Resenha Susana Thenon Filipe Aca mar20

 

Pensar na imagem como texto e no texto como imagem; encontrar no que se vê – no traço da letra, da figura – um tipo de mediação entre a linguagem e o mundo. Observar as possibilidades existentes no rasgo entre o dito e não-dito que se contorna com os olhos: seja guiado pela palavra ou pelo desenho. Nessa chave de leitura entre imagem e texto, uma pintura me atravessou durante toda a leitura de Ova completa, de Susana Thénon, poeta argentina, enfim, publicada no Brasil pela Edições Jabuticaba, com tradução de Angélica Freitas. Trata-se da obra intitulada Mulher cão (1994), da portuguesa Paula Rego, na qual encaramos uma mulher acocorada, quase de quatro, com o olhar “perdido” e as mãos dobradas no chão. A mulher está sozinha e sua expressão é de raiva, alarde e cólera. Mas para quem ela olha assim? E por quê? Penso, então, no primeiro poema da ova de Thénon: “por que grita essa mulher? / por que grita? / por que grita essa mulher? / sabe-se lá”. Como no quadro, a potencialidade do grito solitário de uma mulher pode causar susto, surpresa, questionamentos. O poema termina desta maneira: “a mulher / e essa mulher / e estava louca essa mulher? / já não grita / (lembra dessa mulher?)”. A mulher que pode gritar e morder porque deve estar acometida de loucura, fora de si. E, quando silencia, é esquecida. São essas as brechas que observo nos poemas de Ova completa, espaços estreitos que se colocam entre o grito, a mulher animalesca (um ser descontrolado) e o silêncio.

Susana Thénon nasceu em Buenos Aires, em 1935. Faleceu na mesma cidade, em 1991. Na primeira etapa de sua produção, lançou Edad sin treguas (1958), Habitante de la nada (1959) e De lugares extraños (1967). Também trabalhou com fotografia, em especial, durante os anos 1970. Então, no que se conhece como sua segunda fase, mais experimental e com outros procedimentos de técnica, lança Distancias (1984) e Ova completa (1987). Observa-se uma proximidade temporal entre a obra de Rego e o livro de Thénon em questão, um momento, para a representação da mulher na arte, no qual era possível falar alguma coisa. Mesmo que fosse para dizer que não se era (é) possível falar. Após governos violentos e autoritários das décadas de 1960 e 1970, molhadas pelos respingos entre a segunda e a terceira onda feminista, ambas as obras reivindicam a mulher que já não se esconde. Aqui estão os ovos completos, cheios. Aqui está o corpo que se contorce, geme e ataca.

Para além de uma representação do que é ser mulher ou de nossas ações no mundo, Thenón tensiona, na sua obra, a farsa de um discurso do saber: o conhecimento que deve perpassar pelo clã masculino. De seu poema que intitula o livro, vem a frase: “Filosofia significa ‘violação de um ser vivente’” e ela continua: “Exercem esta atividade os chamados friends / ou ‘Confraria dos Sorridentes’, / os fiadores – desde já –, / os que deveras têm o poder e os que creem tê-lo na descomunal mesquita de Ox-Alá”. A poeta dessa segunda fase, dos anos 1980, trabalha com ironia afiada – todo o poema é como uma faca nos dentes, nas botas, nas mãos. Avançar armada com palavras à direção exata do que chamam de poder. Volto, então, ao animalesco. Em resenha publicada na edição de novembro do Pernambuco, sobre o livro Degelo, de Maria-Mercè Marçal, falei sobre as proposições de Jacques Derrida no texto O animal que logo sou (1997), e as questões que envolviam o olhar animal. Aqui e agora, em meio à ova de Thénon, interessa aproximar o animal de um alicerce do ser mulher.

Assim, menos do que explorar a ideia do animal mudo, nomeado, domesticado e visto pelo homem, penso nos poemas de Thénon – como outros escritos latino-americanos da mesma década; a ver, por exemplo, os da uruguaia Marosa di Giorgio –, como estruturações animais. Para além de uma temática, a forma que se molda, por si só, já é animal. Como na pintura de Rego, não se trata de retratar um comportamento animal como alusão à mulher e sim mostrar o corpo (o poema) que se mexe e finca-se na posição de ataque, não de presa. “sou o peixe pequeno / vou até os seus dentes / todos os assuntos estão em ordem”, escreve Thénon. Em determinado momento, Derrida fala de certo paradoxo animal: maligno, perverso, mas, também, inocente e astuto. É um monstro cheio de malícia perante o saber do homem e, ao mesmo tempo, não entende nada, não se ergue como motor principal da sociedade. É um peixe pequeno que vai até os dentes, mas não morre ali, pelo contrário – pode alcançar as entranhas ainda vivo. Uma das maiores forças visuais no quadro de Rego é um dos joelhos da mulher, retratado em primeiro plano de maneira realista e forte; uma parte do corpo grande, estruturante, surpreendentemente altiva. A segurança que se encontra no movimento e no equilíbrio-animal. Da mesma maneira estão os suportes dos poemas de Ova completa. São robustos e convidam para o chá, mas sem esquecer que a ofensiva, os olhos agudos e a boca aberta para o grito ou a mordida estão à espreita: “venha tomar um chá / ou não venha/ penso em matar / faço o dever para amanhã / já vou indo / e já voltam”.

SFbBox by casino froutakia