Artigo Saer Reproducao mar20

 

Da pequena localidade de Serodino a Santa Fe, capital da província de mesmo nome. De Santa Fe a Rosario, de Rosario ao campo, do campo outra vez a Santa Fe, e então a Paris e Rennes, de Rennes a Paris. Buenos Aires, apenas por uns dias ou semanas. Do conto ao romance, do romance ao fragmento, do fragmento à poesia e então ao ensaio, ao conto, ao romance. Foram feitas de deslocamentos a vida e a escritura do argentino Juan José Saer (1937-2005), o autor de Glosa, de Ninguém nada nunca e dos contos de En la zona, o volume que pôs em marcha o vaivém da sua literatura e que neste 2020 completa sessenta anos da sua primeira aparição.

Há alguns traços que, de modo geral, podem servir para categorizar, brevemente, a intrincada obra de Saer, um conjunto heterogêneo que pode ser observado desde distintos ângulos e sortes de entrada. Em primeiro lugar, a crítica nunca se esgotou de apontar a radical coerência interna da sua ficção, levada adiante em um mesmo espaço narrativo (a zona, uma transposição para a literatura de alguns espaços constantes da província de Santa Fe) e com a manutenção de um mesmo grupo de personagens, reunião de nomes próprios que se repetem de um texto a outro, e que, em processo, formam o encadeamento que pode ser chamado de saga ou de história comum a percorrer toda a obra.

Por outro lado, a sua literatura também é recordada, recorrentemente, pelo conjunto de técnicas, experimentações formais e procedimentos narrativos que resultaria em um texto sempre cambiante, nunca estabilizado por completo. A obra de Juan José Saer é uma obra em movimento não apenas pelos deslocamentos espaciais que se registram de texto a texto, mas principalmente pelo sempre reinventado ato de narrar, gesto que é indagado também no interior da sua ficção, em uma busca que pode ser visualizada desde os primeiros relatos até o último e inacabado romance, O grande, publicado de maneira póstuma em 2005, poucos meses depois da morte do escritor.

A coerência radical do conjunto e o questionamento obsessivo das formas da literatura não são, no entanto, as únicas chaves de acesso para essa construção labiríntica, feita de caminhos e descaminhos. Pode-se acessar o todo de Saer, quem sabe, a partir dos problemas da recepção (visto que a sua é uma obra que tardou, mesmo na Argentina, mais de vinte anos para encontrar um número significativo de leitores e estofo crítico), da aventura de escrever uma ficção longe do centro absoluto do seu país, da relevância da lírica para a construção da musicalidade da prosa ou, ainda, entre tantos outros rumos, pelos inícios – os contos primeiros, de fins de 1950 e publicados em En la zona (1960), e que carregam consigo anúncios e despedidas.

En la zona está dividido em duas partes: a primeira, intitulada “Zona del puerto”, é formada por nove contos mais ou menos breves e um poema, Paso de baile, que cumpre a função, na estrutura do volume, de estabelecer a transição entre as duas seções; a segunda parte do livro, “Más al centro”, consiste em quatro contos, sendo o último, Algo se aproxima, o mais longo da segunda seção e também de todo o volume. Para além da menção algo neutra das suas unidades, há nuances nesse que é o primeiro livro de Saer na ficção, volume que reúne a produção da juventude e relatos que haviam sido anteriormente publicados em jornais da região santafesina.

Os títulos das duas seções, primeiramente, já designam dois espaços distintos que são levados à literatura (o primeiro, mais periférico ou marginal, e o segundo, de caráter marcadamente urbano ou cêntrico); em um segundo momento, a presença do poema em meio a textos narrativos firma a estranheza inicial dos gêneros que não se definem de todo, algo que será constante ao longo de toda a produção do autor, bem como o atravessamento da poesia por sobre a prosa. E, ainda, para cessar aqui a enumeração de traços do conjunto, brilha o título do conto que encerra o volume, Algo se aproxima, que em sua polissemia pode também ser lido como um aceno ou uma promessa de uma poética futura que desde ali se desenha ou se rascunha.

Existem, entre os nove contos da primeira seção de En la zona, estreitas articulações da intertextualidade interna do volume, dinâmica que desde as primeiras páginas começa a se mover. De Un caso de ignorancia, narração que abre o livro, a Al campo, a última narrativa da primeira parte, sucedida imediatamente pelo poema Paso de baile, se reúnem elementos da narração que permitem uma leitura de acumulação, seja a respeito dos sentidos provocados, das peças que permitem a visualização de um enredo crescente que pouco a pouco se constrói, como de um espaço que se forma através dos textos e de uma rede de personagens que permanece, em constante intercâmbio, de relato a relato.

“Zona del puerto”, como está intitulada essa primeira parte, permite, portanto, uma leitura conjunta dos seus materiais. A ficção avança a cada um dos nove textos, e há esclarecimentos, desvios, expansões, recuos e estranhezas conforme uma nova página se insere no conjunto, para então esse núcleo se encerrar, quem sabe sem chances de retorno, mesmo nos caminhos posteriores da obra, no último dos relatos da seção. Ao final da primeira parte, esse universo breve e fugaz, formado pelos contos primeiros, tende a se dissolver nas novas aberturas propostas pela ficção do autor, percursos que já têm início na segunda parte do volume, “Más al centro”, e que encontram sequência nas obras seguintes.

