Guimarosa txtSilvianoSantiago jun.2020

 

O crítico literário Roland Barthes e o filósofo Giorgio Agamben se encontram na definição do que é o contemporâneo em arte. “O contemporâneo é o inatual”. A definição serve não só para explicitar a magia atemporal, ou intempestiva, do romance Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, como também para salientar a inesgotável riqueza alegórica de sua prosa ficcional. Nada é mais inatual artística, social e politicamente e, no entanto, nada é mais contemporâneo nosso, que o romance escrito e publicado em meados do século XX, no momento em que o cidadão brasileiro está a vibrar com a construção de Brasília no planalto central e com a abertura, na selva ainda ocupada pelos indígenas, da moderníssima rodovia Transamazônica.

Desde a primeira linha do romance o leitor enfrenta dificuldades. Páginas adiante, elas se justificam na proposta da composição literária inédita: “quem mói no aspr’o não fantaseia”. A escrita selvagem da ficção é moída no áspero e não fantasia. Cada palavra é esmigalhada pelo escritor, assim como o moinho, graças a artimanhas mecânicas, tritura o grão para a boa alimentação. Pela moagem das mil e uma palavras da língua portuguesa e de línguas afins, a escrita ganha a materialidade da fala do jagunço Riobaldo, narrador e protagonista do romance.

Em invenções inesperadas e surpreendentes, as sílabas/grãos moídos passam a se agrupar em palavras, frases e parágrafos, constituindo um manuscrito monstruoso. Mesmo sem outras e novas sílabas a moer, o engenho continua a triturar. O trabalho já feito passa por constantes revisões. Saltemos algumas páginas para ler: “A mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim mesmo, si mesma, mói, mói!”. O engenho e a arte da escrita roseana, mesmo se desprovido de novas sílabas, continua a triturar o já-escrito em busca da perfeição absoluta: “mói assim mesmo, si mesma, mói, mói”.

Recordemos as saliências artísticas no Brasil da década de 1950. Menos é mais — eis o princípio que governa a estética minimalista de então.

João Cabral de Melo Neto tinha anunciado a poupança minimalista desde os anos 1945, quando publica O engenheiro, seu terceiro livro de poemas. Poetar com apenas 20 palavras, sempre as mesmas. Anos depois, Haroldo e Augusto de Campos mais Décio Pignatari pregam em sucessivos manifestos que a poesia concreta reduzirá o verso e até o poema a uma palavra. Dito e feito. A Bienal de São Paulo de 1954, ano em que se comemora o quarto centenário da metrópole brasileira, abole a representação da figura humana no pavilhão do Parque Ibirapuera e propõe o abstracionismo geométrico como o estilo moderno e atual. Prêmios são conferidos à escultura Unidade tripartida, do suíço Max Bill, e a telas do brasileiro Ivan Serpa. Rádios e gravadoras privilegiam o singelo, doce e nostálgico balanço da canção bossa-nova, tão cool quanto o modern jazz que o vocábulo qualifica tão bem. Lembram “do barquinho a deslizar no macio azul do mar” (Roberto Menescal)?

Exemplos semelhantes se sucederiam ao infinito e desautorizariam a atualidade do atrevido, embriagante e descomunal Grande sertão: Veredas.

O romance é incompreendido. Menos não é mais. Apenas um exemplo. Não preocupa o escritor enumerar em longa frase as diferentes alcunhas que referendam a presença, ou a inexistência, do Diabo nos sertões do Alto São Francisco. A repetição sinonímica não abastarda o estilo ficcional moderno; transforma a prosa ficcional de Rosa em forma peculiar de ladainha às avessas, ou de exorcismo. Cito o exemplo: “E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe!”.

Em 1956, faltam leitores ao romance. O monstro não se entrega sem as asperezas e transgressões estilísticas que caracterizam a fala num enclave arcaico, perdido no sertão do Alto do Rio São Francisco. O monstro incomoda demais e sequer seduz os profissionais das letras. Em entrevistas curtas, publicadas na revista Leitura, romancistas e poetas são reunidos para falar mal do romance. A matéria ganha título demolidor: “Escritores que não conseguem ler Grande sertão: Veredas”. Autor do originalíssimo A luta corporal (1954), Ferreira Gullar declara: “Li 70 páginas do Grande sertão: Veredas. Não pude ir adiante. A essa altura, o livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas”.

Compete a uma notável geração de críticos literários, com destaque para Antonio Candido e Benedito Nunes, assumir a tarefa de demonstrar alcance, significado e valor do romance. Apesar de o texto de Rosa ser intempestivo e inatual, os críticos se entusiasmam com o ineditismo de sua prosa e se dedicam à tarefa de amansar para o leitor o bicho intratável. Assimilam-no à tradição dos mestres regionalistas brasileiros. Tornam-no palatável ao gosto do leitor comum. A compreensão do romance seria facilitada. O interesse pela trama enigmática seria despertado. Ainda que pelo viés da falsa analogia, estariam evidenciando sua atualidade e minimizando sua intempestividade.

Gera-se um consenso. Grande sertão: Veredas é tão relevante, moderno e atual quanto Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. No pioneiro número 8 da revista Diálogo (1958), os mestres da crítica concordam: ainda que inatual, o romance de Guimarães Rosa é tão genial quanto a obra-prima de Euclides da Cunha.

Assassina-se a letra; salva-se o espírito?

