, que vai te cozinhando bem devagar, até que você se dá conta de que não tem mais volta. Você perde toda a afeição pelo outro, nem se dá conta de que esses homens são seus semelhantes”.

Os presos transferidos para a Colônia desconhecem seu destino, pois a condição de aprisionados faz com que “Sua alma e seu corpo não pertencem mais a você. Seu direito de saber também não. Só vai saber o que eles quiserem que você saiba.” Os presos são bem poucos à altura que o narrador começa a história, a maioria já eliminada. Valdênio, um velho homem cuja “pele é mais negra que as noites sombrias em que percorreu por décadas os cárceres”, com “seu corpo, moído no inferno, aguarda o fim dos seus dias, já não questiona mais. Obedece. Cumpre as ordens. Baixa a cabeça e se retira. Apanha, às vezes com motivo, às vezes sem. Por onde passou, derramaram seu sangue. Seu rastro pode ser seguido. Intriga ter sobrevivido durante tantos anos. Pouquíssimos chegam à terceira idade encarcerados”. Apenas a última palavra na descrição de Valdênio o diferencia da descrição de um escravo. Entre os presos está também Bronco Gil, um índio de flecha certeira e um olho de vidro, filho de “um fazendeiro próspero e um tanto cretino (...). Sua mãe tinha sido estuprada pelo pai. Bronco nascera na tribo onde fora criado até os 12 anos, quando, por fim, o pai decidiu buscá-lo”. Na Colônia, é o índio quem desenterra o passado por cima do qual se caminha: “Certa vez, Bronco Gil preparava o solo para plantação. O sol inclemente torrava sua pele morena, e, na sua quietude, cavava como quem procurava por um segredo”.

Desde os personagens, a experiência-limite que “compartilham” e a lógica à qual estão submetidos, o paradigma da escravidão como gênese do cativeiro plasma ao longo de toda ficção. Não somente como referência ao aparato de um tempo pretérito, mas antes como forma de cartografar a modernidade pelos desmandos e desumanizações do presente. Já exposto no título, o passado e o presente estão envoltos em uma espiral de continuidades que salientam, na ficção, nosso paradigma mais durável em termos de nação, qual seja, a colonialidade, sustentada na manutenção de hierarquias de lugares de poder, agência, e do valor da vida.

Antes de ser prisão, existia naquele território um campo de extermínio destinado à punição daqueles escravos que iam contra o cativeiro. Passado o tempo, as formas desse campo antigo ainda sustentam as funcionalidades do cárcere atual: “A estrutura subterrânea do pavilhão se baseou na antiga estrutura que mantinha os escravos encarcerados por mau comportamento”. Tudo no espaço remete a uma espiral-plantation: “Caminha espreitando o lado leste, em que há restos de uma antiga construção com paredes lodosas, parcialmente sustentadas por vigas de ferro enferrujadas e algumas grades que, apesar de corroídas, ainda impressionam mesmo depois de um século, quando escravos eram trazidos para cá, açoitados e mortos”. Espiral-plantation, porque sinaliza justamente essa forma de problematizar a passagem do tempo filtrando aquilo que fica, que permanece, como vestígios de ruínas que resistem, interseccionando tempo, espaço, violência e esquecimento.

Entre parênteses, cabe dizer que essa potência de trazer à tona o que estava enterrado foi o elemento destacado pelo júri que recentemente deu a Ana Paula Maia o prêmio São Paulo de Literatura de melhor romance: “O livro propõe uma poderosa metáfora para muitas situações vividas no momento atual e, ao mesmo tempo, faz uma provocação para que se olhe de forma questionadora para o nosso passado enterrado em tantas ‘Colônias’ esquecidas e invisíveis aos olhos da maioria de nós”, afirmaram.

DO QUE MARCA A AUTORIA

“Como é ser uma escritora negra, mesmo que você não tematize questões raciais em seus livros?” Antes da resposta da romancista Ana Paula Maia, a quem essa pergunta foi direcionada recentemente, pensemos um pouco na própria questão.

