Em troca de missivas com Julio Payró, crítico de arte argentino, Juan Carlos Onetti afirma que aprendeu, ao longo de sua vida até ali, mais com a pintura do que com a literatura. Essa afirmação tem me causado inquietações no que diz respeito às estruturas estéticas dos textos uruguaios, em especial os que surgiram nas décadas de 1940 e 1950. Nesse recorte histórico-cultural, as letras do país passaram por um processo de ruptura com a escola conhecida como “do Centenário”, o que culminou na formação do pensamento da Geração de 45, entendida como parte de uma paisagem da modernidade latino-americana tardia.
A partir de breve contexto cronológico, entende-se que a produção do Centenário – atravessada pelo viés ideológico de Jose Batlle y Ordoñez, presidente do país de 1903 a 1907 e, depois, de 1911 a 1915 – surge em um momento no qual a classe média uruguaia entra em ascensão e o liberalismo, proposto por Batlle, está em seu auge também como motor da produção literária e de difusões artísticas. Assim, na década de 1940, a sociedade entra em uma espécie de apogeu econômico pós-guerra e pré-ditatorial. Destaco, desse período, as seguintes publicações: Nadie encendia las lámparas (1947) e Las hortensias (1949), de Felisberto Hernandéz; La vida breve (1950), de Onetti; La mujer desnuda (1950) e El derrumbiamiento (1953), de Armonía Somers.
Os autores citados, assim como Idea Vilariño, Marosa di Giorgio e Mario Benedetti, formam uma geração que se coloca como elite intelectual do país, típicos citadinos de Montevidéu, sujeitos resultados da cidade letrada latino-americana de que falou o crítico Ángel Rama. Dessa forma, é importante o registro de que o espaço ocupado pela Geração de 45 era um tanto quanto “confortável”; oponente à política liberal do passado, por exemplo, porém baseado em todos os benefícios urbanísticos e sociais de um desenvolvimento que perpassou os países do continente.
Dito isso, observo tal contorno como um espaço-tempo no qual foi possível a constância de desvios em vários eixos: temáticos, de linguagem, de autoria e de estrutura textual. Nesses termos, parece-me natural o comentário de Onetti sobre a importância das pinturas, pois é no gesto da imagem que se conjuram duas figurações muito importantes para esses escritores: as alegorias fantasmagóricas e os corpos. Representações essas que têm como base desviante o ato de ver; é por meio da visão que se pode falar.
Seleciono, então, a escrita de Armonía Somers (1914 – 1994), pseudônimo de Armonía Liropeya Etchepare Locino, como objeto foco para pensar as características, incluindo as contradições, da Geração de 45. Nascida na cidade de Pando, a escritora tornou-se nome de referência, em especial, no gênero conto e na ação feminista. Seu pai era um comerciante anarquista e anticlerical e, sua mãe, muito católica. Foi professora e pedagoga; dedicou-se, principalmente, a estudos sobre criminalidade entre os jovens. Publicou quatro novelas – entre elas, como visto, La mujer desnuda (1950) e Un retrato para Dickens (1969), espécie de releitura do clássico Oliver Twist – e antologias de contos.
Sobre a sua obra, Ángel Rama afirma: “Somers não parte de uma linha da literatura fantástica em que reside unicamente num tipo de oposição ao realismo dominante – segundo o esquema cultivado pela crítica argentina.” Para o teórico, a autora “apela” aos elementos fantásticos e os utiliza “a serviço” de um afã em explorar o mundo. “Com maior rigor, estaria falando de uma literatura imaginativa”, escreve Rama. Assim, de início, entende-se que a obra de Somers não é uma resposta ao cânone, ao patriarcado e ao passado de sua tradição nacional – como se pode imaginar, de forma rasa, a partir da leitura de Un retrato para Dickens, por exemplo. O que a autora propõe é um tipo de linha disruptiva entre o que pode ser construído narrativamente, por uma mulher, em um recorte de intenso experimentalismo e novas concepções literárias.
