Especial Silviano 1 Eduardo Azeredo nov19

 

Inconveniência: “ação, dito ou fato que não é conveniente, que não atende ao gosto, aos costumes ou ao bem-estar de outrem; indelicadeza, incivilidade, indiscrição, grosseria”.
(Dicionário Houaiss)

Experiência com... de preferência a engajamento em...
(Michel Foucault, Pour une morale de l’inconfort; in: Dits et écrits, III)

Guardo a definição que Méral me dava da amizade: “um amigo, dizia ele, é alguém com quem se é feliz ao dar um golpe inconveniente...”.
(André Gide, Le journal des faux-monnayeurs)

 

Adio e, ao mesmo tempo, preanuncio a discussão histórica e teórica sobre o desempenho inconveniente do corpo do cantor popular brasileiro [nota 1] em performance aberta ao público. Adio a discussão histórica e teórica, estabelecendo antes as balizas estreitas e cronológicas que delimitam, na cultura brasileira nossa contemporânea, um importante e curto período no decorrer da ditadura militar de 1964, a ser analisado. Julgo que a leitura da performance inconveniente do ator no palco e sua avaliação como como forma de resistência política, paralela à resistência ideológico-partidária ao golpe militar, está de modo geral ausente das melhores interpretações históricas e sociológicas do período de exceção.

Eis a originalidade da análise de caso, a ser feita, e da discussão histórica teórica, a ser proposta.

Ofereço ao leitor e espectador o objeto específico de análise – o corpo inconveniente e libertário do cantor no palco – e, ao mesmo tempo, preanuncio a moldura teórica que reenquadra o acontecimento político-cultural brasileiro nas teorias sobre a representação teatral no Ocidente, desde os tempos greco-romanos. Por mais de dois milênios, as sucessivas poéticas clássicas vêm reprimindo tanto o autor do texto, o dramaturgo, quanto os responsáveis pela mise-en-scène e a atuação, o diretor e o ator, respectivamente. Exigem de todos que, com palavras excessivas, apenas aludam à exposição no palco de cena julgada como indecorosa pela censura prévia (não há como evitar a expressão). Em público, ou seja, diante de espectadores, dramaturgo, diretor e ator devem obedecer às regras autoritárias do decoro.

As poéticas teatrais canônicas desprezam a imagem indecorosa e ao vivo no palco a fim de favorecer o texto dito pelo ator, que serve para escamotear o episódio censurado. Uma imagem (ao vivo) vale mais que mil palavras? Who’s afraid of Confucius – estou me referindo, claro, ao autor chinês da expressão que encantou os publicitários modernos até o momento em que o fantasma do #MeToo bate à porta da justiça, exigindo reparação de dano à mulher ofendida no outdoor ou na vida profissional. O filósofo Aristóteles (384 a.C-332 a.C), o poeta Horácio (65 a.C-8 a.C) e o crítico francês Boileau (1636-1711) têm medo do bordão inventado pelo sábio chinês. Por isso é que, ao invocá-los, virarei pelo avesso a opção deles pelo decoro. Só pelo avesso das poéticas clássicas do teatro é que melhor se avalia a exposição inconveniente do corpo do cantor popular em espaço público como transgressora aos costumes em vigor.

Contemplemos o corpo do cantor Ney Matogrosso em performance no estádio repleto do Maracanã, em 1973, ou na telinha da TV Tupi, no mesmo ano. Interpreta a canção Sangue latino, de João Ricardo e Paulinho Mendonça. [nota 2] Apesar de não ter sido prevista por ideário ideológico nem programada por partido político, a imagem ao vivo do corpo inconveniente do cantor no palco (ou em gravação transmitida por canal de televisão ou por videocas-sete) alcança as gerações contemporâneas e futuras de jovens, e as seduz. É tal o poder da imagem ao vivo do cantor – diante da plateia enlouquecida do Maracanã ou do jovem espectador no quarto de dormir –, que ela redunda numa conquista de participação política popular e indireta que, já na fase de “abertura” do processo de democratização do país, se transforma em projeto sociopolítico da juventude brasileira, que se afiança por inesperadas vitórias na luta dos grupos marginalizados, ou sem voz ativa, pela cidadania identitária. Em 2019, as primeiras vitórias da cidadania civil, datadas de meados do século passado, já se apresentam como enraizadas e em vias de serem absorvidas pelos poderes Legislativo e Judiciário; em suma, pela sociedade brasileira como um todo.

