Em Ezequiel (Editora Pantim, 2018), de Margô Paraíso, uma das assinaturas poéticas da escritora baiana Luciany Aparecida, o leitor tem à sua disposição 11 recomendações de leitura do livro. Os itens constam em uma lista publicada quase no desfecho da obra, catalogada como poesia brasileira, mas que apesar disso não se prende a classificações. As indicações esclarecem em certa medida a arquitetura empreendida por Luciany e abrem um atalho possível de leitura, ainda que o leitor opte por tomar outros caminhos. Ezequiel é escrito em parte usando o corpo humano como metáfora e, uma vez materializado pela linguagem, assume que quer ser um corpo, ter seu próprio corpo, com pés, mãos, tronco e sexo. A partir dessa lista também sabemos se tratar do sétimo livro assinado como Margô Paraíso, autora “morta” em 2013 para dar lugar às outras vozes de sua autora empírica. É também o único momento do texto em que o nome de Luciany aparece. A provocação final do texto, intitulado 11 pontos para ouvir gente, acena diretamente para quem lê – “Esse livro quer te ouvir: fala” –, e é a partir dela que inicio minha reflexão.
Entre as marcas de certa produção literária contemporânea (e aqui friso “certa”, porque as ficções de que me ocupo são uma das possibilidades do enquadramento escorregadio e complexo que é o contemporâneo), é cada vez mais frequente encontrarmos narrativas compostas por textos que denunciam um investimento autoral para a constituição do sentido do texto. Muito distante de querer lançar por terra o significado dos estudos de recepção em que o leitor passa a dividir importância com o autor, notadamente os trabalhos de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, de quem as ideias de partida desse texto são profundamente devedoras, aposto na aproximação de uma determinada postura de autor do que no campo das artes visuais chama-se curadoria. Se lermos a partir dessa possibilidade, isso teria duas motivações: o reforço da presença da figura do autor, retomada de modo declarado na pós-modernidade, e a valorização crescente da recepção, chamada nesses experimentos para compor o trabalho junto com o autor, tal e qual o “espectador emancipado” defendido por Jacques Rancière. Para este filósofo, a recepção não observa de forma estática o que lhe é apresentado, mas age a partir de analogias entre o sabido e o desconhecido, compondo sua própria experiência de fruição estética, bem como o próprio objeto de arte, às vezes à revelia do que o artista pretendia. O espectador emancipado sinaliza para uma postura política, traçando um pontilhado até uma das questões centrais para Rancière, a de que não há separação entre estética e ética.
O leitor não perde hora e vez ao pensarmos práticas curatoriais por parte da autoria. A escolha por uma nomenclatura do repertório das artes visuais dialoga com outro aspecto desse contemporâneo do qual falamos, a forma expandida, seja em relação ao tema ou aos aportes de produção utilizados. Portanto, a curadoria como uma dimensão da autoria toma partido de que a literatura brasileira contemporânea atua no campo expandido, mesclando-se com outras semioses e dando o ultimato a outro conceito em baixa no campo das poéticas visuais, mas ainda revisitado nos estudos literários, o de autonomia estética. Assim, trazer a curadoria para pensar a recepção, pelo menos no caso proposto, deve se dar por sua localização no campo da autoria, auxiliando o entendimento dos efeitos pretendidos para o público.
É bom que se diga que não estamos falando em substituição de conceitos ou tentativa de criação de modismos acadêmicos, mas de uma reflexão que coaduna as opiniões de que a literatura do presente extrapola seus próprios limites e sua autonomia, como defende pesquisadoras como Florencia Garramuño e Ana Kiffer. Se assim for, parece natural também que a crítica se movimente entre diferentes campos em busca de uma maior compreensão para a leitura do texto contemporâneo. A observação de narrativas recentes localiza a função do curador não apenas como hífen entre autor e espectador, mas como mais uma atribuição assumida pela autoria da obra, essa mesma autoria que desaparece enquanto característica individual do sujeito escritor, conforme sinalizado nos clássicos textos de Michel Foucault e Roland Barthes (O que é um autor? e A morte do autor, em ordem) e ressurge nas práticas contemporâneas, problematizando as noções de real e ficcional.