Assim se constitui uma tradição de leitura do Grande sertão: Veredas que hoje nos incomoda e perturba, haja vista a recente e iconoclasta montagem teatral do romance, de responsabilidade de Bia Lessa. A qualidade selvagem de Grande sertão: Veredas — sua wilderness — tinha sido domesticada pelos que recomendavam sua leitura pela mediação da prosa de Os sertões.

Des/domesticar a monstruosidade do romance, eis uma nova proposta de leitura. O contemporâneo é o inatual. A fatura de Os sertões é histórica e simbólica. Grande sertão: Veredas pouco ou nada tem a ver com os acontecimentos históricos narrados com brilhantismo por Euclides da Cunha, acontecimentos que levam a nação brasileira a transitar do período monárquico ao republicano pelo relato da revolta dos conselheiristas (beatos) no interior do sertão baiano. Reparem. Não há uma única data no romance de Rosa. Riobaldo não menciona uma só vez o nome da então capital da República, o Rio de Janeiro. Descreve-se um enclave de natureza luxuriosa e arcaico à época em que, a poucos quilômetros de distância, está sendo construída em concreto e vidro a nova capital.

A fatura de Grande sertão: Veredas é alegórica e paradoxal. Quando é que quisemos ser modernos e terminamos por gerar regiões mais atrasadas do que as mais atrasadas? Desde sempre. Na já longa história da nação brasileira, é assim que os administradores públicos e privados agem de maneira intermitente. Os governos intervêm e dialogam com a história política e econômica da nação, despreocupando-se com a condição e o destino dos menos favorecidos. Gestamos enclaves selvagens e modernizamos.

No período pós-escravidão africana, fomos modernos na construção no estilo belle époque da Avenida Central no Rio de Janeiro e erigimos as favelas nos morros. Em tempos de Vidas secas, construímos nova e moderníssima capital federal e esquecemos ao lado, no Alto São Francisco, um enclave onde a anarquia feroz dos jagunços se assemelha à encontrada hoje nas penitenciárias das metrópoles. Em tempos da rebeldia na cadeia de Carandiru, motivo para a obra-prima de mesmo nome do cineasta Hector Babenco (2000), quisemos armar um sistema de controle de enclaves miseráveis, afinado com o moderno saber das Ciências Sociais, e nos tornamos tão ou mais irascíveis que Zé Bebelo. O esforço positivo da modernização cria enclaves ferozes de párias — favelas, bairros miseráveis, prisões, manicômios etc. — onde violentas forças antagônicas se defrontam e se afirmam pela ferocidade da sobrevivência, acirrando a ira no controle e no mando.

“Viver é perigoso” — eis o leitmotiv da trama de Grande sertão: Veredas.

Ao afirmar que o contemporâneo é o inatual, Giorgio Agamben se descola das luzes do presente em que vive para perceber o escuro da realidade em que vivemos todos. O artista contemporâneo neutraliza o clarão sedutor que norteia o artista na época moderna, para enxergar as trevas, de que as luzes são inseparáveis. Só é contemporâneo quem recebe no rosto o facho de trevas – e não o clarão – que provém do seu tempo. Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga.

Notável em Grande sertão: Veredas é o fato de que, no mais profundo da vida miserável e autodestrutiva — na morte do humano, há lugar para o afeto e o amor. Ao compasso de espera, Riobaldo e Diadorim, os dois jagunços enamorados, dançam novos e felizes tempos. Como vagalumes que a mata do sertão libera à noite, piscam a alegria de viver. Piscam como os vagalumes que, em seu conto As margens da alegria (Primeiras estórias, 1962), iluminam a noite em que os tratores derrubam árvores centenárias para que Brasília se construa. Remeto-vos às linhas finais do conto: “voava a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria”.

Na mesma época em que Benito Mussolini e Adolf Hitler apertam as mãos no Berghof, na Baviera alemã, Pier Paolo Pasolini e seus amigos se refugiam na localidade de Pieve del Pino, nos arredores de Bolonha. Em 1941, acampados no alto do morro, deparam com uma revoada de vagalumes. Cito trecho da carta que Pasolini escreve a um amigo: “nós invejamos os vagalumes porque se amavam, porque se tocavam em voos amorosos e luzes”. Vagalumes se acendem e se apagam e, em voos noturnos e amorosos, se tocam. Trevas e luzes.

Neste momento em que a pandemia do covid-19 assola o planeta e as manifestações públicas tomam conta das cidades norte-americanas, expressando uma mensagem de esperança acesa pelo sacrifício de George Floyd, Bob Dylan, em entrevista ao jornal The New York Times, destaca os músicos negros que foram importantes na sua formação. Em certo momento, destaca o inesperado Robert Johnson (1911-1938) e justifica sua enorme admiração (e, indiretamente, a de Eric Clapton e de Keith Richards) pelo velho compositor e cantor de blues. Cito-o: “Foi um dos mais inventivos gênios de todos os tempos. Mas, na verdade, não teve uma plateia a quem se dirigir. Estava tão à frente de seu tempo que nós ainda não o alcançamos. Hoje, seu prestígio não poderia ser mais elevado. No entanto, nos seus dias, suas canções confundiram as pessoas. Isso revela apenas que o grande artista segue seu próprio caminho”. Em 1936, dois antes de falecer envenenado num bar com mistura de uísque e naftalina (segundo reza a lenda), Johnson escreve e canta seu próprio e notável Grande sertão: Veredas, na cidade de San Antonio, Texas. Escutemos Crossroads blues, e prestemos várias homenagens ao mesmo tempo: https://www.youtube.com/watch?v=kXFAlFqjSlM .

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