What are poets for, in such an age?
What is the use of poetry?
Ferlinghetti, Poetry as an insurgent art
Em março deste ano, Lawrence Ferlinghetti, poeta, editor e ativista estadunidense, completou 100 anos. A efeméride, bastante celebrada nos Estados Unidos, especialmente em sua cidade, São Francisco, levou o mundo literário a revisitar a sua trajetória, uma trajetória única em diversos sentidos. Pela nossa conjuntura de democracia em ruínas, e também pelo estado belicoso do nosso pequeno mundo poético, vale a pena recuperar ao menos um dos aspectos que fez de Ferlinghetti uma figura central para a literatura e a contracultura norte-americanas: a sua capacidade de agregar artistas e ativistas diferentes ao seu redor, fazendo de sua livraria e editora um polo de discussão e resistência. Seus 100 anos, celebrados com a publicação de um pequeno romance, Little boy, um gesto de quem ainda acredita em literatura, são uma aula sobre o lugar que a poesia e os livros podem ocupar em tempos de crise; são um guia para pensarmos na nossa própria atuação nos próximos anos. “Ah, o mundo é um lugar ótimo / para nascer / se você não ligar tanto / para algumas mentes vazias / nos lugares mais altos / ou para uma ou duas bombas / jogadas aqui ou acolá / nas suas caras arrebitadas.” (The world is a beautiful place)
Há, em Ferlinghetti, uma recusa em se colocar em primeiro lugar, uma negativa de seguir o refrão “eu, eu, eu, eu, eu” que marca, segundo ele próprio, a cultura americana. “Yeah, por toda a América todo mundo correndo feito louco atrás da sua gratificação instantânea e por que não? O que mais existe para animar nossas vidas eu tenho de tomar o que é meu o que eu quero eu quero eu quero fazer um milhão da noite para o dia e ficar rico rapidinho e sair e ter amantes e quem liga para aquecimento global e foda-se tudo isso” (Little boy). Criar espaços de trocas e aprendizado, apoiar outros escritores e artistas, pode não parecer um ato radical, mas certamente teve e tem um poder transformador. Se dedicar ao coletivo é a concretização daquele “ninguém solta a mão de ninguém” que passamos a escutar desde as últimas eleições.
Ferlinghetti tornou-se conhecido ao publicar o icônico Uivo (Howl) de Allen Ginsberg em sua pequena editora de poesia; uma publicação que o levou, em finais de macarthismo, às cortes norte-americanas. Foi em um sarau na cidade de São Francisco – a famosa leitura da Galeria Seis – onde o poeta beat apresentou pela primeira vez o seu famoso poema para o público. Impressionado pela maneira com que Ginsberg captava algo das transformações sociais que a contracultura começava a representar, Ferlinghetti escreveu ao poeta convidando-o a publicar o trabalho por sua recém-inaugurada editora: a City Lights. “Felicidades em uma bela carreira que se inicia! Quando recebo o seu manuscrito?”
A importância do livro, hoje, é difícil de mensurar. Ainda assim, passados mais de 60 anos, sabemos que conhecidas editoras norte-americanas haviam lido o manuscrito de Uivo antes de ele chegar às mãos de Ferlinghetti, mas prevendo o custoso caso judicial que se seguiria à sua publicação, resolveram não levar o projeto adiante. Foi Ferlinghetti, um pequeno editor independente, quem resolveu comprar a briga. Ele se associou à Liga pelas Liberdades Civis dos Estados Unidos e esperou ser processado, como de fato aconteceu. Como poeta, sabia que valia a pena correr riscos; sabia que era ali, nas margens, que a verdadeira literatura acontecia, onde a luta para definir o mundo que gostaríamos de viver se passava. Essa foi uma decisão que rendeu dividendos morais (e também financeiros) aos envolvidos, além de uma curta temporada de cadeia para Ferlinghetti e o gerente de sua livraria, Shig Murao.