No entanto, a reação conservadora sustentada pelo governo Jair Bolsonaro julga que, na condução do processo político democrático brasileiro, as conquistas dos grupos marginalizados, ou sem voz ativa, têm de ser erradicadas das leis de direito das cidadãs e dos cidadãos em virtude de serem tão indecorosas quanto o gestual público de inconveniência do corpo do artista. Na verdade, hoje se percebe melhor como, no palco da arte e no palco da vida, o gestual de inconveniência do cantor e dos espectadores foi e continua sendo uma forma paralela de resistência política a autoritarismos e a perseguições tradicionalmente preconceituosas, acentuados desde o golpe militar de 1964. [nota 3]

O curto e complexo núcleo histórico em análise será alegorizado pela figuração no palco dos cantores e das cantoras que definem dois movimentos culturais que se sucedem na segunda metade do século XX – a Bossa Nova (circa 1958) e a Tropicália (circa 1967). Embora interligados pelos historiadores da MPB, os cantores de um e do outro grupo não transitam necessariamente de um para o outro movimento. A imagem inconveniente do corpo do cantor marca a ruptura que condicionava a todas e a todos em performances artísticas estacionárias. Interessa-me menos a comparação entre os cantores da Bossa Nova e da Tropicália; interessa-me mais o contraste radical entre os corpos que, pela perspectiva teórica e concreta em pauta, não envolve a análise per se do mérito da execução instrumental e das letras das canções. Foco o momento em que, no palco, o corpo do cantor torna-se inconveniente. É mutante e significa.

Contrastarei primeiro os corpos em cena, ou seja, contrastarei a performance do cantor bossa nova e do tropicalista. Por exemplo, Vinicius de Moraes de um lado e Ney Matogrosso do outro. Em seguida, extrairei do contraste o surgimento da noção teatral de inconveniência, tomada no sentido dicionarizado em língua portuguesa (v. primeira epígrafe). Contrastarei o comportamento compenetrado, comedido e palavroso do cantor bossa nova com o comportamento expresso por corpo fantasiado e maquiado, de gestual inconveniente, do cantor tropicalista.

Num segundo momento, deslocarei meu olhar crítico-teórico para a plateia, onde está o jovem e anônimo espectador de shows de música popular nos anos travados e sem-esperança. Sensível ao impacto causado pelo fenômeno da espetacularização da cultura, cujo fundamento remonta ao sucesso extraordinário do filme hollywoodiano nas metrópoles e nas cidades provincianas, o jovem espectador de shows musicais passa por processo em que sua personalidade privada e pública, em fase de formação, se mediatizada pela figura irreverente do cantor, ressurge mais autêntica e mais forte.

Apesar de singular e anônimo, o jovem espectador quer também atuar para viver mais feliz. Atuar sua vida em liberdade plena. Na plateia, no seu quarto de dormir ou nos espaços públicos por que circula, quer ser semelhante ao ator que performa no palco.

E será semelhante ao cantor na dita vida real.

No ambiente público em que vive o dia a dia, o jovem repete a atuação em cena aberta do cantor, prolongando-a. Torna-a coletiva. À semelhança de Caetano Veloso ou de Ney Matogrosso, ele é a imagem viva do hoje que rompe com o ontem. [nota 4] Sua performance cotidiana não se encontra mais condicionada pelo comportamento convencional, o de estudioso e ajuizado jovem pequeno-burguês; inspirada pelo comportamento endiabrado e alucinado do cantor, a performance cotidiana se lhe acopla de jeito imprevisto e de maneira emotiva. No processo de reconfiguração da nova identidade, o enriquecimento semântico do sujeito – sua rebeldia − não é mera capa epidérmica e passageira, embora muitas vezes o dia a dia venha revigorado por alucinógeno. Ao assumir o hoje da sua identidade, o espectador põe em xeque as diversas ordens disciplinares e camadas comportamentais do sistema repressivo. Sofre muitas represálias, muitas delas seríssimas e assassinas.