Os contos de “Zona del puerto” são periféricos em mais de um sentido. Primeiramente porque habitam o volume de estreia do autor, porque tardam em alcançar a recepção crítica em seu país e, mesmo quando a obra de Saer se assenta, os contos dos volumes de juventude seguem a ocupar um lugar secundário no sistema de textos do escritor. Por outro lado, e dessa vez a partir de características textuais, são periféricos porque as narrações de “Zona del puerto” ocupam, na geografia da ficção, espaços marginais da zona saeriana, espaços que, se é certo que serão transitados por personagens e narradores de textos posteriores, apenas aqui alcançam o protagonismo do lugar, em detrimento dos espaços centrais e dos endereços recorrentemente mencionados e evocados nos textos futuros.

Lugares onipresentes na produção posterior de Saer, como a Avenida San Martín, a galeria que se abre para o bar onde os personagens tão frequentemente se reúnem e os bairros próximos à região central, com suas praças, comércios e endereços reconhecíveis (inclusive no mapa da cidade real, transposto, modificado e atravessado para e pela ficção) aqui cedem lugar às ruas que formam a zona do porto, às casas clandestinas de jogo, aos bares que servem também como reduto de negociações obscuras, para as casas de prostituição, pensões, comércios populares e armazéns de subúrbio, para as moradias que são vizinhas de terrenos baldios e pátios de vegetação indeterminada.

Também é certo que, depois dos primeiros contos de En la zona, a ficção de Juan José Saer será outra. Os personagens do arrabalde violento e pré-moderno saem de cena e o futuro da sua literatura, quando dos registros urbanos, ocorrerá em espaços do centro, como a célebre caminhada que os protagonistas de Glosa, romance de 1986, levam adiante pela luminosa Avenida San Martín, ou o deambular incessante narrado em Lo imborrable, de 1993, por uma cidade invernal e recolhida em tempos de ditadura. Para além dos espaços urbanos, os romances do autor podem se situar na região das ilhas, como em El limonero real, de 1974, nas diminutas localidades costeiras, caso de Ninguém nada nunca, de 1980, ou numa zona antiga e que remonta a distintas fundações, como podem ser lidos os romances O enteado, de 1983, e A ocasião, de 1988.

Alguns dos romances citados foram, já, traduzidos para o português, em uma série de edições que por aqui apareceram entre os anos 1990 e o começo dos anos 2000 e que se encerrou com a publicação de O grande, deixando importantes lacunas para trás. El limonero real e Glosa, dois dos textos indispensáveis para se compreender o projeto narrativo do autor e romances que, hoje, podem ser apontados como dos pontos mais altos da literatura argentina da segunda metade do século XX, permanecem aguardando por traduções. A mesma brecha editorial pode ser visualizada quanto aos contos, seja no que diz respeito aos relatos de La mayor (como o conto A medio borrar), aos textos de Unidad de lugar (caso de Sombras sobre vidrio esmerilado) ou aos já comentados exemplares dos inícios, como são os de En la zona.

Há algo de Jorge Luis Borges naqueles começos de Saer na ficção, seja na estrutura breve dos primeiros contos, no tratamento do componente épico ou na busca por lugares que se encontram nas margens das cidades argentinas, nas bordas também do tempo, a perdurar nos avessos decadentes da modernidade que já se alastra pelos centros urbanos. Assim como há, e de modo ainda mais nítido, um gesto que o liga ao uruguaio Juan Carlos Onetti no afã de construir um espaço permanente por onde a ficção se estenderá (ainda que, como uma vez Ricardo Piglia sublinhou, se Onetti fundou uma Santa María inteiramente ficcional, no caso de Saer o que ocorre é a transposição de uma cidade real – Santa Fe e seus arredores – à ficção, com toda a complexidade implicada nesse movimento).

“Esses começos cumprem a função de diferenciar o material logo no início: são princípios de diferenciação que tornam possíveis as mesmas histórias, estruturas e saberes que pretendem”, escreveu Edward Said sobre a sorte dos inícios, em observação que não deixa de ser verdadeira para o caso do primeiro Saer. A crítica já buscou em En la zona os rastros, as condensações e as origens de toda a obra futura, algo que, no entanto, só encontra significação justamente depois, quando a obra se desenvolve e afinal se completa em seu corpus definitivo, quando do último texto. São, portanto, a noção de processo e a visão retrospectiva que permitem tal leitura dos inícios, que não se sustentariam sozinhos; sequer inícios seriam.

Lidos tanto tempo depois, sessenta anos, precisamente, o que os contos de En la zona revelam sobre a obra de Juan José Saer é, mais uma vez, a sua radical permanência. Porque essa é uma obra que se torna mais buscada e mais atual, ainda que atue a contrapelo do seu tempo e do que esse tempo espera da literatura – como já havia sido quando do tempo da escritura dos primeiros contos e da definição daqueles caminhos incipientes. Daí, talvez, essa tão vigorosa vigência.

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