O processo, que até pouco pareceria absurdo, hoje parece ter ganho novamente ares plausíveis. A perseguição à universidade e ao pensamento, o medo do diferente, a aversão ao erótico e ao sensual, retornaram com força nos últimos anos e nos obrigam novamente a nos posicionar enquanto artistas, editores, leitores e cidadãos. “Você diz que este livro não é pornográfico” perguntou o juiz a um dos nove críticos literários convidados a ser testemunhas no processo. “Então que tipo de livro você acredita que ele é?” Sincero, o crítico respondeu: “o livro seria melhor descrito como um livro à maneira dos livros proféticos da Bíblia, particularmente o de Oséias, com o qual se assemelha em muitas partes”. Em tempos de crise, não basta editores fazerem cartas pedindo para comprarmos mais livros; eles precisam se arriscar publicando o que não querem que leiamos. Os livros “perigosos” são os que contam e transformam, mesmo quando não dão lucros. Nos próximos anos, será preciso insistir que nossas pautas continuam relevantes, que mesmo que não haja financiamento para nossos projetos, eles irão acontecer. A outra opção, como já sabia Ferlinghetti, é capitular e deixar de acreditar que outro mundo é possível.
Ao aproximar-se dos escritores beats, Ferlinghetti também publicou poetas como Diane di Prima e Gregory Corso, além do romancista Jack Kerouac, e viu a sua própria poesia ganhar o ar despojado e por vezes messiânico do movimento. Dois anos depois de publicar Uivo, Ferlinghetti publicava o seu próprio Um parque de diversão da cabeça (1958), um dos grandes sucessos de público da poesia estadunidense; um livro que se tornou porta de entrada para gerações de leitores daquele país encontrarem a poesia. Sua obra, de certa forma, também procura agregar, habitando entre o erudito e o popular, e convidando o seu leitor a passar de um para o outro sem precisar vestir-se com ares presunçosos, ou assumir um tom de superioridade. Ninguém gosta de um babaca diplomado te dizendo o que fazer. A poesia de Ferlinghetti não era só para iniciados. É possível passar uma tarde em um estádio esportivo com os amigos, pensando em poesia, falando de política, sem se incomodar com a algazarra, ignorando a sisudez do cânone e da escola, “assistindo baseball / sentado sob o sol / comendo popcorn / lendo Ezra Pound / desejando que Juan Marichal / rebatesse a bola bem em cheio / na tradição anglo-saxã” (Baseball Canto).
Ainda assim, Ferlinghetti resistiu chamar-se de poeta beat, ou tornar a sua uma editora beat, capitalizando no sucesso explosivo que o movimento tivera. A resposta, às vezes atribuída a Gregory Corso ou a Gary Snyder, quando questionados sobre sua participação na geração beat, poderia pertencer também a Ferlinghetti: “três escritores não fazem uma geração.” Algo do desejo “automitologizante” desses escritores, que funcionava tão bem na literatura, acendia um alerta para Ferlinghetti na vida real. O “eu, eu, eu, eu, eu” que parecia assombrar o estilo de vida norte-americano, também espreitava o mundo da cultura. Em tempos de Instagram, a vontade de nos projetarmos é ainda maior; mas se deixarmos ela definir nossas ações culturais e de resistência, se deixarmos ela pautar aquilo que escrevemos, estaremos reproduzindo a própria lógica que está nos afundando como sociedade. Diferentemente dos beats que gostavam de não gostar de tudo que não fosse aquilo que eles mesmos faziam, Ferlinghetti acreditava que uma maior variedade de temas e interesses, uma atenção às questões político-sociais do seu tempo, seria central para transformar a sua comunidade.