Especial Silviano 2 Eduardo Azeredo nov19


Epigramaticamente, posso afirmar que, naqueles poucos anos, não é só o gay quem sai do armário. De modo coletivo e em ritmo imprevisto, a maioria dos jovens brasileiros começa a sair dos respectivos e próprios armários onde se guardam e se enclausuram as variadas e múltiplas formas da vergonha de ser e de estar em público. As novas identidades partem de atitude única na história do comportamento social do jovem brasileiro, embora tenham de ser diferenciadas por uma razão simples. No movimento sociopolítico que leva à generalização do princípio, a inconveniência desenquadra da moldura social e política ditatorial formas variadas de bom comportamento e de hipocrisia social.

Por mais lógica que nossa leitura possa parecer, o comportamento inconveniente da juventude se apresenta aos olhos críticos de modo contraditório. O jovem vive o cotidiano tão mais artificialmente quanto mais se conforma à sua paisagem íntima. O anonimato singular e rebelde torna-se uniformidade coletiva revolucionária.[nota 5]

Ainda que a autenticidade do indivíduo, ou a sinceridade singular do jovem, se apresente aos olhos da sociedade como inconvenientemente fantasiosa, ela se torna moeda corrente e valiosa no processo de ajuntamento em diferentes grupos-de-ação (ainda que desprovidos originariamente de saber, apud Foucault) dos associados. Recordem-se as duas expressões que Foucault grafa em separado para configurar a “moral do desconforto”: “Experiência com... de preferência a engajamento em...”. A experiência transitiva, amiga, conflita com o engajamento político tradicional embora, de modo paralelo, o apoie, visto que a visualização dos novos conjuntos de rebeldia jovem se destaca, em período histórico ditatorial, pela inconveniência no comportamento cotidiano. Dados preciosos são oferecidos à análise pela vestimenta e pelo corte de cabelo, pelo gestual exagerado ou afetado e pelo palavreado (ou pelas novas atitudes existenciais recobertas por vocabulário sem significado semântico dicionarizado, como desbunde, curtição etc.).

Com o correr das décadas, a lenta e difícil adequação da vida “prazerosa” juvenil à vida “profissional” adulta pode ter epílogo cômico, aburguesado, sofrido, trágico ou feliz. Depende e, se a conquista não for definitivamente ceifada pela atual política governamental, será matéria para outro capítulo, o do envelhecimento em comunidades fraternas, devidamente direcionado por Eros e Thanatos. Esqueça-se Ney Matogrosso e pense-se, como exemplo, em Caetano Veloso.

Tal como proposto no primeiro parágrafo, o estabelecimento preliminar de balizas cronológicas estreitas se justificará teoricamente pelo fastidioso voo histórico que se lhe sucede. A nave teórica decola nos tempos greco-romanos. Decola na apologia do “decoro” que se desenvolve no capítulo XIV da Poética, de Aristóteles. Sobrevoa o conselho horaciano de “manter longe da vista” do espectador tanto a metamorfose de Procne em pássaro quanto a de Cadmo e sua esposa em serpentes.[nota 6] Aterrissa na França em pleno século XVII, quando a lei clássica da “bienséance” (conformismo às regras sociais estabelecidas por determinado grupo social) é imposta à escrita e à mise-en-scène da peça de teatro.

Resumo a fastidiosa viagem teórica com dois versos retirados da Arte poética de Boileau (1674). Resumo-a, caso nosso leitor vire os dois versos pelo lado do avesso como, aliás, o faz a inconveniência do cantor tropicalista no palco: “Mas há objetos que a arte judiciosa / Deve oferecer às orelhas e distanciar dos olhos”.[nota 7] A inconveniência vem obnubilada pela imagem expressa pelo texto e, pelo avesso da palavra, é iluminada pela imagem-ao-vivo do corpo do cantor que a representa.

As balizas que delimitam o núcleo histórico central levam o leitor ou ouvinte a focar primordialmente o objeto de análise – o corpo inconveniente. Isso evita que sua atenção se esgarce por longa digressão teórica antes de estar a par do objeto de estudo que é a razão de ser desta proposta de leitura do contraste entre o cantor da Bossa Nova e o da Tropicália. A composição desta nossa fala pelo lado do avesso das poéticas clássicas inventa uma nova ordem dos fatores políticos à espera de que o produto não seja alterado.

