Estou sentado diante do meu computador. É janeiro, e em Porto Alegre faz um calor que, ao longo de 2019, me acostumei a explicar (em Maceió, Petrolina, Cuiabá, Parnaíba): acreditem, também faz por aqui. “Ih, gaúcho, deve estar passando um calor danado.” Um dos pequenos muitos desencontros possíveis entre brasileiros. Estou diante do computador e sobre a mesa de trabalho vejo um porta-trecos, latinha de ervilha ou molho de tomate pintada à mão em azul, branco e letras coloridas. É porta-trecos e porta-poemas, também um bilboquê. Logo, não sei que nome tem. Ganhei do performer e poeta Neneto Sá, quando estive em Cuiabá, em agosto. Olho o trabalho do Neneto e lembro de um papo com um escritor, grande amigo meu. Ele perguntava: “O que conhecemos da literatura romena?” Provavelmente respondi: “Nada”. Hoje eu poderia retrucar: “O que conhecemos da literatura brasileira?”
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Existem escritoras e escritores viajados. Estão uma semana aqui, outra ali. Não é bem o meu caso. Mas 2019 foi diferente. A convite do circuito Arte da Palavra do Sesc, ministrei aulas de criação literária em seis cidades brasileiras. E fiz mais algumas viagens para lançar um livro.
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Isto não é um caderno de viagens, mas poderia ser. Também não há uma tese central. Há um caminho que foi percorrido e a tentativa de refazê-lo, seguindo a pista de livros espalhados, projetos variados, personagens, versos. Um mapa fora do mapa. Mapa bricolagem que tenta colar peças tão distintas como Piauí e Paraná, a arte espontânea, de rua, chapa e cruz de Neneto Sá e a poesia metaliterária, sintética e imagética da alagoana Amanda Prado; ver um território no que surge. Se todo país é uma ficção, me sinto narrando um país desconhecido depois de 2019.
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Algo que fica dessas viagens é uma vertigem de leitor. O delírio utópico de imaginar um modo de estar em contato com as literaturas brasileiras. Em minhas aulas, falo de Amílcar Bettega, Maria Valeria Rezende, Antonio Xerxenesky, Veronica Stigger, Sergio e André Sant’Anna. Algo que já ocorria quando dava essas aulas em Porto Alegre se repetiu em todas as regiões onde estive: ninguém, ou uma minoria, na turma, conhecia esses nomes. E há o inverso: Nilton Resende, Guilherme Dicke, Assis Brasil (piauiense, não o gaúcho), Lucinda Persona, referências que preencheram meus cadernos, tarefa de casa que trouxe na mala. Um pouco mais: é normal alunos e alunas não cogitarem a minha existência até o Sesc divulgar que eu estarei lá. E que eu não conheça versos e valsas de Fátima Costa até ela me dar seu livro no final do curso. Não conhecemos nossas literaturas.
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Números: sempre peço, no primeiro dia de aulas, que me digam um livro importante e o último livro lido. Em 2019, pude compilar: 197 citações; 64 nomes brasileiros; dos 64, 39 estão vivos – entre eles Jessé de Souza, Ailton Krenak, Viviane Mosé, que não publicaram ficção e poesia.
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Um dos motores dessas notas que escrevo: espalhar o que conheci (sem perder de vista o fracasso pré-anunciado: é impossível dar conta de um todo tão imenso). Transmitir, por contágio, minha angústia amplificada de que algo muito interessante está sendo escrito agora. E não vou ler. Talvez não alcance nem leitores da cidade onde o livro é escrito.
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Há essa questão. Embora seja certa a impossibilidade de dar conta desse todo em crescimento exponencial, ainda posso especular: não seria possível um trânsito maior? Um eco maior do que acontece em latitudes e longitudes que não as do eixo mais famoso do Brasil? Em abril, véspera da primeira das viagens, eu alimentava a ilusão de escrever uma versão menor e brasileira de Livrarias, de Jorge Carrión. Conheceria ao menos uma livraria local, de rua, em cada cidade visitada e refletiria sobre elas. A pesquisa sobre Maceió anunciou dificuldades. Livrarias, por lá, apenas redes em shoppings, livrarias espíritas, católicas, evangélicas e La Cittá — única loja de rua que achei. Mas essa não é uma peculiaridade de Maceió. A ausência de livrarias locais e independentes foi recorrência. Ou mesmo a ausência completa de livrarias em algumas cidades. Lembro de um dado de recente pesquisa: pouco mais de 17% dos municípios do país possuem ao menos uma livraria. Claro, a pequena livraria não solucionaria a questão dos trânsitos ou da pouca circulação de autoras e autores. Mas faz parte de um ecossistema que fortalece o culto do livro e a cena local.