O lançamento de La mujer desnuda foi tido como um “choque” em sua recepção e leitura. O público e a crítica não sabiam de quem era a autoria do relato de Rebeca Linke, mulher que acaba de completar 30 anos e chega, de trem, até uma casa de campo. Durante o caminho, o seu corpo torna-se despido, volta a certo tipo de grau zero, ao nada, ao corpo nu em um espaço fora do sistema citadino, letrado, capitalista. Aqui, o “ápice poético da vida das mulheres”, como escreveu Honoré de Balzac, no século XIX, em A mulher de trinta anos, faz parte da ordem de um corte preciso em relação aos tipos de deslocamentos admissíveis ao corpo da mulher.
Diante da literatura imaginativa de Somers, penso em dois caminhos de investigação. O primeiro parte da perspectiva do corpo; o segundo reflete sobre como a sua obra pode ser lida a partir das relações entre autoria e gênero. Nos tópicos a seguir, relaciono as duas frentes com a ideia da imagem, da pintura: o motor do processo criativo da literatura uruguaia concebida durante o recorte cronológico da Geração de 45.
OLHA-SE O CORPO
No início de O que vemos e o que nos olha, Georges Didi-Huberman fala da “inelutável cisão do ver” por meio de um trecho de Ulisses, de James Joyce. No fragmento a seguir, ele analisa de que forma se dá esse entendimento de que o corpo é um estado de continuidade diante do olhar: “É que a visão se choca sempre com o inelutável volume dos corpos humanos. In bodies, escreve Joyce, sugerindo já que os corpos, esses objetos primeiros de todo conhecimento e de toda visibilidade, são coisas a tocar, a acariciar, obstáculos contra os quais ‘bater sua cachola’; mas também coisas de onde sair e onde reentrar, volumes dotados de vazio, de cavidades ou de receptáculos orgânicos, bocas, sexo, talvez o próprio olho”.
Para a interpretação do que Joyce fala no parágrafo do capítulo de abertura do romance, o crítico de arte destrincha uma ideia do corpo como constante a ser tocada e, também, como algo que atravessa os olhos. No corpo, então, encontra-se a chance do palpável e de ser apenas visto (como um fantasma). Em uma das cenas de La mujer desnuda, a personagem corta a sua própria cabeça que gira “pesadamente, como um fruto”1 e, depois, coloca-a de volta “de um golpe duro como um casco de combate”.
Assim, os corpos nos livros de Somers não mais podem ser acariciados – o que, para um corpo de mulher, na estética patriarcal, seria a ação “natural” a seguir; o corpo a serviço do toque – pois o que pode ser alcançado aqui faz parte de um processo de mutilação, corte e fragmentação. Um corpo que busca os pedaços para que, dessa maneira, compreenda o que pode ser interpretado como tangível e, ato contínuo, o que pode aparecer, torna-se foco.
Em O corpo impossível – A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille, Eliane Robert Moraes analisa a prática de alguns gravuristas franceses que representavam, no século XVIII, a figura humana por meio de retratos de guilhotinados. De acordo com a pesquisadora, as palavras “fragmentar, decompor e dispersar” encontram-se na base de qualquer espírito que se diga moderno. Nesse aspecto, as imagens do corpo, em Somers, estão ligadas a um tipo de identificação moderna. Porém, o recorte moderno pressupõe um tipo de apreço ao efêmero, ao que permanece em estado de suspensão.
Aqui está a chave de leitura que nos interessa: sim, as personagens de Somers encontram-se em estado de deslocamento constante – como os modernos –, mas não reivindicam esse instantâneo para obter espaço dentro da tradição. E não acreditam na ideia de que se constrói uma narrativa na qual persiste a perspectiva de olhares detalhados e momentâneos. “E, ao dobrar uma esquina, começou o fenômeno: sentir que já não estava no solo, mesmo que a uma curta distância da terra, é certo, mas sem apoio”, trecho de Un retrato para Dickens no qual o ato de levitar é atribuído à personagem. Assim, tem-se um mecanismo de dispersão que não corresponde somente à característica de um grupo, mas ecoa como força de imagem, e de potência dos corpos.