A transformação na performance do corpo dos cantores se dá, repito, em cena aberta. Ocorre durante o show ao vivo, ou televisionado ou, ainda, gravado em vídeo comercial. Por isso, a imagem inconveniente do corpo do cantor extrapola os limites estreitos do palco e da sala de espetáculos e vai além − se transmitida ou, posteriormente, reproduzida − dos limites da telinha e do ambiente doméstico. Na era da reprodutibilidade técnica da arte, para retomar o ensaio precursor de Walter Benjamin, a performance ao vivo e em cores pode intervir de modo ameaçador e sedutor, amigável numa só palavra, na vivência cotidiana da juventude de classe média brasileira. A experiência do corpo inconveniente será acoplada ao corpo do espectador jovem em pílulas homeopáticas. De maneira lenta e orgânica, talvez definitiva.

Na experiência semântica do espetáculo inconveniente, a letra da canção, recheada com frases críticas, ferinas ou ostensivamente satíricas, é jogada pelo jovem espectador apaixonado para o segundo plano. Não há que acender, como nos programas de auditório, um aviso premonitório: Atente-se mais para o corpo e menos para a letra. A atenção do espectador é produto da paixão do corpo pelo corpo alheio e pelas novas e arriscadas exigências do ser e estar no hoje. Embora a nação brasileira estivesse sendo tomada por um dos mais sombrios períodos pelos quais passou uma população jovem, muitos deles vivem alegremente o dia a dia daqueles anos. Durante os 365 dias do ano, sobrevivem e revivem desrespeitosa e alegremente nos três dias do carnaval.

Nocauteia-se o bordão clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes sobre o dia em que termina o Carnaval, bordão que discretamente endossa os valores religiosos de Ash-Wednesday, poema clássico de T. S. Eliot. [nota 8] “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”.

Felicidade não tem fim. [nota 9]

Em tempos de chumbo, ao se abrirem diferentes direções ao comportamento tradicional e metamorfoses impensadas para o corpo jovem em formação, opera-se uma remodelação do sujeito de classe média, de fundo teatral. Reafirma-se um processo de “ressubjetivação”, para retomar Michel Foucault e Gilles Deleuze. [nota 10]

Não voltemos a cair em equívoco fomentado pela sociologia da época e apenas criticado por algum antropólogo antenado com o hoje. Em virtude das intrincadas consequências sociais na difusão do espetáculo cultural em escala nacional, as artes da inconveniência do cantor no palco se igualam às artes da metamorfose do ator nos filmes e vão também se acoplar aos corpos dos jovens interioranos e dos jovens das classes populares e os atingir em cheio. Tal ocorre em virtude de também coexistir em todos eles o desejo de se adaptar mimeticamente ao hoje e à esperança de melhores dias, sem compromisso com os constrangimentos familiares e os preconceitos políticos que padecem na carne. Retomo o exemplo da peça Hoje é dia de rock (v. nota 5). O jovem interiorano, ou das classes populares, passa também por uma espécie confusa de bricolagem cultural e em tudo e em nada artificial. O paradoxo é de praxe.

Acrescente-se que a televisão é bandeira forte na difusão livre da propaganda oficial e o é, ainda, nos espetáculos da contracultura jovem, ainda que reprimida e censurada pelos organismos governamentais. Para iluminar a dubiedade, tome-se como farol o verso da letra assinada por Chico Buarque com o pseudônimo de Julinho da Adelaide: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta” (1970). Refere-se, evidentemente, à censura de responsabilidade do coronel Ernesto Geisel e ao gosto rebelde de sua filha Amália Lucy Geisel. O aparato tecnológico-visual e ambivalente da televisão e da reprodução em videocassete aviva e agiganta tanto a palavra quanto o corpo do cantor. Palavras inconvenientes de Chico Buarque, corpos inconvenientes de Caetano Veloso e de Hélio Oiticica. As pessoas − escreve Ney Matogrosso em Vira-lata de raça (2018) − “quando me viam no palco, maquiado, com bigode e uma grinalda na cabeça, requebrando como um ser híbrido, ficavam ainda mais confusas”.

(Abro parêntese para complementar o resumo proporcionado pela citação de dois versos de Boileau e explicar, pela etimologia, o significado da lei de bienséance que evita a cena inconveniente – censura-a – na dramaturgia francesa no século XVII. Séance vem do verbo latino sedere, sentar-se. Portanto, o prefixo bien se refere à necessidade de o ator deixar o espectador bem-sentado e confortável no espaço da poltrona. O corpo do ator no palco não deve agir de modo a perturbar o bem-estar compenetrado do corpo que assiste ao show, ao programa de televisão ou ao vídeo. Visa a não deixar o híbrido da performance confundir a mente do espectador, daí a recomendação greco-latina de obnubilar pela palavra a imagem ao vivo.)