Na sua correspondência com Ginsberg, fica claro o seu desconforto com a mitomania do seu amigo; assim como a sua tentativa de tergiversar os pedidos dele para que publicasse o seu círculo de amigos. Uma editora de amigos não é uma editora, é um clube. “Você é um movimento em si mesmo”, ele escreveria à Ginsberg. “Mas carrega esta pequena gangue de aduladores com você em uma espécie de portfólio de candidatos à revolução... Eu não estou neste mundo para editar poetas que escrevem como Allen Ginsberg.” Não interessava, ao poeta, investir em uma mitologia beat, ainda mais enquanto a Guerra do Vietnã pegava fogo e a luta por igualdade de direitos civis da população negra dos Estados Unidos enfrentava a política racista do Estado. Era preciso abrir espaço para novas vozes, era preciso ampliar as redes de convivência e poesia; era preciso ser solidário às lutas dos outros e fazê-las também nossas. Foi assim que nomes tão diversos e importantes como os poetas Bob Kaufman, que era negro, e Denise Levertov, ativista contra a Guerra do Vietnã, entraram no catálogo da editora. Fugindo do niilismo beat, Ferlinghetti tornava-se uma figura cada vez mais engajada. Foi assim, também, que Pier Paolo Pasolini e Ernesto Cardenal, além do soviético Ievguêni Ievtuchenko, em plena Guerra Fria, chegaram ao público americano.
Aqui, vale abrir parênteses e apresentar um poeta menos conhecido no Brasil, mas que também teve uma importante influência sobre Ferlinghetti: Kenneth Rexroth. Ferlinghetti, ao chegar em São Francisco no início dos anos 1950, antes dos beats aportarem por lá, encontrou uma cidade que já pulsava. A cena poética era vibrante, capitaneada por Rexroth, e nela circulavam Dylan Thomas, Kenneth Patchen e outros. Uma cidade viva culturalmente foi o que possibilitou, em partes, que a explosão beat ganhasse tração e que a contracultura questionasse a ordem das coisas. Nada acontece do dia para a noite. Egresso do movimento sindical dos anos 1930, Rexroth acreditava na importância de se encontrar para debater política e literatura. Era assim que se formariam os quadros da revolução futura, ou da resistência presente. Em momentos de crise, esses espaços são preciosos e precisam ser valorizados.
Uma cena literária não podia florescer sem livrarias abertas após as cinco da tarde ou nos finais de semana. Foi esta a missão que Ferlinghetti, junto a Peter D. Martin, assumiu ao abrir a sua livraria e editora. Não lhes interessavam livros caros e espaços restritos. Eles queriam fazer livros (e ideias) circularem, queriam que livros fossem carregados em bolsos e prolongassem os debates e trocas que alimentavam seus encontros. Era preciso fortalecer estes debates, primeiro dentro da própria comunidade, para depois expandi-los. E foi isso que fez Ferlinghetti, criando, a partir de São Francisco, uma grande rede de trocas que, em tempos de Guerra Fria, abarcou países como a China e a Nicarágua, além da própria União Soviética.
A poesia de Ferlinghetti, como alguns de seus críticos gostam de apontar, é uma poesia popular, por vezes beirando o hit da música pop. Pode ser. Ou, talvez, ela seja uma poesia que se aproxima da música de protesto, sem perder certo lirismo, ou deixar de ter um caráter reflexivo. Não é à toa que foi ali na sua livraria que Bob Dylan conheceu alguns dos poetas que influenciaram suas canções mais engajadas. É uma poesia para se ler e escutar ao som de jazz, ao lado dos amigos, ou quem sabe no caminho de mais uma manifestação que, espero, serão mais e mais comuns nos próximos meses. É uma poesia que, assim como o próprio Ferlinghetti, procura congregar e não dividir. É o tipo de poesia que talvez estejamos precisando para resistir aos anos que temos pela frente. E mesmo que seja por mais 100 anos, continuaremos resistindo. “Ainda nem tudo despedaçado / nem tudo perdido para a escuridão / tudo ainda amarrado / a algum centro estável / até mesmo agora / neste começo quase incendiário / enquanto mais outro / rebelde queimando intensamente / risca o seu fósforo / dentro da nossa noite.” (The rebels)