Tal implosão interna proposta por Somers, assim como por outros escritores da Geração de 45, faz parte da ordem da imagem que se molda no fragmento e esbarra nos órgãos, membros, cavidades. O corpo “visto”, descrito por meio de lacunas, só é possível porque persiste em aparecer também pelo nosso próprio: retina que se faz, no mesmo instante, palavra e forma conjuradas. Dessa maneira, são esses corpos remontados, em sua maioria, de mulheres, que vão formar o universo literário uruguaio nas décadas a seguir.
OLHA-SE A ÉPOCA
Joan Scott, em suas pesquisas voltadas à história da mulher, observa uma espécie de filtro de gênero que tem como potência a transformação de nossas percepções de mundo. A autora de Gênero: uma categoria útil de análise histórica observa o termo como uma categoria social. Afirmar o gênero e suas tensões com a autoria, então, é também questionar-se sobre formas de romper sanções sociais.
No registro do escândalo diante do lançamento de La mujer desnuda, tem-se um clássico episódio de recepção opressora patriarcal de determinada obra. Pela linguagem “excêntrica” e por suas cenas eróticas, o livro, lançado em 1950 ainda de maneira clandestina, foi remetido a um autor pois, como uma mulher ousaria publicar tamanha obra disruptiva? Somente nos anos 1960, Somers vai assumir totalmente sua autoria e o relança junto com a novela De miedo en miedo (1965).
A figura da autora, desde a sua formação anarquista aos estudos pedagógicos, também dialoga com uma preocupação em organizar a literatura a partir de rupturas com o sistema vigente. Dessa forma, tem-se a experiência de uma mulher atravessando o projeto estético – e, neste ponto, lembro a sequência constante na história das mulheres: apagamento seguido de quebras de representação. Como visto em Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva, de Silvia Federici, a participação do corpo feminino como membro ativo do sistema capitalista foi sendo manipulada ao longo dos séculos.
Quando Somers, Marosa di Giorgio, Delmira Agustini e outras escritoras do cone sul propõem uma espécie de segunda voz – termo visto por Alicia Genovese em sua pesquisa do final dos anos 1990 [nota 2] –, seus textos estão contorcendo expectativas e premissas opressoras que permeiam todos os recortes literários, não só o da Geração de 45. Muitos são os ensaios de fortuna crítica, voltados para essas autoras, escritos por homens (a ver, como citado aqui, o de Angel Ráma, por exemplo). Eu os vejo, para além da legitimação que faz parte do machismo estrutural, como movimento de leitura importante para época. Essas mulheres estavam sendo lidas entre si, pelo público, pela crítica e pelos homens. Ocupavam espaços de performance, de discussão e de captura de um recorte geográfico-histórico.
Assim, volto aos corpos monstruosos, divididos e, ao mesmo tempo, inteiros de Somers para observar como o seu mundo em quatro partes – terra, mar, deserto e seres – está fincado na percepção de totalidade imagética que só se torna possível por meio da incerteza constante desses quatro elementos. Como reescreveu Dickens, Somers também rescreve Guernica, de Picasso: uma obra que marca o seu tempo porque o entende através do formato de seus atravessamentos, e não de maneira cronológica ou medida exata. Como escreve a personagem de Un retrato...: “Me movo no aro para contar o tempo. Ainda que na realidade nunca faria falta saber o quanto ele é, mas, sim, que sucede e como sucede”.
NOTAS
[nota 1]. Armonía Somers, assim como muitas autoras da Geração de 45, não foi traduzida no Brasil. Todos os trechos de seus livros, aqui presentes, foram traduzidos por mim a partir de edições da El Cuenco de Plata, editora argentina.
[nota 2]. Trata-se do livro La doble voz: poetas argentinas contemporáneas, publicado em 1998 com o intuito de mapear, em especial, a poesia argentina, escrita por mulheres, nos anos 1980 e questionar o que se entende como clássico dentro das poéticas hispano-americanas.