Julgo que, nesses anos precisos da ditadura militar, no seu pós-1968, é que se dá uma nova formação-em-coletividades (insisto no plural de coletividade) de boa parte da juventude brasileira – formação-em-coletividades irreverente, escandalosa e irredutível. Repito uma das epígrafes e a ela acrescento uma segunda. Retomo: “Expérience avec... plutôt qu’engagement dans...”. Acrescento: “Je retiens la définition que Méral me donnait de l’amitié: ‘un ami, disait-il, c’est quelqu’un avec qui on serait heureux de faire un mauvais coup’.” Resumo: a experiência transitiva é o fundamento da amizade entre corpos inconvenientes.

Permitam-me, pois, que acrescente duas palavras pessoais sobre a expressão formação-em-coletividades. É importante distinguir esse processo de formação dos três principais processos tradicionais de formação positiva do jovem – a formação familiar, a religiosa e a educacional. Às formações homogeneizadoras e castradoras se opõe a experiência até então inédita em show de música popular para jovens.[nota 11] Ela desviará o adolescente do aprendizado oferecido pelo constrangimento familiar, religioso e educacional, delegando-lhe a total responsabilidade pelo modo como se encaminha alegre e rigorosamente para a nova e emancipatória identidade privada e pública. A rebeldia não se dá apenas no espaço dito público, mas também e sobretudo no espaço escolar.

Vejo aqueles poucos anos como os que preparam e sub-repticiamente fomentam a criação de futuras e idôneas categorias de pensamento crítico que vão para além das teses clássicas do filósofo Louis Althusser sobre os aparelhos ideológicos. Refiro-me aos “dispositivos”,[nota 12] para valer-me uma vez mais do linguajar de Michel Foucault. São os dispositivos postos ao alcance dos jovens pelo cantor inconveniente que movimentam os sujeitos a novas identidades emancipatórias e a novas estratégias de combate à ditadura militar. No presente caso, movimentam a novas estratégias de resistência política que coexistem em paralelo à História oficial e à História a contrapelo dos anos 1970, ambas de fundo ideológico-partidário. Por todo o Brasil, surgem novos agrupamentos sociais de rebeldia jovem, com propostas revolucionárias variadas, singulares e originais. Pouco importa se alguns discursos dominantes deixaram-nas escapar pelas brechas dos estudos. Precisamos recuperá-las no seu tempo e espaço para melhor entender o presente.

Novos e diferentes coletivos de jovens se afirmam e se cristalizam em dispositivos com interesse amplo e reivindicações emancipatórias comuns, e não mais se significam por palavra de ordem partidária ou autoritária. Ao se manifestar em diferentes e coexistentes formulações sociopolíticas e ações revolucionárias, a juventude se manifesta coletivamente. Formulações e ações empurram o sujeito a se emancipar menos em direção ao campo da ideologia e mais em direção ao campo do presente compartilhado e inventado. (Metaforicamente, o sujeito passa a ser e a estar no mundo pelas cosquinhas que faz na pele da História e da Sociologia.) A configuração concreta da utopia está muitas vezes no “paraíso artificial”, para retomar Charles Baudelaire, porque não há fuga ao real conservador que distancie o corpo em formação do viver o hoje em sua plenitude. Sem a palavra de autoridade vinda do passado, os olhos jovens se voltam para onde têm de voltar inevitavelmente – para o presente. E, ao mesmo tempo, para o futuro, a ser inventado pela frágil e apaixonada experiência do hoje. São menos lavradores do pensamento crítico tradicional e mais marinheiros em alto mar, com vistas a outros portos de circulação livre e genuinamente igualitária.

Fato notável é que são esses dispositivos sociopolíticos e emancipatórios que serão mais contra-atacados no terceiro milênio, que nos toca viver. Estão sendo contra-atacados por imposição de regras religiosas e de ideário tacanho e populista sobre governo, regras e ideário nitidamente negativistas e repressivos. Refiro-me à atual perseguição (para usar palavra ainda branda) aos novos conjuntos de jovens e adultos emancipatórios e libertários – pertencentes a “classe social” plural, ou indefinida, − que inauguraram e, no momento, fortalecem novas formas de congraçamento pela cumplicidade subjetiva na identidade étnica e na identidade sexual.

