Artigo Djuna Hana Luzia abril2020

 

Em 1936, Djuna Barnes (1892-1982) publicou o romance Nightwood, reconhecido como um dos mais marcantes do século XX tanto por ser colocado entre os destaques modernistas estadunidenses de sua época quanto por tratar, com uma intensidade imensa, de personagens queer e marginalizadas. Em Nightwood, uma das frases que reverbera é “Sometimes one meets a woman who is beast turning human”, referindo-se a uma mulher que ama outras mulheres. A frase pode ser um símbolo da tradução: o encontro com uma mulher que é besta a tornar-se humana nos faz pensar nas mutações entre as formas de ser e as de dizer; a tradução que nos permite entender o que nos é estranho, mas guarda consigo as marcas de onde veio e, em nossa língua, passa a ser outra coisa. O animal que habita naquela que se torna humana e a humana que havia na besta e desperta nesse movimento contínuo — que língua é a que surge dessa vida?

Não consigo não pensar em um verso da tradução que Sarah Valle fez dos Vinte e um poemas de amor, da Adrienne Rich, “Que tipo de fera faria da vida palavras?”. Sinto que se pode dizer que Djuna agiu como alguém desse tipo — e aqui o poema Her kind, da Anne Sexton, também ressoa. A partir da proposta de re-visar a historiografia literária proposta por Adrienne Rich em Quando da morte acordarmos: A escrita como re-visão [nota 1] para trazer à tona os nomes das mulheres que vieram antes de nós, acredito que escrever sobre Djuna seja importante para o desenho dessas linhagens.

A escritora estadunidense se dizia “a mais famosa desconhecida do século”. Como jornalista foi enviada para Paris nos idos de 1920 e lá permaneceu por vários anos como uma personalidade sinônima da vida noturna nos cafés e salões artísticos. Tornou-se conhecida no meio literário e por artistas modernistas ao lado de Gertrude Stein, assim como era próxima da Academia de Mulheres de Natalie Clifford Barney, [nota 2] lugares em que artistas e escritoras lésbicas e bissexuais tinham espaço para inúmeras formas de troca. Nos Estados Unidos, estabeleceu-se no Greenwich Village em 1910. O Village ficou conhecido como bairro boêmio em Nova Iorque, onde proliferou a contracultura influenciada pela geração beat nos anos de 1950 e 1960. Djuna circulou muito antes de se tornar mais reclusa: saía de seu bairro para a ele retornar. Por lá permaneceu até o fim da vida. No entanto, as obras que realizou em meio a quase um século de vida — em prosa, poesia, teatro e artes visuais — seguem desconhecidas para muitas pessoas ainda hoje, em parte por ter se isolado, mas muito pelo apagamento sistemático de escritoras (queers ou não) pelas tradições normativas.

Em 1990, Hank O’Neal usou uma frase de Djuna para nomear o livro que publicou a partir de relatos dela, A vida é dolorosa, torpe e curta... no meu caso, apenas dolorosa e torpe. [nota 3] Visitando-a em seu período de reclusão no Village, sabia-se que Djuna não sentia afinidades com a vanguarda poética que ali se reunia ao ponto de, como conta Phillip Herring, [nota 4] chegar a morar ao lado de e. e. cummings e apenas ligar para o vizinho por causa de um acidente que a fez precisar de ajuda. Cada vez mais avessa à exposição, mantinha distantes até pessoas com quem poderia estabelecer vínculos afins, como Susan Sontag, que a admirava imensamente e chegou a enviar a Djuna uma cópia de Contra a interpretação (1966). Ao saber do desejo de Susan de conhecê-la, escreveu-lhe: “Fui informada que, ao ver-me nas ruas do Village, você se conteve de dirigir-se a mim porque alguém te disse que eu era um demônio, de certa violência e invectiva. Por favor, dê-me o prazer de falar contigo na próxima vez”. Phillip comenta que, porque ambas agiam com tanta formalidade, elas nunca se encontraram.

Também em 1990, Judith Butler publicou um dos livros marco da teoria queer, Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Através de um estudo crítico a partir da antropologia estruturalista de Claude Lévi-Strauss, da psicanálise de Jacques Lacan — e das críticas a esta por Monique Wittig e Luce Irigaray — e do pensamento filosófico de Michel Foucault, Judith propõe uma compreensão do gênero como uma repetição estilizada de gestos, uma performance orientada pela indução e manutenção do desejo heterossexual não incestuoso. É essa norma que solidifica uma sociedade binária, na qual mulheres e homens sofrem condicionamentos para sentir, pensar e agir de acordo com determinados padrões para que se desejem e formem o núcleo familiar heterossexual. No entanto, Judith expõe como a lógica dessa norma se infiltra em nós de tal maneira que é possível que gays, lésbicas, bissexuais, pessoas trans e adiante tomem atitudes normativas, reproduzindo dinâmicas heterossexuais em nossas formas de viver. Portanto, afirma que não existem seres subversivos em si, mas fazeres capazes de subverter as normas sociais. É nesse ponto que uma fala de Monique Wittig, [nota 5] tradutora de Djuna ao francês, sintetiza o potencial queer de sua obra: “Djuna Barnes anula os gêneros ao torná-los obsoletos”. Aquilo que entendemos por humanidade e animalidade; por mulheres e homens; por hétero, bi, homo e mais; por cis e trans; tudo isso cai por terra e chama a noite em seu lugar, especialmente em seu romance Nightwood.

