Capa 3 Hana Luzia

 

Libertinagem (1930) é o mais celebrado dos livros de Manuel Bandeira. Motivos para isso, evidentemente, não faltam.

Bandeira refere-se a ele no Itinerário de Pasárgada (1954), sua peculiar autobiografia, de um modo que marcará profundamente toda a crítica que se dedicou à sua poesia a partir de então:

“A mim me parece bastante evidente que O ritmo dissoluto é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas ideias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem”.

Como se vê, para Bandeira, o livro representaria o momento em que sua poesia atingiria a maturidade plena. Apesar disso, e de sua importância decisiva para a poesia brasileira do século XX, sua publicação foi custeada com recursos próprios. E o seguinte, Estrela da manhã (1936), foi impresso com papel doado por Luís Camillo de Oliveira Neto, que resultou numa tiragem de apenas 50 exemplares. O poeta denuncia o fato com alguma dose de autoironia: “Em 1936, aos cinquent’anos de idade pois, não tinha eu ainda público que me proporcionasse editor para os meus versos”.

Alguns dos mais decisivos diálogos da poesia de Bandeira se reúnem em Libertinagem. Destacarei três.

Para começar, o modo particular como o autor se ligou ao movimento amplo e tão diverso que foi o modernismo. Trata-se do momento de maior intensidade de seu diálogo com Mário de Andrade. Há mesmo alguns poemas em Libertinagem que ressoam a poesia do autor de Macunaíma. A começar por Não sei dançar, em cujo manuscrito, o poeta anotou: “Influência de Mário de Andrade”. Não se trata de confissão nem indiscrição, apenas de reconhecimento tranquilo que advém de uma amizade admirável que se pode conferir na volumosa correspondência entre os dois escritores. São também decisivos os “amigos do Rio”: Ribeiro Couto, Jaime Ovalle, Rodrigo M. F. de Andrade, Dante Milano, Osvaldo Costa, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto. Também fundamental foi Gilberto Freyre, em quem Bandeira reconhecia a “sensibilidade tão pernambucana” que “muito concorreu” para lhe “reconduzir ao amor da província”, e a quem afirma “dever a escrita” de Evocação do Recife, uma vez que, como se sabe, foi Freyre quem solicitou ao autor, em 1925, um poema para compor o livro comemorativo dos 100 anos do jornal Diario de Pernambuco.

O poema, um dos mais conhecidos e admirados de toda produção bandeiriana, condensa um conjunto amplo de referências. É nele que somos apresentados às figuras que povoam o imaginário da infância em Bandeira, configurando sua mitologia pessoal, como discutiremos pouco adiante. Também encontramos elementos de poética modernista (como a defesa da linguagem oral e da vida cotidiana, assuntos de poesia), temas e procedimentos próprios à lírica bandeiriana (entre outros, o trato aparentemente direto e despojado com a própria biografia, a melancolia como expressão da aceitação de perdas entendidas como irreparáveis, o gosto musical e o ouvido afinadíssimo, particularmente em “Capiberibe / Capibaribe” que Bandeira afirma lhe dar “a impressão de um acidente, como se a palavra fosse uma frase melódica dita da segunda vez com bemol na terceira nota”), além da incorporação de aspectos da cultura popular (bordões, cantigas, brincadeiras, costumes).

O segundo ponto que quero destacar é a Rua do Curvelo, no Rio de Janeiro, onde o poeta morou entre 1920 e 1933. É ao ambiente do Curvelo que Bandeira atribui o “elemento de humilde cotidiano que começou desde então a se fazer sentir” em sua poesia.


COMENTÁRIO MUSICAL

O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra.
Entram por ele dentro
Os ares oceânicos,
Maresias atlânticas:
São Paulo de Luanda, Figueira do Foz, praias gaélicas da Irlanda...

O comentário musical da paisagem só podia ser o sussurro sinfônico da vida civil.

No entanto o que ouço neste momento é um silvo de saguim:
Minha vizinha de baixo comprou um saguim.

Em Comentário musical, as sugestões elevadas são contrapostas abruptamente à situação cotidiana apresentada nos dois versos finais. O efeito é de equalização entre o elevado e o rotineiro: se o silvo incomoda a apreciação das sonoridades anteriormente apresentadas, o som do saguim, por sua vez, lhes confere uma moldura material precisa que relativiza a pretensão de grandeza ao trazê-las para o chão da vida.