As manifestações de rebeldia, de luta e de pleitos das cidadãs e dos cidadãos junto aos três poderes voltam a pipocar no panorama nacional e se transformam em reivindicações mais agressivas e, evidentemente, mais perigosas.

Dissociemos passageiramente os três poderes. O Legislativo da nação e de cada estado ganha e ocupa o lugar do antigo palco onde se exibiu o corpo do cantor durante o período da ditadura militar de 1964. Os novos mediadores da emancipação libertária são hoje eleitos como “representantes do povo”, para usar o apelativo clássico, e são nomeados no Congresso Nacional pelo nome próprio. Marielle Franco e Jean Wyllys, por exemplo. Defendem causas políticas que já ganharam nome e têm tradição.

Saem em busca de torná-las entendidas e aceitas pelas leis da cidadania civil. E, no entanto, estão sendo mais e mais implicadas pela repressão e pela censura e, ainda, pela intolerância constitucional. Em pleno Congresso Nacional, tais são a violência da linguagem e dos atos repressivos de muitos dos nossos representantes oficiais, que os parlamentares dissidentes são levados a resistir na tradição da inconveniência em público do cantor popular nos anos de chumbo. Assim agem sob as lentes dos jornalistas. Passam pelo perigo de padecer algo além da tortura mental. Suas vidas estão em perigo.

Especial Silviano 3 Eduardo Azeredo nov19


Chega o momento de dedicar-me mais cuidadosamente aos dois movimentos de música pop elencados. Bossa Nova e Tropicália. De ampla configuração cultural, eles se sucedem um ao outro, gerando, entre os jovens espectadores e entre os fãs em geral, a revolução emancipatória no comportamento adolescente e juvenil a que venho me referindo. A postura libertária do jovem, julgo, não pode ser separada – a não ser em perspectiva de análise disciplinar, ou em postura ideológica estreita, como é o caso já clássico dos estudos feitos pelo pesquisador José Ramos Tinhorão [nota 13] − e ser analisada separadamente das manifestações de resistência política à ditadura militar, então exteriorizadas publicamente pelas formas de atuação que se apresentam tradicionalmente como passeata pelas ruas da cidade e concentração e comício em praça pública. No período em questão, a atuação tradicional se radicalizou no Brasil sob a forma de movimentos de guerrilha urbana e rural.

Julgo, pois, que a revolução comportamental insuflada pela inconveniência na representação do corpo do cantor em local público – repito: paralela aos variados e tradicionais movimentos de resistência propriamente político-partidária – entusiasma a juventude desejosa de participação coletiva contra o status quo e rende frutos rebeldes e transformantes da sociedade brasileira no decorrer das décadas seguintes. Na época – recordo-me –, apresentou-se orgulhosamente como germe de “sociedade alternativa”, projeto adubado pelas letras de alguns compositores e, em particular, pela voz do cantor Raul Seixas. Com a ajuda de mãos amigas, Raul Seixas escreve um manifesto de caráter esotérico, baseado nos escritos de Aleister Crowley, que é distribuído ao público sob a forma de folheto em show no ano de 1973. Posteriormente, os folhetos são recolhidos pela Polícia Federal e queimados como “material subversivo”. Raul foi preso e torturado pelo DOPS e “convidado” a se retirar do país. Saliento detalhes para mostrar como o poder ditatorial macro também contamina, pela censura, pela repressão e pela tortura, personalidades artísticas micro, em destaque no palco de teatro ou no palco da telinha.

O aparelho repressor adivinha com maior perspicácia que os partidos de esquerda o peso e o valor da resistência oferecida pelo corpo nas performances inconvenientes do cantor popular e de seus jovens seguidores.

Com dois exemplos sucessivos explicito finalmente as balizas cronológicas da Bossa Nova e da Tropicália, personificando-as também. Armemos as duas cenas.

O primeiro exemplo serve para abrir a comparação contrastiva em que está em jogo o comportamento do corpo do artista em público. Lembre-se duma apresentação típica, em teatro ou televisão, de João Gilberto ou de Vinícius de Moraes. [nota 14] Optemos por este. O poeta, letrista e cantor carioca se faz acompanhar de Toquinho, seu violonista preferido. Vinicius permanece sentado durante todo o show e mantem o corpo imóvel e sedutor diante do microfone. Numa mesinha ao lado, repousam a garrafa de uísque e um copo. De vez em quando, o embaixador brasileiro − a ser cassado pelo AI-5 em 1969 − bica um gole de uísque.