GALERIA 1: DE CATALISADOR A CRIADOR
Nas artes visuais, os estudos de curadoria são relativamente recentes, muito embora a atividade caminhe ao mesmo passo da história das exposições. A palavra curador, do latim curare, chega com este sentido na língua portuguesa. Até meados dos anos de 1950, curar ou conservar as obras de arte era o papel estrito dos curadores nos museus, na época associados aos diretores artísticos e/ou programadores. Mudanças museológicas e expográficas deslocaram a função conservadora para a de mediação ou propagação da experiência artística. Mais uma mudança é operada quando as exposições ganham novo perfil, incorporando a perspectiva desses profissionais a partir de eixos poéticos que assumem uma dimensão de criação. Sonia Salcedo del Castillo, em Arte de expor: curadoria como expoesis, publicado em 2014, apresenta o pouco consenso a respeito da prática curatorial a partir dos depoimentos de vários curadores e críticos de arte do Brasil e do exterior. No estudo, Jens Hoffmann sugere que uma exposição pode ser um trabalho de arte em si mesmo. Ele criou o projeto The Next Documenta Should Be Curated By An Artist, trabalho em que artistas opinam sobre curadoria e subjetividade, e adaptou a proposta para a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Já Paulo Herkenhoff e Ivo Mesquita discordam dessa posição e separam arte e curadoria tal e qual arte e curador.
O mais interessante a ser notado – mais até do que a constatação de que o conceito, bem como as formações em curadoria são ainda jovens no país (basta lembrar que o termo curador se firma a partir dos anos de 1980) e, como tudo em construção, alvo de opiniões divergentes – está em uma das hipóteses que infla o estudo de Sonia Salcedo del Castillo, a de que uma poética expositiva se constitui enquanto obra e se faz à maneira da poesia. Um pouco do que penso aqui no sentido oposto e abrindo caminho aos gêneros da prosa.
O pesquisador e curador Diego Matos, um dos organizadores de Cildo: estudos, espaços e tempo, finalista do Prêmio Jabuti 2018, entende a curadoria como também uma derivação da crítica e, apesar de não enxergar uma exposição como obra em si mesma, defende que é possível visitarmos exposições como narrativas. “Há produções com uma dinâmica de leitura como a de um romance, quando observamos a composição completa”, explica [nota 1]. Se a palavra pode ser matéria para uma exposição, outras matérias, digamos não literárias, podem dividir o terreno do livro, fazendo com que os artistas se movimentem em diferentes campos. E aqui podemos lembrar de muitos exemplos, os claviculários com chaves sem segredo e grafadas em diversos trabalhos da artista Elida Tessler no início dos anos 2000, ou mais recentemente as fotografias de Elisa Pessoa em obra conjunta com a escritora Paloma Vidal, em Dupla exposição, de 2016. Ao artista que não se limita a um lugar de produção, porque em certa medida questiona a natureza e a sua função como artista, Ricardo Basbaum refere-se como “artista-etc”. Em depoimento ao projeto de Jens Hoffmann já citado, o artista, curador e crítico detalha: “(de modo que podemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc.); (...) Vejo o ‘artista-etc.’ como um desenvolvimento e extensão do ‘artista multimídia’ que emergiu em meados dos anos de 1970, combinando o ‘artista-multimídia’ fluxus com o ‘artista conceitual’ – hoje, a maioria dos artistas (digo, aqueles interessantes) poderia ser considerada como ‘artistas multimídia’, embora, por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura especializada”. [nota 2]
Outra questão que há de se pensar, trazida do campo das poéticas visuais, é a exposição do processo enquanto obra, o que na visão de Diego Matos pode resvalar para a própria desmaterialização da arte, afinal duas perguntas se interpõem: ao expor o processo em si, o que resta como obra final? Deve restar alguma coisa? No caso da literatura, algo similar seria o que Reinaldo Laddaga intitula de estética de laboratório, ao argumentar sobre obras que ganham potência a partir da exposição de sua engrenagem. O romance luminoso, do uruguaio Mario Levrero, e O falso mentiroso, de Silviano Santiago, em que o próprio literário é satirizado, nos ajudam a visualizar essa questão. Mas é possível lembrar ainda o exemplo radical de Leonardo Gandolfi e Marília Garcia em Trânsito – versão compacta e dublada, adaptação de Traffic, de Kenneth Goldsmith, obras em que são transcritos os boletins de trânsito das cidades de São Paulo e Nova York, respectivamente.
Pensar a curadoria, seja no campo das artes visuais, seja no literário, remete à ideia de espaço de vivência e de reciprocidade, sendo, portanto, a recepção parte integrante da estratégia artística posta em prática. Há de se pensar também que, no momento atual, em que muitos textos prescindem das características dos gêneros em que foram escritos, a curadoria soa quase como uma junção de fragmentos estéticos e históricos auxiliares à experiência de fruição, não como intérprete ou propriamente tradução, mas buscando pontos de unidade para a construção do sentido. O leitor é conduzido ao trabalho de arte como numa visita guiada e o espaço, peça-chave na dimensão das artes visuais, deve ser entendido como o tempo de experiência e no caso da literatura, do tempo de leitura.
