AugustoDeCampos LiaDePaula.MinC reproducao

 

Aviso ao leitor, de antemão, a singular condição de uma casualidade da vida. Acontece que, antes de pesquisar ou estudar ou até de saber ler, nasci na família Campos. Meus primeiros contatos com a escrita e com a leitura se deram por meio da poesia concreta, através de quadros com os poemas expostos na casa do avô e dos livros espalhados pela casa. A curiosidade instigada por aquelas letras-imagens foi capaz de despertar todo o tipo de fantasia na abertura icônica de um universo infantil.

Mais tarde, durante o processo de alfabetização na escola, já me considerava adulta, pois portava um segredo que meus colegas de pré-escola não imaginavam o que significava (certamente tampouco eu): luxo é lixo, poesia é risco, viva é vaia. Como foi bom me imaginar sendo a guardiã de tamanha descoberta! Aos poucos, fui incorporando a curiosidade poética à minha vida, o que moldou não só a minha maneira de ler e escrever, como a minha forma de ver o mundo.

Nasci e cresci, portanto, acompanhada em minha trajetória pela poesia experimental, pela arte revolucionária e por uma forte consciência política. Diante disso, então, o que eu me tornei? Bem... uma acadêmica. Trilhando os mesmos caminhos de meu pai – pós-doutor em Física – decidi estudar um assunto um pouco mais perto de casa: a poesia de Augusto de Campos.

Não tive, no curso de Letras, nenhum contato direto com as obras de Augusto, Haroldo de Campos ou Décio Pignatari, exceto por uma matéria em meu último ano – dada pelo professor que me orientaria no mestrado e depois no doutorado. Foi uma grande alegria ver discutidos em sala de aula poemas que haviam me marcado profundamente e poder observar nos alunos como aquilo os instigava/desafiava, da mesma forma que, por tanto tempo, me instigaram e desafiaram. Se ainda havia alguma dúvida, naquele instante foi sanada e eu deveria prosseguir nos estudos acadêmicos a analisar a obra de Augusto – a despeito de ou mesmo por conta dessa proximidade inevitável ao tema.

Finalizo essa medíocre jornada da heroína exemplificando (abaixo), o impacto da poesia concreta na vida de uma criança de seis anos, que, mesmo sem saber como, tenta seguir os passos dos autores que aprecia.

Augusto de Campos poemaRaquelCampos reproducao

OUTROS POEMAS

No prefácio (outronão) do livro Outro, de 2015, o próprio Augusto menciona o “silêncio decenal” no que diz respeito à sua publicação de poemas — sendo a anterior de 2003. Este silêncio, creio eu, esbarra em uma série de questões não só poéticas como políticas. Seus posicionamentos políticos e as polêmicas em que se envolveu com alguns dos principais jornais do país — que, de acordo com o poeta, incentivaram os discursos de extrema -direita e a instabilidade política que estamos vivendo, fora o ódio à esquerda, personificado na figura do Partido dos Trabalhadores – foram alguns dos motivos pelos quais a grande mídia passou a não mais dar tanto espaço ou destaque a Augusto. Um exemplo disso ocorreu em 2017, quando ele foi o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Janus Pannonius de Poesia, na Hungria, o que não foi noticiado em nenhum grande jornal nacional.

O antídoto para isso, de uns tempos para cá, tem sido a internet. Muitas de suas entrevistas e mesmo alguns poemas inéditos foram publicados online, fugindo ainda mais do espaço restrito do papel para encontrar uma possível morada na potencialidade criativa e tecnológica dos computadores, tablets ou celulares. “Há 60 anos, ao compor os poemas em cores do ciclo POETAMENOS, penosamente datilografados em folhas dobradas, com interpostos carbonos de várias cores, eu clamava por luminosos ou filmletras”, disse Augusto no prefácio de Outro. “Não posso me queixar. O mundo digital colocou tudo isso ao alcance dos meus dedos. (...) Os erros ou ineficiências são todos mea culpa. E a única justificativa que posso dar é a de ter chegado muito tarde a um mundo muito novo”. Tarde ou não, Augusto aproveitou criativa e poeticamente como ninguém as possibilidades que as inovações tecnológicas o permitiram vislumbrar e executar.

Mais recentemente, desde 2018, o @poetamenos tem sua própria conta do Instagram – espaço de imagens, sons e texto, em que pôde produzir e reproduzir, verbivocovisualmente, muitas de suas criações. Augusto utiliza esse espaço para divulgar matérias relacionadas à sua vidaobra, trechos de entrevistas, poemas e traduções, fotos antigas etc.; enfim, ele conseguiu renovar a sua voz cibernética através da linguagem dinâmica e concisa das redes sociais, que tem muito em comum com seu estilo poético. Fora isso e, talvez ainda mais importante, encontrou espaço para publicar poemas inéditos ou contrapoemas, como ele mesmo os chama. Alguns deles são intraduções ou recriações: espécies de ready-mades pontuais, geralmente em resposta a acontecimentos políticos recentes.

