Traducao Cesar Aira Filipe Aca julho2020

 

Desdenhosa ignorância da literatura do Brasil

A desdenhosa ignorância que sofre entre nós a mais rica das literaturas latino-americanas, a brasileira, mereceria uma consideração de suas causas e de seus efeitos. Quanto a estes últimos, são evidentes e se simplificam em um só: a míngua do montante de prazer para leitores cultos que, cansados dos clássicos europeus, orientais, hispano-americanos, acabam ignorando que têm ao alcance da mão, em uma língua apenas tenuemente estrangeira, um quase inesgotável tesouro de deleites escritos. E mais do que isso: nas fronteiras do nosso, há um país que produziu esses livros ao longo de uma história que não ignoramos menos. Pois ocorre que uma literatura, para ser verdadeiramente apreciada, e até para existir de verdade, deve se apoiar no mito, que em boa medida ela mesma cria, da nacionalidade. Em poucos países latino-americanos ou, melhor dito, em nenhum, as letras tiveram como no Brasil um papel tão capital na feitura da nação. À autonomia da rigidez hispânica de nossos países, o Brasil opõe uma retórica, de raiz literária, baseada nas transformações, maleável, mestiça, com sutilezas imperiais, africanas, orientais, cortesãs, indígenas, europeias. Também viveu, e mil vezes multiplicado, o seu empolamento, o parnasianismo, que reinou de forma asfixiante ao longo de cinquenta anos; em comparação, nosso personagem asfixiante, Lugones, [nota 1] reinou menos ou não reinou nada. Mas se poderia dizer que os brasileiros trataram o estilo empolado como um experimento literário a mais o qual, uma vez esgotado, foi deixado de lado; Lugones, por sua vez, foi um empolado malgré lui e sua vigência renova-se dia a dia.

Quando me refiro à ignorância que nossos leitores manifestaram diante da literatura brasileira, não me refiro apenas ao leitor médio. Um leitor tão exemplar quanto Borges morreu sem gozar, que eu saiba, de nenhum autor brasileiro (e alguns foram feitos para o seu gosto, como os prodigiosos adolescentes românticos, Álvares de Azevedo, por exemplo, para não falar de Cruz e Sousa ou de Machado de Assis; a frequentação deste último sobretudo, tão superior a Henry James, teria dado a Borges uma ideia mais rica do poderio de uma literatura menor). Na mesma imperdoável distração caiu gente de quem, por sua atividade, se teria esperado mais: Victoria Ocampo [nota 2], para citar alguém: quanto poderia ter aprendido com os promotores culturais brasileiros! Enquanto ela trazia à Argentina Rabindranath Tagore e se fazia retratar por Faguet, Mário de Andrade, que era pobre, levava ao Brasil Lévi-Strauss e organizava um dos melhores museus de arte moderna do mundo e ainda tinha tempo para escrever Macunaíma. (De forma característica, o continuador da obra e da atitude da Ocampo, Octavio Paz, é militante pregador de uma rígida separação entre as literaturas hispano-americanas e a brasileira).

Como ocorre com as causas de tudo, as deste status quo de distanciamento são infinitamente especuláveis. Entrando no jogo, às vezes útil, do círculo vicioso, se poderia dizer que a causa das causas foi uma radical diferença, dessas tão abismais que produzem no intelecto comum uma repugnância mútua. O Brasil foi o país da nacionalidade triunfante e feliz. Eles parecem ter se entregado, com inigualável energia laboriosa, a seu snobismo provinciano, a uma dependência cultural que nunca, até a última década (quando a literatura brasileira decai a fundo e passa a viver de suas glórias passadas), sofreu resistência ou sequer foi questionada. E essa entrega sem luta, na dialética tão pouco militar dos fatos culturais, significou o seu triunfo. Todas as escolas literárias europeias dos últimos dois séculos triunfaram no Brasil, enquanto nos países hispano-americanos fracassavam ou tinham de se conformar com vitórias pírricas. No Brasil triunfaram o neoclassicismo, o romantismo, o realismo, o naturalismo, o simbolismo, o parnasianismo… Em todos os casos têm nomes dignos de colocar à altura dos maiores: Gonzaga faz jus a Foscolo, Alencar a Chateaubriand, Pompeia a Zola, Cruz e Sousa, sem exagero, a Baudelaire. Deve-se fazer uma exceção, anterior no tempo, com o barroco, em que não tiveram figuras comparáveis às peruanas ou mexicanas. Quanto às vanguardas, que explodiram simultaneamente em todo o continente ao redor dos anos vinte (em 1922 no Brasil, com o nome de “modernismo”), as brasileiras frutificaram com um nacionalismo de insólita originalidade. Império extenso, com áreas muito diferentes e uma estrutura de arquipélago desde seus tempos coloniais, o país estava destinado a ter uma grande literatura regional e a teve desde fins da década de 1920; o regionalismo nordestino alcançou os níveis mais altos, com José Lins do Rego e, sobretudo, com Graciliano Ramos; a corrente se tornaria universal nessa culminação do romance moderno que é Guimarães Rosa. O romance urbano, psicológico, com um início mais tímido (ainda que estivesse prefigurado, assim como o regionalista, no ciclo romântico de Alencar) alcançou o seu ápice com Clarice Lispector. Depois, é certo, não houve quase nada, mas tampouco houve muito no resto do mundo.