No Itinerário, Bandeira menciona que, de seu apartamento no Curvelo, ele observava a “pobreza mais dura e valente” e convivia com “a garotada sem lei nem rei” que lhe restituiu, de certo modo, o “clima” de sua “meninice na Rua da União em Pernambuco”. Por isso, confidencia decorosamente: “não sei se exagero dizendo que foi na Rua do Curvelo que reaprendi os caminhos da infância”.

Este, aliás, o terceiro ponto que quero destacar: em Libertinagem, configura-se a mitologia pessoal de Bandeira, centrada no tempo em que viveu na rua da União, e que é um dos temas mais marcantes de sua poesia. Poemas como Evocação do Recife, Profundamente, Porquinho-da-índia entrelaçam presente e passado, memória, nostalgia e utopia, uma vez que o mundo desejado e irremediavelmente perdido está no passado, num período bem definido de sua infância, época das “mais puras alegrias”. Essa ideia é expressa de maneira comovente em O impossível carinho:

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
– Eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Se em Vou-me embora pra Pasárgada a ênfase recai numa terra inventada, que dialoga, a seu modo, com poemas de evasão importantes, sobretudo o Convite à viagem, de Charles Baudelaire, expressando um “grito estapafúrdio” de um “aporrinhado” (Bandeira chegou a pensar em intitular o poema como “Rondó do aporrinhado”), nas referências à infância, trata-se de encontrar nos resíduos do passado o sentido que falta ao presente. Encontrar o calor e o colorido que teriam um dia existido e que foram irremediavelmente perdidos. É assim que, diante da solidão do presente, uma festa de São João do passado vem acudi-lo em Profundamente:

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Apesar da relativa homologia – no presente e no passado o poeta perde o fim da festa por ter adormecido –, é por meio do passado que o poeta se identifica com a alegria e o rumor que ele percebe, ao longe, no presente. E mais importante: é a infância, especificamente os especialíssimos 6 anos de idade, que preenchem a solidão de “hoje” com “as vozes daquele tempo”. Amor, ternura, melancolia se combinam nessa recordação em que a perda, ainda que permaneça dolorosa, revela-se extraordinariamente elaborada. O luto se completou e as pessoas e circunstâncias de sua infância permanecem vivas nele, como parte essencial de sua subjetividade.

Bandeira refere-se aos anos vividos no Recife e às pessoas queridas desse tempo num dos trechos mais conhecidos, citados e emocionantes de sua prosa:

Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com pequenos veraneios nos arredores – Monteiro, Sertãozinho de Caxangá, Boa Viagem, Usina do Cabo –, construiu-se a minha mitologia, e digo mitologia porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma D. Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heroica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União, com os quatro quarteirões adjacentes limitados pelas ruas da Aurora, da Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Tróada; a casa de meu avô, a capital desse país fabuloso. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante.

Há nesse trecho uma singeleza muito pessoal e muito comovente na lembrança que evoca, bem como na importância atribuída a pessoas queridas de sua infância. Além disso, o enquadramento cultural e literário da infância chama a atenção para outro fator decisivo: o trabalho da memória realizado na produção bandeiriana é, como se poderia esperar, recriação literária e não mera transcrição de lembranças. Trata-se de uma reconstrução a posteriori, na qual é possível reconhecer-se, um tanto deleitar-se, um tanto reconfortar-se dos achaques da “vida madrasta”. Não deixa de ser um modo de ilusão, uma construção destinada a tornar a própria história um pouco mais grandiosa, na linha do que Freud certa vez chamou de “romance familiar”. Mas quem recriminaria Bandeira?

É fácil entender, portanto, que o poeta, no início do Itinerário de Pasárgada, vincule sua percepção do “segredo da poesia” ao “conteúdo emocional” das reminiscências mais antigas que guardava “da primeira meninice”, associando-as aos instantes em que, adulto, sentia-se tomado pela inspiração ou, para usar um termo que lhe é caro, por instantes de alumbramento: “num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta”.

Assim, Libertinagem pode também ser visto como expressão da busca de um tempo perdido num momento de solidão profunda, em que a lenta vitória sobre as agruras da tuberculose foi muito relativizada pela perda trágica e sucessiva da irmã (1918), da mãe (1920) e do pai (1922), sendo, por isso, um belo gesto de amor à vida e àqueles que a preencheram com ternura, delicadeza, inteligência e dedicação.

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