Artigo Bandeiras 1 Vai Passar de Marcos Chaves 2019. Foto Daniela Paoliello

 

Foi em meio à trama dos protestos multitudinários deflagrados pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013 que voltamos a ver surgir nas ruas as cores verde e amarela junto às máscaras dos hacktivistas anonymous. O MPL ocupou as ruas de São Paulo portando elementos visuais deliberadamente austeros, facilmente legíveis e apartidários, optando por faixões pretos com grandes letras brancas, sem símbolos ou siglas.


Em contraste com essa economia gráfica sóbria, começaram a pipocar, nos protestos, bandeiras nacionais embalando dramaticamente os corpos da nova direita, que logo passaria a disputar ferozmente espaços políticos e narrativas com grupos e movimentos sociais de esquerda. Meses depois, camisas da seleção, chapéus carnavalescos e chuva de serpentina nas cores de nossa bandeira positivista se espalhariam por diversas cidades brasileiras, forjando um tipo de performance festiva, risível para muitos, mas sedutora para outros tantos que, pela primeira vez, tomavam parte numa manifestação coletiva. Interessadas em fomentar as manifestações da direita, empresas de publicidade e gráficas disponibilizaram seu conhecimento técnico e suas máquinas para imprimir cartazes com mensagens contra o governo Dilma. A rede de lanchonetes Habib’s chegou a criar uma campanha intitulada #FomeDeMudança, tendo imprimido milhares de cartazes amplamente utilizados nos protestos que antecederam o golpe.

Nos últimos anos, muitos protestos multitudinários se viram tomados por dinâmicas de construção visual semelhantes, a ponto de se tornar incômodo, quando não impeditivo, o uso da camisa amarela da seleção brasileira de futebol pelos torcedores auto-identificados com a esquerda. Desde a Primavera Árabe, o uso das máscaras sinalizou a presença dos neoanarquistas nos protestos, enquanto as bandeiras nacionais indicavam o recrudescimento do conservadorismo e a radicalização da direita.

Assim, as máscaras podem ser remetidas à descrença nas instituições e à aposta na autonomia dos movimentos coletivos auto-organizados e anônimos e as bandeiras remetem, em geral, à nostalgia de poderes governamentais combativos, à afirmação de territórios oficiais e ao fortalecimento de fronteiras nacionais. Não significa que a bandeira nacional não possa escapar ao destino de signo reacionário; nos protestos levados a cabo na Grécia em 2010-2012, a bandeira do país simbolizou a autonomia nacional em oposição à colonização econômica alemã, que impunha aos gregos políticas neoliberais sacrificiais devastadoras. Durante os recentes protestos no Líbano, a artista Zarifi Haidar Marin produziu pinturas representando as manifestações com as cores da bandeira. Segundo ela, o uso das cores ajudaria a explicitar a unidade das reivindicações diante da heterogeneidade dos manifestantes.

Artistas não são indiferentes ao potencial performático, gráfico, conceitual e político das bandeiras. Dos estandartes de Hélio Oiticica ao literal e sardônico porta-bandeira de Cildo Meireles, são numerosas as apropriações críticas das bandeiras. Em 2017, o artista John Gerrard criou a Bandeira ocidental, feita de fumaça preta, chamando atenção para o local onde ocorreu a primeira extração de petróleo de grandes proporções: Spindletop, no Texas. Recentemente, Ernesto Neto apresentou na Feira de Arte Internacional do Rio de Janeiro (ArtRio) sua versão da bandeira brasileira motivada por incursões na cultura indígena dos huni kuin. O resultado talvez não seja visualmente tão relevante, mas o gesto mostra que, no atual contexto de iconocrise e estrangulamento político no país, junto à discussão sobre o genocídio e epistemicídio das culturas ameríndias, os símbolos nacionais tornam-se novamente elemento de interesse a ser reinvestido de leituras artísticas questionadoras.

A trajetória recente de Neto pode ser interessante, pois é exemplar de certa desorientação que leva à virada ética, em que fica minimizado o projeto de emancipação dos sujeitos pela sensibilidade ou ludicidade das formas, e o artista passa a buscar, junto às culturas indígenas, outras experiências sensoriais e sensíveis e acaba por transformar-se em uma espécie de embaixador cultural dessas outras culturas. Se esses encontros entre o artista e os huni kuin promovem positivamente a presença indígena no sistema das artes, por outro lado levantam uma série de questões relativas à negociação, à apropriação cultural, e aos usos da espiritualidade indígena em contextos mercantis e reificantes.

