Artigo Diarios Eduardo Azeredo

 

ESPAÇO ÍNTIMO E MUNDO EXTERIOR

A frase é de Elias Canetti, e está em um ensaio sobre Kafka (1883-1924): “quem pensar que possa separar seu mundo íntimo do mundo exterior simplesmente não possui o primeiro dos dois”. Não é coincidência que o diário íntimo tenha surgido, e se popularizado, no final do século XVIII, período em que as noções de pessoa e de história passavam por transformações decisivas. A percepção de que “possuímos” um espaço interior, e que podemos acessá-lo por meio da escrita, é contemporânea ao entendimento de que somos todos passageiros de um mesmo barco, a História – e que uma vida interior vigorosa é a única tábua a que podemos nos agarrar na hora da catástrofe.

Muito do que nos atrai na leitura de um diário tem a ver com sua historicidade: as marcas de uma época se espalham por ele como a poeira do dia a dia. É verdade que enxergamos a amplitude do cenário histórico com mais nitidez que os diaristas: sabemos como as coisas vão terminar, enquanto eles tateiam no escuro, no nevoeiro do aqui e agora. Algo da força literária dos diários vem da incerteza quanto ao dia de amanhã.

Nos diários, a História é observada pelas janelas do espaço interior. “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação.” Por que o encontro de duas frases lacônicas produz um efeito tão potente? Nessa entrada de agosto de 1914, Kafka põe lado a lado um evento histórico e um episódio rotineiro, invertendo o que seria a hierarquia comum: é claro que sair para nadar foi o grande acontecimento do dia. De certo modo, a inversão kafkiana anuncia um imperativo do diário íntimo: o de que, para o diarista, não existe o dado histórico objetivo. Retratar o “mundo exterior” é só uma forma de pintar a si mesmo.

Ler um diário em busca dos “fatos brutos” da História pode ser decepcionante. Em seu primeiro Diário de guerra, o escritor alemão Ernst Jünger (1895-1998) retrata o cotidiano nas trincheiras: o assobio dos projéteis, a coabitação com os ratos, a proximidade do inimigo, a banalização da morte. São descrições de imenso valor documental. Mas tão impressionante quanto o relato de uma carnificina é o estado de espírito, o modo de existir de quem escreve sob uma chuva de balas e granadas: surpreendentemente frio, impassível.

É como se Jünger se propusesse a ser pouco mais que um olho, que tudo captura, as mãos sempre a postos para uma anotação urgente, que não pode esperar o término do bombardeio. Todo o resto – se sente raiva, medo, se está a ponto de enlouquecer – fica em segundo plano. “No máximo a 80 metros de nós se encontram uns seis ou oito franceses mortos, que lá estão há mais ou menos dois meses”, Jünger escreve em 4 de janeiro de 1915. “Os membros espalhados nas calças vermelhas e nos capotes azuis têm uma aparência estranha; com o meu binóculo consigo distinguir a cor da putrefação, cinzenta, quase negra, do rosto de um deles.”

“UMA MANHÃ COMO A DE PAUL VALÉRY”

Há ocasiões em que a História se sobrepõe ao diarista. O “eu” é sequestrado, tomado de assalto pela realidade, e o andamento normal das coisas do mundo – o ritmo de um modo de existir – se quebra de vez. De uma hora para outra, a escritora ou o escritor de diários está no front de batalha (Jünger), na prisão (Marquês de Sade), no hospício (Maura Lopes Cançado), num sótão (Anne Frank), em uma cidade devastada pela bomba atômica (dr. Hachiya). Nesses casos, a escrita do diário ganha ares de testemunho, e é também um último recurso para tentar não ir a pique.

A ilusão que funda o diário íntimo é a do eu autônomo, inviolável. É difícil perseverar no registro dos dias sem se engajar, o mínimo que seja, nessa utopia romântica. Quando a História se impõe, o diarista se sente ameaçado, tem medo de perder o que mais ama: a própria individualidade. “Não posso mais escrever este diário porque já não sou dona de mim mesma”, Hélène Berr (1921-1945) registra em setembro de 1942, na Paris ocupada pelos nazistas. “Me limito a anotar os fatos exteriores, apenas para me lembrar deles depois.” O resistente norueguês Petter Moen (1901-1944), encarcerado pelos soldados alemães, usa alfinete e papel higiênico para fazer suas anotações, que esconde nos dutos de ventilação de sua cela. Nenhum dos dois sobrevive, mas os diários são preservados.

Ao contrário de Jünger, que se alistou no exército “para viver aventuras” e por atração à “beleza selvagem do perigo” – ele morre com mais de 100 anos –, Hélène Berr e Petter Moen são atropelados pela História. Em abril de 1942, nas primeiras entradas do diário de Hélène, a superfície do mundo parece inalterada. Quase não nos damos conta de que ela caminha numa cidade controlada pelo inimigo. Hélène descreve o céu da primavera, trata de livros e de decepções amorosas. É admiradora do “senhor Valéry”, e fica radiante com a dedicatória que consegue roubar do poeta: ao despertar, tão suave é a luz e tão bonito este azul vívido.