A adoção de estilos próprios pelos artistas, o que reorienta a criação e a crítica da forma, mostra um desejo de reaproximação entre o eu e o mundo. No entanto, nem sempre isso é percebido de largada. A escritora Luciany Aparecida reconhece “certa dificuldade” por parte dos leitores para o reconhecimento de alguns de seus textos. Menos pela forma, e mais pela proposta de quebra dos protocolos de leitura que mantemos. Contos ordinários de melancolia, de 2017, como o próprio título motiva, cria uma expectativa de que serão encontrados contos no sentido tradicional do gênero. No entanto, o ritmo dado aos pequenos textos, por vezes exigindo uma construção sintática por parte do leitor, gera a dúvida classificatória. Seriam contos ao passo de poesia? São os protocolos de leitura, o jeito com que nos habituamos a ler (ou a que fomos habituados), que nos fazem reconhecer o que é um romance, uma poesia, um tweet ou uma notícia de jornal e como lê-los. Nesse contexto, para a autora, a curadoria não trata de uma intromissão descabida no texto, mas de trazer maior potência ao sentido do texto, tendo o leitor a decisão final como sempre foi, antes mesmo da teoria se dar conta disso.
Em Auto-retrato, de Antônio Peixôtro e Ruth Ducaso (duas outras assinaturas de Luciany Aparecida), a folha de rosto, índice aparentemente apenas editorial, é bem-aproveitado. É nele que a autora apresenta aos leitores os autores do zine, portanto, ficcionalizando em espaço que seria extraliterário e jogando com as autorias empírica e modelo. Peixôtro é apresentado como: “membro da Pantim Coletivo, atualmente trabalha na ilustração de um livro de poemas da artista Taise Dourado. Em 2015, ilustrou a tese de doutoramento da pesquisadora Luciany Aparecida”.
GALERIA 2: NO PRINCÍPIO, O ESTRANHAMENTO
A discussão que proponho começa pela minha experiência de leitura e, preciso frisar, de uma leitura específica, a dos livros do escritor Valêncio Xavier (1933-2008). A sensação era invariavelmente de incômodo, seguida de uma breve satisfação por talvez “começar a entender” o que o narrador de seus livros dizia. O estranhamento inicial tinha como justificativa o modo de organização do texto que junta fotografias, frames de cinema, imagens de almanaques científicos, anúncios publicitários entre outros elementos, além de pequenos textos do autor, notas explicativas, legendas forjadas e outros itens inclassificáveis. Aqui e acolá lembrava Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1974, e com arranjos formais incomuns para o período. Fato é que em qualquer tempo um texto como o de Minha mãe morrendo e o menino mentido ou Rremenbranças da menina de rua morta nua: e outros livros exige uma presença do leitor, um impulso maior. Em Minha mãe morrendo..., lemos (ou eu leio) as memórias de um menino-narrador, cuja presença da mãe, mesmo depois de morta, é marcante. No segundo, temos pequenas narrativas de violência e, na principal, que nomeia o livro, baseada em um fato verídico, o assassinato de uma criança em um trem-fantasma numa cidade do interior de São Paulo. Os livros de Valêncio (e não apenas os citados, porque essa consideração vale para ler a sua obra completa) apresentam um autor-modelo, recorrendo a Umberto Eco, que exige uma participação efetiva do leitor em sua lógica de montagem. Não dá para fazer corpo mole e dar o livro como lido sem se entranhar pelo labirinto do texto. A questão é que esse labirinto é guiado, como se o autor empírico, que antecede e propõe o autor-modelo, quisesse de livre e espontânea vontade fazer companhia ao leitor no percurso de visitação. Ser sua companhia e fazer-se presente é uma decisão autoral. Dessa forma, a recepção conhece as fontes de textos e imagens exportadas de outros locais para o livro. O que pode ser um mero detalhe para uns, uma mina de ouro para outros, e um dado concreto para a crítica: não se trata de apêndice do texto, mas sua parte constituinte. O binômio forma e experimentação tão caros aos formalistas e aos modernos por si só não justifica uma leitura dos romances a partir da ideia de curadoria, mas, sim, uma análise da autoria como propositor a partir de várias chaves de leitura.