Sua riqueza tornou a literatura brasileira em boa medida autossuficiente. O desdém pode ter começado aí. A atividade surpreendente e multiforme que desenvolveram muitos dos seus grandes escritores pela difusão e promoção cultural (em contraste com a atitude argentina, onde a excelência literária correspondeu quase sempre ao retraimento) nunca pôs a mira em seus vizinhos, ou seja, em nós. Ao internacionalismo comunista devemos agradecer a introdução ao castelhano de alguns bons autores, como Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos; agradecemos menos, necessariamente, a introdução de Jorge Amado, que depois se beneficiou com o auge do turismo. Somente a partir dos anos sessenta, com o “boom” [nota 3], houve algum intercâmbio, muito parcial ainda pois não excede o limite de romancistas atuais e muito notórios. A aproximação, se existe, mostra-se muito lenta, muito furtiva, e a atual falta de figuras vivas de grande prestígio pode interrompê-la antes de amadurecer. O currículo universitário argentino omite olimpicamente as letras brasileiras, se bem que alguns latino-americanistas começam a atenuar a omissão, a primeira delas a eminente Susana Zanetti. [nota 4]

Mas não vale a pena se iludir muito. Um argentino pode ser culto, e até muito culto, e ignorar tudo da História, das artes e das letras brasileiras. Há motivos para ser pessimistas em relação a uma mudança dessa situação no futuro.

 

NOTAS
Todas as notas são de responsabilidade do Pernambuco

[nota 1] Leopoldo Lugones (1874-1938) foi um dos principais expoentes da literatura argentina na passagem do século XIX para o XX. É autor de, entre outros, La guerra gaúcha (1905).

[nota 2] Escritora e editora responsável pela revista Sur, Victoria Ocampo (1890-1979) é um dos nomes mais importantes da cena literária argentina do século XX.

[nota 3] Em linhas gerais, o Boom representa um conjunto de escritores que surgiram nos anos 1960 e 1970, desafiaram convenções na literatura latino-americana e ganharam projeção mundial. Entre eles estão Gabriel García Márquez, Julio Cortázar e Carlos Fuentes. 

[nota 4] Susana Zanetti (1933-2013), crítica literária e editora especializada na literatura latino-americana. Escreveu, entre outros, La dorada garra de la lectura (2002).

 

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Cada pequeno extrato de texto de César Aira (Coronel Pringles, Argentina, 1949), em qualquer gênero, é antes de tudo uma pequena peça de ficção, uma potencial novelita, uma pequena célula de imaginação e criação de possibilidades infinitas, e “o resto que resta” — como escreveu Ivo Barbieri em resenha de Três lendas pringlenses — “é o brilho dourado do conto maravilhoso”. Sua prosa, seja um relato breve, uma ideia diversa ou uma novela de cem páginas, aparece sempre sob o signo da poesia dos objetos em movimento e das cores do mundo, em que o eu é um outro e o ensaio, ficção. De modo que também o pequeno artigo de Aira apresentado aqui, publicado originalmente na revista portenha Creación em 1986, é ao mesmo tempo uma grande ode à literatura brasileira e uma pequena peça literária. O conceito de ficção segundo o autor de Os fantasmas e A princesa Primavera resulta em textos escritos à mão que divertem e intrigam, criticam e perturbam, provocam e invertem a lógica e o saber do cálculo bem pensante para além do chamado campo literário, com as artes plásticas e a cultura de massas entranhadas na forma de linguagem peculiar que criou.

Do mesmo modo que o fez intensamente no seu Dicionário de autores latino-americanos (concluído em 1985 e publicado em 2001), César Aira apresenta no velho artigo perdido a sua paixão pelas letras e pela cultura brasileira. No Dicionário os verbetes dedicados a Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Raul Pompeia, Machado, Cruz e Sousa, Mário, Clarice e Dalton Trevisan, entre tantos outros, são a prova cabal e mais visível dessa dedicação, que também havia manifestado em O vestido rosa (1984), que homenageia o autor de Grande sertão: Veredas. Tributário de Jorge Luis Borges, lastima no artigo que ele não tenha conhecido autores afins a sua sensibilidade, como Machado de Assis, Álvares de Azevedo e Cruz e Sousa.

Mas corria 1986 e o ainda jovem escritor tinha acabado de emergir com uma série de novelas e romances e uma veia sarcástica que não pouparia nem a literatura argentina contemporânea à sua nem a literatura brasileira dos anos 1970. No entanto, não deixará de celebrar mais tarde, em textos e entrevistas, a obra de Sérgio Sant’Anna (de quem traduziu Um crime delicado) e João Gilberto Noll. À sua abordagem ferina da cultura argentina e latino-americana (tendo na mira figuras como Victoria Ocampo e Octavio Paz) correspondia um total pessimismo em relação a uma aproximação entre as culturas vizinhas (as três curtas frases finais não deixam lugar a dúvida, e o tempo, salvo as exceções de praxe, parece ter lhe dado razão).

Desdeñosa ignorancia por la literatura del Brasil integra a coletânea Artículos y ensayos 1980-2011 que está no prelo da Penguin Random House, sucedendo a Evasión y otros ensayos (2018) e a novela Fulgentius (2020) pela mesma editora. Nele, no entanto, Aira pensa o Brasil não como o país do futuro, mas como o país do pretérito: “O Brasil foi o país da nacionalidade feliz e triunfante”.

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