Podemos citar como exemplo o contrapoema ERRAMOS! (abaixo), publicado no mesmo dia como resposta a uma manchete da Folha de S.Paulo de 23 de dezembro de 2018. A manchete dizia: “otimismo com economia dispara”. Já na sacada irônica do contrapoema de Augusto, “o otimismo do nosso país com a economia diz: para!!!!”, escrito em verde e amarelo sob um fundo azul. As cores da bandeira – sem o branco e seu desejo de paz – demonstram o suposto patriotismo de um discurso de extrema direita, especialmente focado no crescimento econômico do país (destaca-se também o “coma osso” em amarelo). O título, referente à seção Erramos do jornal, indica o erro da própria manchete que, ao noticiar uma possível onda de otimismo econômico a tomar conta de parte da população, acaba relevando tantos outros problemas e contradições do governo, que se escondem sob tais profecias esperançosas.

Augusto de Campos ERRAMOS Reproducao

 

UM LANCE DE DEUSES

É de se admirar a resistência de Augusto não apenas a se adequar aos padrões conservadores de uma poesia canônica, mas também a resistência por meio da qual seus poemas, ainda hoje, se relacionam com as propostas iniciais da poesia concreta. O verbivocovisual se mantém em seus poemas mais recentes, como podemos ver em deuses, publicado em uma versão digital em 2013 no site da revista Erratica (clicar em "deuses" quando abrir o link). As letras vão aparecendo aos poucos enquanto ouvimos o som de dados serem lançados. Depois de alguns lances, o poema aparece por completo: “deuses doam dados doados deuses doem” (mais abaixo).

A forma das letras se assemelha a um dado. Cada uma possui até sete “pontos”, que ultrapassam os seis “pontos” máximos de cada peça e dialogam com a sutil inscrição do número sete no lance de dados mallarmaico. As aliterações e paronomásias nos lançam em meio a uma repetição de sons que aproxima os deuses dos dados e fazem a dor caminhar junto ao doar. O jogo lançado pelos deuses semeia o acaso do poema. Em meio ao jogo incerto da vida, pode quem sabe haver uma ordem reinando oculta sob as aparências do imprevisto, seja essa ordem advinda dos deuses ou da própria linguagem do poema.

Em conversa recente com o Augusto, ele se lembrou da seguinte frase de Einstein: “Deus não joga dados com o universo”. Tempos depois, ninguém menos que Stephen Hawking ousou contrariar tal afirmação: “Então Einstein estava errado quando disse que ‘Deus não joga dados’. Considerando o que os buracos negros sugerem, Deus não só joga dados, Ele às vezes nos confunde jogando-os onde ninguém os pode ver”. No poema, entretanto, os deuses (plural) jogam seus dados pelo universo poético, lançando o leitor à abolição impossível do acaso. Leia-se quem puder!

Augusto de Campos DEUSES Reproducao

 

DÚVIDA POÉTICA

Em d?vida (mais abaixo), nos interpela a essencial pergunta, com suas letras pontilhadas atravessando os pontos de interrogação: “que poesia poderia dizer a dvida d ser?”. As letras coexistem com as interrogações ao passo que interrompem o seu fluxo para questionar o leitor. Poderia algum poema responder às nossas questões existenciais mais complexas? Poderia ele, por outro lado, fazer as perguntas certas? Dizer a nossa dúvida? Quitar a dívida humana? Se a poesia poderia dizer a dúvida ou não, permanecemos de todo modo imersos em pontos de interrogação. Se há alguma saída para o poema, ela não estará na resposta, mas, sim, no questionamento poético que a desafia.

Os pontilhados das letras podem também transformar as interrogações em reticências: espaços abertos e inacabados, que não respondem às questões deixadas pelo poema além de torná-las abertas ao diálogo com o outro/leitor. Talvez a dúvida só se complete a partir do outro, nessa abertura da obra que possibilita a sua constante renovação. A poesia se questiona e questiona o leitor e de tais questionamentos surge o próprio poema. O dizer “a d?vida d ser” pode também ser um dizer “à d?vida d ser”, tornando-se, assim, uma espécie de diálogo livre e não categórico com a interrogação colocada sobre o inexplicável da existência humana.

Augusto de Campos DVIDA Reproducao


No livro Outro, as fontes escolhidas para as letras de cada poema são fundamentais para se lê-los. A intrínseca relação entre forma e conteúdo proposta desde a década de 1950 pela poesia concreta permanece até hoje nos escritos de Augusto. Essa relação perturbou, na época, a ordem de uma poesia dedicada exclusivamente ao texto ao incorporar elementos sonoros e visuais ao todo do poema. O que está dito importa tanto quanto a forma com que é dito. O poema, portanto, foge à lógica de uma representação simbólica e encontra nos elementos verbivocovisuais, na ruptura com o verso tradicional e na forma revolucionária um outro modo de escrita.

O vigor de Augusto de Campos faz inveja aos mais jovens e ultrapassa o número que indica a sua idade – 88. Talvez nele estejam contidos vislumbres do infinito (∞) de Scelsi, compositor italiano aficionado pelo número 8 e sobre o qual Augusto escreveu em Música de Invenção. No Octólogo de Scelsi, entre as oito frases apresentadas, a primeira é: “não se tornar opaco/nem se deixar opacizar”. O opaco parece ser, de fato, inimigo da poesia e da arte. O brilho saído das páginas de um livro ou da tela de um computador desafia o opaco da vida e aquele que existe em nós. Em tempos obscuros, que poesia poderia dizer o brilho da vida? Continuemos, portanto, a ler Augusto.

SFbBox by casino froutakia