Minha mãe morrendo e o menino mentido é catalogado como “romance brasileiro” e provoca as caracterizações dadas normalmente ao gênero romance ou até mesmo ao que se convencionou chamar literatura, devido a justaposição de textos e imagens alheias ao mundo das artes, em um experimento de reconfiguração dos objetos, como propõe o ready-made duchampiano. Para além dos novos sentidos criados na obra, Valêncio Xavier utiliza estratégias de outras áreas, fazendo o livro transcender a sua condição de literatura. Um deles é o efeito rítmico de cinema, estampado nas três narrativas que o divide. Em estudo dedicado ao autor, a pesquisadora Ângela Maranhão Gandier afirma ser notória a tentativa de reproduzir a linguagem de cinema, sendo o livro, portanto, um espaço de confluência de várias práticas com o propósito de que tais “contrabandos” formais atribuam outros significados ao texto.
GALERIA 3: A ARTISTA VISUAL ENQUANTO ESCRITORA
Uma das representantes do Brasil na Feira Internacional do Livro de Guadalajara em 2018, Deisiane Barbosa, diz se beneficiar das aproximações entre artes visuais e literatura. Um dos mais comentados produtos de um amplo projeto artístico da autora, que se intitula “artista visual, poeta e andarilha”, é o livro cartas à Tereza: fragmentos de uma correspondência incompleta, publicado de modo independente, e que tem se desdobrado em outras ações artísticas entre os estados de Pernambuco e Bahia. O livro, como salienta a autora, é uma costura de maços de papel onde estão reunidas cartas à personagem Tereza, uma espécie de Godot, do Samuel Beckett, de alguma ilha não especificada na narrativa. A aproximação com o leitor aparece na largada. Antes de virarem livro, pequenos trechos de cartas à Tereza apareciam em dois videoartes e cartões-postais com fotografias feitas em diferentes cidades do Recôncavo Baiano. O passo seguinte foi de certa forma determinada pelo público. “As pessoas perguntavam quem era Tereza, queriam ler mais das cartas”, explica. “Muito tempo depois, resolvi procurá-la (a Tereza). A princípio, uma personagem-destinatário, depois descobri que ela é mais real do que eu julgava”, escreve em um dos sites do projeto.
Além de publicar os textos em formato de livro, a autora acrescentou outro tópico ao projeto, na tentativa de dar fisionomia à Tereza. Por meio de consulta a leitores e entrevista com mulheres chamadas Tereza nas cidades por onde passava, Deisiane começou um exercício de criação do perfil da personagem, quase uma descrição, muito embora ela assuma que a personagem Tereza pode ser qualquer um, a começar pelo leitor afetado pelas cartas. O passo mais recente, que também é resultado das entrevistas com Terezas diversas, portanto com as leitoras, é a catalogação do Inventário da /ilha\ de Tereza, disponível em andarilla.tumblr.com e desenvolvido como parte do mestrado que a escritora realiza em Artes Visuais, na Universidade Federal de Pernambuco.
A busca de referências materiais no mundo tem relação direta com a recusa aos meios tradicionais de produção e redimensiona o espaço em relação ao tempo da experiência, em um envolvimento que se dá com o corpo e por meio dele. O corpo está na gênese do conceito de errância, apresentado por Paola Berenstein Jacques como uma espécie de “arte de andar pela cidade” ou de “errar pela cidade” e é um dos leitmotiv para o trabalho de Deisiane Barbosa, que literalmente buscou material para escrever nas errâncias pelas cidades. A escritora entende cartas à Tereza como um livro de artista e reconhece um trabalho de curadoria com vistas na dimensão da troca com o leitor. O processo 100% artesanal, resultado de uma escolha consciente, segundo a autora, mistura múltiplos procedimentos como impressão, fotografia e costura manual. Deisiane também tem trabalhado com serigrafia e tingimento de papel em outras produções. O projeto completo de cartas pode ser conferido em cartasaatereza.wordpress.com.