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No início de 2019, com Fernando Ramos e Gabriel Pardal, entrevistei para o programa Ligações perigosas Ivan Pinheiro Machado, da L&PM. Ele, que inaugurava a livraria Pocket, dizia que era difícil encontrar livros da L&PM nas grandes redes instaladas em Porto Alegre. Para vender seus títulos na sua cidade, tinha que mandar até São Paulo para o livro ser enviado à filial porto-alegrense. Setembro de 2019: estou com as escritoras Patrícia Portela e Gabriela Silva, na Livraria Taverna. Entra Italo Moriconi, que está de passagem pela cidade. Um professor amigo seu o levou para um café na livraria. Somos apresentados. Italo estava espantado com a diversidade da cena gaúcha. Houvesse ido à Saraiva ou à Cultura, talvez não comentasse isso. Algumas vocações da livraria independente: o contato com a cidade, os lançamentos, o que não pode ser esquecido. Enfrentar a massificada lista de mais vendidos e planos de marketing das grandes editoras. Promover encontros.
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O Sesc preenche parte dessa lacuna. É emocionante conhecer o Sesc Caixeral (Parnaíba), Poço (Maceió), Arsenal (Cuiabá), Da Esquina (Curitiba), as sedes de Petrolina e Paraty. Além de espaços exuberantes – pela beleza de prédios históricos recuperados, pela estrutura ofertada –, há o papel de centro catalisador, congregador de pessoas que estariam dispersas, engavetando textos ou desejos de textos. Conheci alunos e alunas que tiveram aulas com uma lista invejável de escritores. De graça. Oficinas que muita gente em São Paulo, Porto Alegre ou Rio não frequentou. Em todas as sedes, há grupos de criação literária e clubes de leitura que ali se formaram e produzem antologias, zines, revistas.
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Nesses espaços Ithalo Furtado, figura ativa nos circuitos digitais, encontra uma comunidade de leitores locais, cria novas pontes, inspira quem duvida da possibilidade de fazer arte longe dos centros. Um verso de Ithalo, “Eu moro cá no cume que é pé, num Brasil que luta pra não ser visto com olho de pena. Aqui é terra de gente que se despede a todo instante”, diz um tanto sobre a sensação de abandono que cenas culturais distantes dos centros carimbadores nacionais experimentam. Não foi raro ouvir em Parnaíba “Mas aqui tem gente talentosa”, “Aqui tem coisas interessantes”, como se eu julgasse isso impossível.
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Cheguei em Parnaíba uma semana após Ithalo Furtado encerrar a exposição Meu nome agora é uma cidade devastada (procure no Vimeo), no Sesc Caixeral. Seus livros viraram ambientes e instalações com um resultado forte e visualmente impactante. O que não é ponto fora da curva no seu trabalho. Seu Dolores (e os remédios para dormir) não é um livro. É um livro+música+clipe+ensaio fotográfico. Ithalo também tem circulado o país com o projeto Escuto histórias, escrevo poemas (em locais públicos, escuta episódios de qualquer pessoa e os transforma em poema). Esse percurso sugere um enfrentamento com formas pré-concebidas da tradição literária, luta com o sistema do livro no Brasil. Hoje já não é tão difícil imprimir um livro. Fazê-lo circular é outra história.
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Lembro de Móveis empoeirados no peito, do Ithalo: edição artesanal, capa dura, costurada à mão. Misturo com seus projetos e penso nos caminhos que cada cena local encontra para se mover. Feito água, a literatura nas cidades por onde passei não se deixa represar; encontra brechas, contorna pedras, cria trilhas por geografias sociais, culturais e financeiras e, quando encontra vazão, jorra.
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Fim de curso em Maceió. Fátima Costa me entrega seu Valsa triste e Guilherme de Miranda, seu Minha fúria e outros demônios. Recebo de Amanda Prado os poemas de Pedra perdendo seiva. O que têm em comum? O selo da Imprensa Oficial Graciliano Ramos de Alagoas. Assim como a obra de Sara Albuquerque e Lucas Litrento, que conheci por outros caminhos. Dezenas de autoras e autores se valem dos editais do governo alagoano para publicar. Na falta de um sistema literário mais estabelecido, entre Sesc e Imprensa Oficial, há muita potência. É inevitável o paralelo com a Cepe, de Pernambuco. Menos regional, revela novidades interessantíssimas com seu prêmio literário.