Não é fácil abordar o lugar da arte na construção ou perturbação simbólica e visual de contextos políticos e culturais em crise. É certamente um desafio para os artistas articular formas, gestos, discursos e experiências alternativas que consigam efetivamente fazer frente de maneira afirmativa a essa nova visualidade. Se os “artivistas” são agora mais numerosos e visíveis nos meios institucionais, são também mais criticados pela inocuidade de suas intervenções criativas. O artista contemporâneo transita num campo de percepções contraditórias onde a arte é vista ao mesmo tempo como possibilidade de redenção momentânea, expressão forte das liberdades ameaçadas, e índice de ingenuidade e privilégios, já que a maior parte dos artistas atua em ambientes relativamente protegidos da turbulência política que pretendem desafiar.

 

Artigo Bandeiras 2 Canalhas de Livia Aquino 2017 Foto Divulgacao                                                             
                                                                                                                                    (Canalhas, de Lívia Aquino (2017) / Divulgação)




É no contexto que oscila entre o ceticismo, a sensação de diluição da capacidade de intervenção política da arte e uma crescente repolitização do campo artístico que se pode verificar esforço de renovação curatorial, com exposições interessadas em religar a produção artística recente com os engajamentos dos anos 1960 e 1970. Não se trata de assumir o caminho nostálgico, mas de testar operações capazes de reconciliar o presente sufocante com experiências artísticas e sociais dos anos de ditadura, buscando desenhar novos fluxos entre o dentro e o fora dos museus, e entre o espaço virtual das redes sociais e espaços de contato presencial.

Esse investimento curatorial reflete o fato de que, nos últimos anos, um número significativo de artistas tem procurado dialogar diretamente com os protestos de rua e com o imaginário da luta coletiva, desvelando possibilidades de sinergia para reivindicar maior participação na democracia ou denunciar a injustiça social em seus diversos aspectos. É verdade que a maioria dos artistas contemporâneos talvez tenha preferido participar das manifestações de rua recentes apenas como cidadãos, sem maiores contribuições criativas às formas e aos formatos dos protestos, mas na sequência de 2013 e na rebordosa da ascensão de Jair Bolsonaro à presidência, projetos artísticos e curadorias parecem buscar meios explícitos de intervir na cena política nacional a partir do campo cultural.

Chamam atenção as curadorias que sublinham ou tratam de produzir zonas de contato entre o museu e as ruas, como no caso da exposição Viva Maria, organizada por Maria Montero, em 2014, e que retomava no título a bandeira criada por Waldemar Cordeiro, em 1968, para o Salão da Bahia, mas também a Festa das Bandeiras, no Centro de Artes Hélio Oiticica. A exposição foi fruto de importante levantamento feito por Izabela Pucu, que aprofundou e ampliou a documentação já conhecida sobre o happening realizado em 1968, na praça General Osório, no Rio de Janeiro, onde se podiam ver bandeiras penduradas em varais, entre elas as de Anna Maria Maiolino e Nelson Leirner, e a célebre seja marginal/seja herói, de Hélio Oiticica, exibida pela primeira vez ali.

Em 2019, a Fundação Joaquim Nabuco abrigou a exposição Bandeiras da revolução, curada por Moacir dos Anjos em parceria com o escritor José Luiz Passos, interrogando os elos perdidos entre as bandeiras revolucionárias do início do século XX e as do presente. A mostra aproveitou o bicentenário da Revolução Pernambucana para enlaçar documentos sobre a bandeira desse levante, bandeiras dos movimentos sociais contemporâneos e trabalhos de artistas em atividade que tomam bandeiras e faixas como um dispositivo de intervenção no imaginário político-social.

Essas curadorias pareciam lidar direta ou indiretamente com aquilo que Philipp Dietachmair, inspirado em Michel de Certeau, caracteriza como o “espaço civil”, que se distinguiria tanto do “espaço cívico”, ratificado pelo status quo, quanto do “espaço público” por sua capacidade de deflagrar ações civis, artísticas e não artísticas, capazes de assumir o desafio de traduzir no espaço urbano, de maneira efetiva e coletiva, a indignação e a mobilização produzidas nos espaços individualizados das redes sociais virtuais. São exposições que, além de conectar o passado com o presente, procuram inserir a arte contemporânea no contexto civil de construção visual das manifestações políticas.