SAÍDA: O AUTOR AINDA ESTÁ LÁ
Walter Benjamin, em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, afirma que uma obra deve seguir sua reflexão infinita, mediante o experimento de outra pessoa. Essa aposta no espectador faz pensar que, mesmo quando discreto, o trabalho bem-estruturado de curadoria pode ser percebido inconscientemente. Essa ressalva é fundamental para não parecer que apenas textos declaradamente experimentais ou de múltiplas linguagens fazem uso da prática curatorial, quase como um rodapé para o entendimento do leitor (e como se o leitor precisasse de alguém que desenhe uma interpretação). Em Com armas sonolentas: um romance de formação¸ de Carola Saavedra, o investimento de complementação da leitura está presente a cada parte do livro (título, epígrafes, notas e traduções), ainda que o leitor se encontre diante de um romance mais próximo da tradição (ou que faça o elogio do grande romance). O livro conta a história de três mulheres, suas relações com a maternagem, tocando no não desejo de ser mãe, na violência doméstica e na difícil tarefa de se desligar dos papeis atribuídos ao gênero feminino. Aparentemente, tudo está organizado sem arroubos experimentais, radicado apenas nas palavras, sem recursos de outros sistemas artísticos. E aqui escolho não me ater a questões editoriais que eventualmente podem gerar interferências no texto. No entanto, a tomar pela escolha do título, retirado do poema Primero sueño, de Sor Juana Inés de la Cruz, associado às notas explicativas da parte final e a tradução de poemas lidos por uma das personagens, torna-se inevitável observar a presença da autora. O leitor não precisa se sentir obrigado a ler tudo, mas é fato que as notas dão a exata dimensão do que significa a “personagem ausente” do livro, Sor Juana Inés, escritora, poeta, dramaturga e considerada a primeira intelectual latino-americana. É um tipo de texto que ganha maior envergadura a depender da movimentação feita pelo leitor e que exige entradas e saída do literário. Não só o leitor, mas a crítica do texto pode agregar valores que lhe são exteriores e que por isso lhe dão uma dimensão cultural ampliada.
Em Sobre o ofício do curador, Regina Cintrão afirma que o modo como uma determinada seleção de obras é exposta denuncia a curadoria do trabalho, porque cabe a esta a realização de uma montagem que estabeleça relações formais ou conceituais entre as peças e as localize de forma estratégica no campo por ela ocupado, “onde os diálogos propostos facilitam a compreensão dos objetos expostos, ou num labirinto de ideias onde o visitante se sente perdido”. Portanto, a intenção é observar alguma autoria contemporânea a luz da curadoria, assumindo a possibilidade de incendiar o conceito de literário, uma vez que a curadoria reforça a ideia de modo de composição com vistas à leitura como visita guiada, portanto jamais neutra, invariavelmente interessada.
NOTAS
[nota 1]. O curador foi entrevistado em janeiro de 2019 para este ensaio, que faz parte de um estudo de pós-doutorado sobre as relações entre autoria e curadoria na narrativa brasileira contemporânea. Agradeço ao professor de Teoria Literária e parceiro de investigação Anderson Luís Nunes da Mata (UnB) pela leitura da primeira versão deste ensaio.
[nota 2]. CURI, Fernanda. Ricardo Basbaum: um artista-etc. Disponível em www.bienal.org.br/post/551. Acessado em 29 de janeiro de 2019.
REFERÊNCIAS
APARECIDA, Luciany. Ezequiel/Margô Paraíso. Salvador: Pantim, 2018.
_______. Auto-retrato/ Antônio Peixôtro e Ruth Ducaso. Salvador: Pantim, 2018./
_______. Contos ordinários de melancolia/ Ruth Ducaso. 1ª ed. Salvador. Boto-cor-de-rosa livros, arte & café/ paraLeLo13S, 2017.
BARBOSA, Deisiane. cartas à Tereza, v1: fragmentos de uma correspondência incompleta. 1ª ed. Cachoeira: Edição do autor, 2015.
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 1999.
CASTILLO, Sonia Salcedo del. Arte de expor: curadoria como expoesis. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2014.
CINTRÃO, Regina. “As monatagens de exposição de arte: dos Salões de Paris ao MoMa”. In. RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. 11ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
GANDIER, Ângela Maranhão. Memória e história, fotografia e cinema nas narrativas transemióticas de Valêncio Xavier. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura). 182 p. Universidade Federal de Pernambuco, 2013.
GÓIS, Edma de. "A reinvenção da forma no livro de artista de Valêncio Xavier". In. AZEVEDO, Luciene; CAPAVERDE, Tatiana da Silva (orgs.). Escrita não criativa e autoria: curadoria nas práticas literárias do século XXI. Editora E-Galáxia, 2018. (edição e-book).
GOLDSMITH, Kenneth. Trânsito – versão compacta e dublada. Dublagem de Leonardo Gandolfi e Marília Garcia. São Paulo: Luna Parque Edições, 2016.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2014.
KIFFER, Ana; GARRAMUNÕ, Florencia (org.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de Laboratório. Trad. Magda Lopes. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
SAAVEDRA, Carola. Com armas sonolentas: um romance de formação. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
XAVIER, Valêncio. Minha mãe morrendo e o menino mentido. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_______. Rrmembranças da menina de rua morta rua: e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.