Dois meses depois, em 8 de junho, Hélène é obrigada a costurar uma estrela amarela na própria roupa. “É o primeiro dia em que realmente me sinto de férias. Está um dia claro, muito fresco depois da tempestade de ontem. Os pássaros cantam, uma manhã como a de Paul Valéry. Também é o primeiro dia em que usarei a estrela amarela. São os dois aspectos da vida de hoje: o frescor, a beleza, a juventude da vida encarnada nesta manhã límpida; a barbárie e o mal, representados por esta estrela amarela.”

O diário de Hélène é um diário da espera: ela sabe que será deportada, que não existe saída de emergência. “Eu disse que não tinha medo”, ela anota em 13 de dezembro de 1943. “Ainda assim, me pergunto se não é só por ignorância, ignorância dos sofrimentos que será preciso suportar, ignorância da minha capacidade de resistir.”

 

“AQUELA ABELHA SALVOU SUA VIDA”

Quando a bomba atômica explode sobre Hiroshima, o dr. Michihiko Hachiya (1903-1980), diretor do Hospital de Comunicações, está em casa. Nu e ferido, caminha pelos escombros da cidade. Sobrevive a um incêndio, a desabamentos. É internado. Ao recuperar um pouco das forças, decide iniciar um diário. O tom das primeiras entradas beira o onírico, e não poderia ser diferente: a realidade adquiriu contornos de um pesadelo. “Havia pessoas com formas sombrias, algumas eram como fantasmas vivos”, ele registra. “Uma coisa era comum às pessoas que eu via – o completo silêncio.”

Em um cenário de devastação, a própria linguagem parece estar em perigo. As palavras repelem o horror em estado puro. É preciso que o tempo aja, que as horas escoem, que as analogias trabalhem. “As ruas estavam desertas, exceto pelos mortos. Alguns pareciam ter sido congelados pela morte em pleno voo; outros jaziam esparramados, como se um gigante os tivesse lançado para a morte de uma grande altura.”

Se o de Hélène Berr é um diário de espera, o do dr. Hachiya é um diário de convalescença. Pouco a pouco, ele e a cidade voltam à vida. Os sobreviventes vão se dando conta de que testemunharam algo sem precedentes, e só estão vivos por obra do acaso. No dia 9 de agosto, o dr. Hachiya recebe a visita do sr. Okamoto, funcionário do Ministério das Comunicações. “Ele estava a caminho de Hiroshima quando o bombardeio ocorreu, e estaria aqui na hora exata se não tivesse sido picado por uma abelha perto de Kure, uma cidade ao sul de Hiroshima, e parado para buscar tratamento. Aquela abelha salvou sua vida.”

Por quase uma semana, o dr. Hachiya segue sem ter ideia do que se passou. Nem ele e nem ninguém em Hiroshima. Não há como recorrer aos livros, à memória dos velhos. O conhecimento histórico é inútil sem um espaço prévio de experiências. Logo os efeitos da radiação se fazem sentir, mas todos imaginam que se trata de uma nova bactéria, ou de gás venenoso. Falta até mesmo uma palavra adequada para se referir ao ocorrido. Quem estava perto do epicentro fala de um brilho acentuado, pika, explosão silenciosa de luz. Quem estava longe menciona o estrondo, don, que se segue ao clarão. Em poucos dias nasce uma palavra, pikadon, explosão feita de som e luz.


O DIÁRIO COMO AUTOPRESERVAÇÃO

É preciso sangue frio para escrever na contramão da História. Em 1936, o alemão Friedrich Reck (1884-1945) decide iniciar um diário, que tem o cuidado de enterrar depois de fazer suas anotações. Age assim até ser preso pela Gestapo, em 1944, e enviado ao campo de Dachau, onde morre de tifo. Crítico de primeira hora do regime de Hitler, Reck diz que o diário pretende ser uma “contribuição para a história cultural do período nazista”. Não alimenta ilusões de que será lido em seu país.

Reck não escreve para o agora, mas para a posteridade. Nas entradas do Diário de um desesperado praticamente não fala de si. Seu interesse está em retratar uma febre coletiva, o “irromper do abcesso de uma nação” – que ganha corpo na figura do “homem de massas”. “Por sua mente e suas necessidades físicas”, ele anota em 9 de setembro de 1937, o homem de massas “só pode existir no seu autocriado ventre de corrupção e trogloditismo. Isso é tão necessário para ele quanto a lama para o porco”.

Em situações com as de Hélène Berr, do dr. Hachiya e de Friedrich Reck, em que a realidade se mostra desfigurada, irreconhecível, a própria noção de vida interior se encontra sob a ameaça de aniquilamento. Nessas ocasiões, quando a História arma suas emboscadas e o diarista se vê acuado, nas cordas – seja por alheamento, ingenuidade, ou pelo costume de ter os olhos sempre voltados para dentro de si –, a escrita íntima se transforma em instrumento de autopreservação. Não tanto do indivíduo em carne e osso, mas do seu modo de existir, cultivado ao longo de uma vida – uma imagem do eu e do mundo, do eu no mundo, que procura se fixar antes de desaparecer por completo.

 

DIÁRIOS CITADOS
Ernst Jünger. Diario de guerra (1914-1918). Trad. Helmuth Hiesel. Tusquets, 2013.
Friedrich Reck-Malleczewen. Diário de um desesperado. Trad. André Caramuru Aubert. Sesi-SP, 2017.
Hélène Berr. Diario. Trad. Jaime Zulaika. Anagrama, 2009.
Michihiko Hachiya. Hiroshima Diary. Trad. Walter Wells. The University of Carolina Press, 1995.

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