O exemplo concreto e contrastante é encontrado anos depois numa apresentação do músico, letrista e cantor Caetano Veloso. Ele raramente toma assento. Permanece de pé e atua em movimentos inesperados. Lança a luso-brasileira Carmem Miranda [nota 15] como modelo de atuação no palco e dela rouba, para a alegria dos espectadores e fãs, alguns requebros e gingados, enquanto as mãos retraçam no espaço teatral gestos típicos da Brazilian bombshell. No palco, o corpo do cantor dança à semelhança do corpo de Carmem Miranda que, por sua vez, seguia os passos ditados pelo coreógrafo Busby Berkeley para os filmes de Hollywood. Lembre-se também, como apêndice ao exemplo tropicalista, os shows ao vivo ou gravados do grupo Secos e Molhados, de que fez parte o cantor Ney Matogrosso.[nota 16]

De maneira mais discreta, mas não menos certeira, estou me referindo à entrada dos sujeitos – cantor e/ou espectador − em diferentes paraísos artificiais. Num momento, é a embriaguez causada pelo consumo do álcool e, no outro, a sensação causada pelo efeito das drogas ditas alucinógenas. Estou me referindo, ainda, a uma abertura à discussão do comportamento sexual tradicional, de que será modelo, no tempo, a que se chamou em termos da gíria norte-americana aqui aclimatada, de “saída do armário”, e que chega aos dias de hoje como possibilidade de uma sociedade não binária, transgênero, com identidades étnicas precisas e com acessibilidade regularizada por lei à maconha.

 

NOTAS

[nota 1]. Contraditoriamente, é por conveniência que uso o substantivo cantor só no masculino. Ofereço a mão à palmatória. Aos 82 anos, o bom e escorreito estilo em português continua a me reprimir. Também é do meu interesse acentuar menos o profissional da música e mais o desempenho físico e alegórico do corpo humano, sem gênero desenvolvido.

[nota 2]. Vídeo disponível em youtube.com/watch?v=-zLicyzaH5A. Contraste-se a performance de Ney com a interpretação posterior de Nando Reis, também excelente: youtube.com/watch?v=hHRXxhYcEqk. Ambos foram acessados em junho de 2019.

[nota 3]. Neste 13 de junho de 2019, em que escrevo, o Supremo Tribunal Federal julgou que a homofobia se equipara ao crime de racismo. No dia seguinte, o presidente da República comenta a decisão em entrevista. Cito notícia do UOL: “Na avaliação do presidente, um ministro evangélico poderia se contrapor à criminalização da homofobia com base em trechos da Bíblia e, se visse que sua posição estava perdendo, pedir vista – mais tempo para analisar o processo – e, então, ‘sentar’ em cima do processo. Ou seja, não permitir que o caso voltasse a ser julgado num futuro próximo. ‘Não custa nada ter alguém lá’ (no STF), falou”.

[nota 4]. “O cuidado em dizer o que acontece (...) não reside tanto em querer saber como isso pode acontecer por toda parte e sempre, mas antes pelo desejo de adivinhar o que se esconde debaixo deste vocábulo preciso, flutuante, misterioso e totalmente simples: ‘Hoje’.” Frase de Michel Foucault extraída de Pour une morale de l’inconfort, texto citado na epígrafe.

[nota 5]. O desenrolar epigramático desses parágrafos pode ser conferido com o enredo e o grande sucesso junto ao público jovem da peça Hoje é dia de rock (1971), de José Vicente. Jovens interioranos saem em busca de novas identidades. O título da peça explicita qual será a forma de uma delas, a da imagem exibida nos filmes e vídeos de Elvis, the Pelvis (exagerada, aliás, na interpretação de Ney Matogrosso). Ao perder a casca da serpente, o interiorano não se identifica a, “é” o próprio Elvis. Dá início a uma imprevisível forma de camaradagem geracional.

[nota 6]. Opto pela excelente tradução em inglês: “But you will not bring on to the stage anything that ought properly to be taking place behinds the scenes, and you will keep out of sight many episodes that are to be described later by the eloquent tongue of a narrator”.

[nota 7]. Cito o original francês: “Ce qu’on ne doit point voir, qu’un récit nous l’expose: / Les yeux en le voyant saisiront mieux la chose; / Mais il est des objets que l’art judicieux / Doit offrir à l’oreille et reculer des yeux”. 