“Como é ser um/a escritor/a negro/a?” é uma pergunta que a crítica, a mídia e os leitores sempre que podem direcionam a pessoas negras que escrevem, Independentemente do que escrevam, mas que nunca é uma preocupação quando se trata de autores brancos. “Como é ser uma escritora branca, mesmo que você não tematize questões raciais em seus livros?” é uma pergunta que parece absurda no imaginário literário coletivo, pergunta que não consta na galeria nacional, pergunta que não existe. A ordem dos fatores altera o resultado, evidentemente.

Da mesma forma que “questões raciais” sinalizando tanto o negro como tema quanto temas do autor negro, é uma maneira redutora e limitada de pensar a dimensão da racialidade na história, na política, na sociabilidade e na cultura brasileira, inclusive porque “raça” implica relação, e, portanto, abrange a todos os envolvidos em uma sociedade plurirracial, como a nossa. A ideia de que trazer a dimensão da “raça” para o discurso (literário) implica em uma escrita pré-anunciadora (com temas e problemas “específicos”) é uma falsa ideia, porque deixa de considerar que falar de “raça” é também tratar de poder, de constituição nacional, de modernidade, de hierarquias espaciais, e por aí vai. Eduardo de Assis Duarte mostrou isso em Machado de Assis. Silviano Santiago já observara o mesmo em Oswald de Andrade.

“Como é ser uma escritora negra, mesmo que você não tematize questões raciais em seus livros?” “Sou escritora, pronto. O meu lugar de fala se encontra dentro dos meus livros”. Aqui brevemente resumida, a resposta de Maia contém veredas. No nosso momento, em que as lutas por representatividade questionam a fundo os limites da representação e dos apagamentos, toda neutralidade gera atrito. Por outro lado, o fato de que a marcação racial (em perguntas como essa) persista ainda quando a autora não a reivindique, significa que a categoria escritora é que ainda precisa ser marcada – escritora, como alguém que escreve, não circunscrita ao que se espera que uma mulher negra escreva. Visto com cuidado e observando as substanciais diferenças, trata-se de uma questão já deflagrada em Carolina Maria de Jesus, que precisou lutar para se inscrever fora do que as definições prescreviam a ela devido ao seu lugar na intersecção de raça, gênero e classe.

A questão, portanto, é que, independentemente das respostas e perguntas individuais de cada autora frente à sua epiderme e pertencimento racial, é preciso perceber as nuances sinuosas do sistema, entre a busca por visibilizar dicções plurais no texto nacional e a classificação que sub-repticiamente circunscreve a expressão a um “lugar de negro” (Lélia Gonzalez) simbólico. Por outro lado, se o lugar de fala está exposto no romance, então, para ser articulado ele dependerá da interpretação engendrada no lugar da escuta, do leitor, da comunidade leitora.

Na literatura brasileira, há um corpo de romances que compartilha a potência de produzir visibilidades contra o esquecimento, contra o silenciamento que sustenta a permanência de estruturas coloniais, aqui agora, em nossos dias. Como se a própria forma romance fosse uma tecnologia boa para curtocircuitar os silêncios que favorecem a manutenção de hierarquias do valor da vida. O que conecta esse corpo em um conjunto textual é a autoria de mulheres negras. Mas essa autoria é deflagrada “como o corpo fosse documento” (Beatriz Nascimento), isto é, como um lugar inscrito no texto, cuja interpretação não está a priori submetida à avaliação do posicionamento político de cada autora frente a identidade pessoal e autoral. Primeiro porque este não é o papel da crítica, segundo porque não é producente, visto que este posicionamento nem sempre será acessível a nós, quando olhamos para escritoras que publicaram em épocas do passado, por exemplo. A palavra fala. A palavra escrita é da ordem do evento, do advento e do vento (tem que sentir primeiro pra saber a direção).

 

>> Fernanda Miranda é crítica literária e atua em cursos de formação de professores para a educação étnico-racial.

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