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Cuiabá, um mistério. Não sei de obras com selo do governo local. Mas o cineasta e encenador Luiz Marchetti me fala da potente cena de slams, poesia na calçada de locais como a Praça da Mandioca. Vou para a internet e confirmo (busquem Slam do Capim Xeroso). Também há os experimentos poéticos do Neneto Sá. E Eduardo Mahon, que parece ser ele próprio uma cena literária. Tem 12 livros e vende centenas de exemplares nos lançamentos. Faz parcerias com universidades e escolas, lança livro no mesmo evento em que estreia peça ou filme baseado em sua obra. Edita a revista literária Pixé, com colaborações, majoritariamente, de autoras e autores de Mato Grosso. Vasto catálogo para conhecer um recorte da produção mato-grossense. Assim como Mahon, alguns nomes publicados na Pixé têm obras na editora local Carlini & Caniato.
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Para muita gente, Paraty é sinônimo de literatura. Conto que estive lá e vem a pergunta: “Foi na Flip?” Paraty tem mais do que isso. Tem um Sesc ativo, palestras, oficinas, clubes de leitura o ano inteiro. E tem Flávio de Araújo e o selo Off Flip. Precisei ir a Paraty para conhecer o poeta que tem textos traduzidos fora do Brasil, esteve em eventos em Cuba, México e EUA. Está na bela seleção de poesia contemporânea organizada por Luci Collin na revista Eutomia. Flávio e seus poemas, muitos com bonita música e olhar caiçara (procurem Credo caiçara, Homem consertando rede) estão publicados pelo selo Off Flip, brava iniciativa de Ovídio Poli Jr. – responsável pelo Prêmio Off Flip e pela empreitada de converter a antiga cadeia de Paraty em espaço de livros, a Livraria da Cadeia. Estranha sensação: a cidade que irradia para o país, por uma semana, escritoras e escritores dos mais diversos recantos, não faz o mesmo com nomes locais. Lemos muita gente que vai a Paraty. Quem lemos que vem de Paraty?
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Parece ser preciso transformar o narrador de Walter Benjamin em leitor. Ir ver (ler), viver as cenas locais para acessá-las. Já vi alguns livros da Cepe em Porto Alegre, sim. Mas os de Alagoas? Até receber as obras ao fim do curso, ou visitar a livraria La Cittá, eu não sabia desse universo imenso. Que dizer das cenas cuiabana, paratyense, petrolinense? Não é preciso ser Pierre Bourdieu para entender que publicar um livro é só parte da existência do livro. Há que se criar rotas para ele se mover. É preciso livraria, evento, leitores, é preciso que autoras e autores circulem. Fazer literatura no Brasil hoje tem um quê de caixeiro viajante. O famoso autor recluso terá também livros reclusos. É comum falar da literatura como arte solitária - escrevo, leio sozinho. Mas os encontros (como os promovidos pelo Sesc) ou as festas, feiras, festivais, tornam a literatura – se entendiam não só como gesto de escrita, mas como fenômeno escrita-leitura – mais próxima de se efetivar.
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Se não é (demasiadamente) leviano ver tendências em minha pequena amostra, comento: recebi romances, poesia, contos ao longo de 2019. Se há eventuais marcas regionais, também vejo o predomínio de obras com viés realista e presente. O tom varia: mais crus, metafísicos, subjetivos ou experimentais. Mas arrisco: o realismo e a tal da condição humana (em prosa e poesia), são persistência histórica.
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Curitiba, não a república, a cidade com livrarias como Arte e Letra, jornais Cândido e Rascunho, a linda Biblioteca Pública, a Escola de Escrita, editoras Kafka, Arte e Letra e Travessa dos Editores e Manoel Carlos Karam, Cristovão Tezza, Luci Collin, Wilson Bueno, Valencio Xavier sempre foi um espaço literário para mim. O que torna surpreendente a descoberta da rota migratória Curitiba/BH. Foi grande a alegria de reencontrar um ex-aluno, André Volpato, e receber seu romance de estreia, Cidademanequim, narrativa com uma linguagem riquíssima. Edição da mineira MoinhoS. Novo reencontro: agora com Cezar Tridapalli. Está lançando seu terceiro livro e me dá um exemplar do excelente romance Vertigem do chão. A estrutura narrativa e a profundidade das cenas chamam a atenção. A editora também: Moinhos. Eu sei: isso se chama acaso. Mas não deixa de ser curioso que justo numa cidade com cena mais estruturada eu encontre autores publicando fora. O estranhamento se reforça: os bons poemas de Quando o verão, de Rodrigo Tadeu Gonçalves, chegam pela paulista Patuá. Jonathan Silva e suas Histórias mínimas pela curitibana Kafka é exceção nessa mini-regra de coincidências. O outro livro de edição local que recebi inverte o fluxo: os contos de Bifurcação, do paulista de Piracicaba Mauro Guidi-Signorelli, vencedor do Concurso Literário da UFPR.
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Sei do risco de apresentar uma vista parcial aqui. Mas o que é uma viagem, um texto, um livro, uma vida, senão uma vista parcial? Sigamos.