Djuna uma vez disse que Nightwood era “o solilóquio de uma ‘alma falando consigo mesma no coração da noite’”, matéria transformada de seu tempo em Berlim, mas principalmente em Paris. Em meio ao romance das protagonistas Nora Flood e Robin Vote, essa alma-voz que faz mediação/tradução é a de Matthew O’Connor, ginecologista que realiza abortos clandestinos e que transita do desejo por outros homens até o de ser mulher. Seus solilóquios analíticos sobre Nora e Robin — e as mulheres e os homens que desejam Robin, esta “beast turning human” — vão além delas e chegam a questionar a própria linguagem que não oferece espaço digno, a quem vive contra as normas, para poder nomear sua existência. Diante do desespero realçado por um humor ácido, as personagens de Djuna falam, falam em uma busca frenética por achar significado, como pontuou Deborah Parsons, [nota 6] assim como a escritora buscou narrar essas vidas reverberando a sua própria e a de tantas pessoas ao seu redor.

Mas Djuna Barnes não queria ser conhecida como a escritora de um romance lésbico. De fato, ela recusava até ser chamada de lésbica e afirmava que “havia amado somente Thelma [Wood]” [nota 7], não somente por preconceitos interiorizados da época, mas talvez porque ela suspeitasse do perigo das categorizações. Monique Wittig imaginou que fosse esse o motivo da rejeição de Djuna à categoria lésbica e ela desenvolve essa ideia no ensaio O ponto de vista: Universal ou particular?, em que fala desse tema a partir de Djuna. Nele, Wittig diz que, quando um texto é marcado pela sua diferença com relação à norma — cis-heteronormativa branca — e é “tomado como um símbolo ou adotado por um grupo político, o texto perde sua polissemia, torna-se unívoco”. O texto fala de uma realidade ampla, mas acaba lido como representante de uma visão exclusiva, a qual não se permite comunicar com outras que formam essa complexidade. Daí, surge o terrível hábito da literatura de nicho, que faz com que muitos homens não leiam mulheres, pessoas hétero e cis não leiam as LGBT+ e assim em diante, sendo que essas histórias dizem respeito a todo mundo.

É nesse sentido que a teoria queer olha com desconfiança para qualquer categoria fixa, reconhecendo que cada pessoa ou ser vivo pode agir de forma diferente a qualquer momento e sua vida não se restringe a essas categorias, ainda que possa partir do condicionamento que elas provocam, um efeito que também pode ser desconstruído.

Porém, que isso não recaia no extremo oposto que invisibiliza essas vidas, como acontece na crítica de Nightwood que o valoriza como romance modernista. Isso acontece no próprio prefácio à primeira edição do livro, escrito por um de seus maiores entusiastas, T. S. Eliot, quem Margaret Gillespie [nota 8] afirma “sanitizar o romance”. Enveredando nessa abordagem, Earl E. Fitz, [nota 9] professor e crítico literário, compara Djuna com Clarice Lispector e diz que a autora estadunidense é menos filosófica do que a naturalizada brasileira, porque não toma, como esta, a linguagem como tema central, mas como “mecanismo poético”. Earl ignora que o desconforto e o desespero das personagens de Djuna pode reverberar a vontade de descentralizar essa linguagem em vez de mergulhar nela como Clarice faz, porque essa linguagem reflete a realidade material que rejeita as vidas queer. Esse tipo de crítica literária, por mais atenta e valiosa que possa ser em alguns sentidos, perde de vista o coração, a alma e o corpo de obras queer.

Que Djuna possa ser mais lida (e traduzida) para além dos nomes, mas sem os esquecer jamais, na busca por linguagens que expressem todas as vidas possíveis de serem imaginadas.

 

NOTAS

[nota 1]. Adrienne Rich. “Quando da morte acordarmos: A escrita como re-visão”. Trad. Susana Bornéo Funck. In: Izabel Brandão et al. (orgs.). Traduções da cultura: Perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: Editora Mulheres/EdUFAL, 2017 [1971], p. 64-84.

[nota 2]. No Brasil, a cantora, escritora e ativista LGBT+ Vange Leonel escreveu uma peça sobre esse círculo, chamada As sereias da Rive Gauche.

[nota 3]. Hank O’Neal. Life is painful, nasty and short... in my case it has only been painful and nasty. New York: Paragon House, 1990.

[nota 4]. Phillip Herring. Djuna: The life and work of Djuna Barnes. New York: Penguin Books, 1995.

[nota 5]. Monique Wittig. “The point of view: Universal or particular?”. Feminist Issues, n. 3, Fall, 1983.

[nota 6]. Deborah Parsons. “Barnes’s hilarious sorrow: Nightwood”.In: _____. Djuna Barnes. Plymouth: Northcote House Publishers Ltd., 2003, p. 60–83.

[nota 7]. Daí o jogo com o nome do livro, Nightwood, entre o sobrenome e a palavra para “bosque” (“Wood”). A poeta Maria-Mercè Marçal, leitora e admiradora de Djuna, também fez algo parecido ao escrever o livro Terra de Mai, dedicado ao amor e ao desejo entre mulheres, pois Mai foi a primeira mulher que amou, e a palavra “mai”, em catalão, significa “nunca”.

[nota 8]. Margaret Gillespie. “‘The triumph of the epicene style’: Nightwood and Camp”. Miranda, n. 12, 2016, p. 1–14.

[nota 9]. Earl E. Fitz. “Caracterização e visão fenomenológica nos romances de Clarice Lispector e Djuna Barnes”. Travessia. Florianópolis, (14): 136-147, jun. 1987.

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