[nota 8]. Católico por formação, é notável a presença de T. S. Eliot na poesia de Vinicius. Leia-se a pouco conhecida e notável coleção de poemas intitulada Cinco elegias.

[nota 9]. Em 1984, Martinho da Vila compõe samba-enredo para a Unidos de Vila Isabel, em que endossa e desconstrói pela conjunção adversativa os dois célebres versos sobre a tristeza que, na quarta-feira de cinzas, baixa sobre o povo. Canta Martinho e justifica sua felicidade no carnaval por ela não ter vida breve: “Sonho de rei, de pirata e jardineira / Pra tudo se acabar na quarta-feira / Mas (grifo meu) a quaresma lá no morro é colorida / Com fantasias já usadas na avenida / Que são cortinas, que são bandeiras / Razão pra vida tão real (idem) da quarta-feira / É por isso que eu canto.”

[nota 10]. Remeto o leitor a ensaio meu intitulado Cadê Zazá (2001), do livro O cosmopolitismo do pobre (Editora UFMG, 2004).

[nota 11]. É curioso notar que é a partir da “abertura” que essa vertente de resistência da produção artística se prolonga e se torna altamente rendosa e perigosamente comercial. Pense-se na voga do teatro infantil ou infantojuvenil, de que Maria Clara Machado será o melhor bom exemplo, e não o mau. Pense-se no êxito extraordinário dos livros infantojuvenis, êxito este que culmina com a instauração de um novo e absurdo gênero literário reservado a determinada faixa etária, o dos livros para Young adults. Estes não ajudam o jovem a crescer, mas a permanecer na mesma idade.

[nota 12]. Uma apresentação sucinta sobre “aparelho ideológico” e “dispositivo” se encontra em ensaio do autor incluído em Aos sábados, pela manhã (Rocco, 2013). Dispositivo é, diz Foucault, “um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber, e por ele são condicionados”. Ao somar poder e saber, a noção de dispositivo instrumentaliza a indagação sobre o modo como as expectativas emancipatórias do indivíduo se dobram ao coercitivo e punitivo “governo dos homens”. O filósofo Giorgio Agamben atualiza e amplia o conceito de Foucault: “chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (in O que é o contemporâneo).

[nota 13]. O próprio crítico explicita retrospectivamente sua postura sociológica na leitura da MPB, em vídeo produzido pelo Instituto Moreira Salles: youtube.com/watch?v=RbBrJuvJ3vA (acesso em junho de 2019). Se não for abusado da minha parte, proponho que o depoimento dele seja contrastado com o ensaio que escrevi em 1972, sobre Caetano Veloso. V. Caetano Veloso, como superastro, do livro Uma literatura nos trópicos, nova edição pela Cepe Editora.

[nota 14]. Durante o transcorrer da Tropicália, Chico Buarque é o que mais de perto se cola ao comportamento dos dois mestres. A resistência política à ditadura está na letra das notáveis canções de Chico. Ele é melhor poeta que intérprete no palco e, por isso, seu legado não é o do corpo, mas o da permeabilidade à palavra-de-ordem político-partidária, mais influente junto aos espectadores adultos. Seu corpo é o de bom burguês, aquém das inconveniências perpetradas pelos corpos de Caetano, Ney e Raul. Leia-se de minha autoria o ensaio Bom conselho, escrito no calor da hora e reunido a outros ensaios em Uma literatura nos trópicos.

[nota 15]. Sobre sua relação com Carmem Miranda, Caetano publica no jornal The New York Times, de 20 de outubro de 1991, o longo artigo Caricature and Conqueror, Pride and Shame. Dele extraímos o primeiro parágrafo: “Para a geração de brasileiros que chegou à adolescência na segunda metade dos anos (19)50 e à idade adulta no auge da ditadura militar brasileira e da onda internacional de contracultura – para a minha geração –, Carmen Miranda foi, primeiro, motivo de um misto de orgulho e vergonha e, depois, símbolo da violência intelectual com que queríamos encarar a nossa realidade, do olhar implacável que queríamos lançar sobre nós mesmos”.

[nota 16]. Acaba de ser lançada uma biografia do grupo Secos e Molhados. Miguel de Almeida, Primavera sem dentes (São Paulo: Três Estrelas, 2019).

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