Foi também no ano passado que o artista carioca Marcos Chaves instalou, no mastro do Palacete D. João VI, a bandeira verde e rosa com a inscrição VAI PASSAR, obra comissionada pelo Museu de Arte do Rio (MAR). Do outro lado da bandeira, via-se um enorme ponto de interrogação como que colocando em suspenso a mensagem de alento, que remete também aos versos de Chico Buarque “Vai passar/nessa avenida um samba popular”. O verso, ecoando restos de carnaval, ou seu chamado e o ponto de interrogação flutuando no alto do mastro do museu questionando o reverso da bandeira traziam latente toda a angústia atual diante do presente e do futuro políticos do país. Ao mesmo tempo que sublinha a dimensão passageira do governo e de seu projeto autoritário e ultraliberal, a bandeira coloca a afirmação em clave de interrogação. Essa dúvida que paira sobre nossas cabeças, ali concretizada na forma de uma bandeira do nosso triste carnaval político, acabava por incidir sobre o futuro do próprio MAR, cuja existência vem sendo sistematicamente ameaçada pela prefeitura carioca. A dúvida estampada na bandeira de Chaves reverbera nos passantes da zona portuária do Rio, intensificando o remoer solitário mas comum a muitos cidadãos que por ali passam.

Uma iniciativa da artista Lívia Aquino parece partir da solidão e da indignação compartilhadas para construir espaços de contato. Lívia também retoma o trabalho de Waldemar Cordeiro Viva Maria, mas não para uma proposta curatorial; ela faz dele o centro de um ateliê de costura aberto à participação de quem quiser colaborar. A bandeira Viva Maria é um trabalho fora da curva da pesquisa tecnológica de Cordeiro, feito de tecido e feltro costurados de modo a formar a palavra CANALHAS.

Foi em 2016, no conturbado período das negociatas e votações do golpe, quando a bandeira ganhou o espaço das redes sociais, que Lívia teve a ideia de propor algo a partir dela. As oficinas ocorrem no próprio ateliê da artista, e é no verso das bandeiras que se pode encontrar o índice concreto das diferentes mãos trabalhando em conjunto. Se as bandeiras são quase idênticas vistas de frente, quando viradas vê-se que cada um costurou as letras a seu modo: algumas revelam um domínio da costura, outras são costuradas de maneira totalmente intuitiva e amadora.

O trabalho de Lívia interessa porque explicita a busca por uma outra qualidade temporal por meio dos encontros; trata-se de uma intervenção no tempo. Há o tempo da retomada no gesto citacional ou de empréstimo a Cordeiro, coloca-se seu trabalho em circulação agora segundo uma nova dinâmica; ou, como diz Maria Angélica Melendi, ao refletir sobre as estratégias da arte em nossa época de catástrofes, o acervo artístico está sendo reativado “como um museu vivo, cujas peças podem ser atualizadas e recriadas indefinidamente”. A oficina de costura à mão é também uma brecha no presente ameaçador e enclausurante. Afirma-se nessa prática o tempo lento da costura, o inesperado dos encontros e da conversa entre pessoas diferentes, mas que ali podem inscrever juntas uma palavra de protesto, ainda que não direcionada a um alvo explicitado. O projeto atende tanto à urgência dos protestos quanto ao desejo muito atual de criar uma comunidade política efêmera, baseada em experiências de horizontalidade criativa, de criação compartilhada e anônima que canalize o afeto do ódio e dê forma às dúvidas sobre o porvir.

A palavra CANALHAS, assim como a frase VAI PASSAR de Marcos Chaves, não encerra um sentido único e lapidar diante da insatisfação; são espécies de ecos públicos de sensações e pensamentos individuais lançados no turbilhão do momento histórico. Também nisso reside a força dessas intervenções que relançam no ar e nas fachadas de edifícios versos e gestos anteriores a nós, mas adensados e ressignificados pela própria conjuntura. São trabalhos que propõe, cada um a seu modo, a criação de formas de uso do passado articulando experiência e expectativa sem nostalgia e tampouco sem certeza alguma sobre o futuro: hasteando bandeiras capazes de fazer ecoar, nos espaços comunitários ou civis, as palavras que dizem os afetos políticos de hoje, não esgotáveis no eterno presente das más notícias paralisantes que inundam diariamente as redes virtuais.

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