Bivar HelioSilva reproducaodainternet

 

Em Ipanema, nos anos 1970 e a caminho dos anos 1980, houve um lado da vida artística e boêmia que está à espera de ser mapeado. Como roteiro para o cartógrafo, sugiro algo como a dissidência Pasquim. O título cai bem por vários motivos. O primeiro deles é que o núcleo central da dissidência ficava num prédio de 6 andares (dois dos seis andares eram subterrâneos) na mesma rua em que estava instalada a redação de O Pasquim. A Saint Roman. Uma rua de mão única, calçada de paralelepípedos, que salta por cima do morro do Pavãozinho e liga, pelas costas do mapa oficial da cidade, Ipanema a Copacabana.

Refiro-me ao prédio onde morou a deslumbrante atriz Adriana Prieto, cuja vida se fecha tragicamente aos 24 anos de idade, na mesma Saint Roman. No seu Fusquinha, ela desce a rua desembestada e bate num poste na esquina com a Barata Ribeiro, segundo alguns, ou numa radiopatrulha estacionada, segundo outros.

O prédio fica de frente da antiga e principal entrada para o Pavãozinho. O ator Paulo Villaça gostava de dizer, numa espécie de arremedo de David Lynch, que morava no “little Peacock hill”. Não foi gratuita a escolha do prédio por um grupo considerável de artistas. Naqueles anos, o porteiro ainda era figura a se desconfiar. Numa boa, dedurava os inquilinos transgressores à polícia. E ali, na porta do Pavãozinho, bastava atravessar a rua e dar uma subidinha discreta na escadaria em frente, e estavam resolvidos todos os problemas de suprimento. Suprimento a ser consumido entre os vapores nuançados por incensos indianos a fumegar nas salas, deixando o perfume se espraiar pelos corredores.

Mais abaixo, à direita de quem sobe a rua, havia um anexo espaçoso e confortável. A casa do Antônio Carlos Miguel e da Katy. Lá, em festas povoadas pelo mundo pop carioca, a classe teatral se juntava à música popular brasileira e os dois grupos, somados, se misturavam com a frenética Lidoca e os dois jovens poetas Salomão, Jorge e Waly.

Adriana Prieto foi a primeira e a mais fugaz das estrelas vitoriosas do prédio da Saint Roman. Seu apartamento acabou ocupado pelo irmão, o Carlinhos Prieto, estilista e figurinista de primeira. A partir de certo momento, o prédio virou colônia de atrizes e de atores, na maioria moradores de São Paulo. Vinham trabalhar na Globo, ou atuar em sala de teatro carioca. Cito alguns. Odlavas Petti, diretor do Panorama visto da ponte, com esplêndida interpretação de Leonardo Villar, que acaba de nos deixar; o talentoso Paulo Villaça; o exagerado Ezequiel Neves... Semelhantes à Adriana e a eles, outras figuras notáveis foram ocupando os apartamentos de sala ampla e quarto, alugados a preços ridículos (os da frente eram de graça, o tiroteio costumava ser infernal à noite; os do fundo, mais caros, dava direito a bela vista da cidade, tendo ao longe Niterói).

Importante é salientar que cada apartamento de artista era sala de reunião de pessoas que se queriam e queriam também passar a noite de maneira, eu diria, amiga e inconvenientemente conveniente. Isso era então impossível num bar, ou num restaurante de Ipanema, todos tomados por bebuns e por eles patrulhados. A exceção era o Bofetada, que ficava na Farme de Amoedo. A negociação das substâncias se fazia na troca de olhares entre o cliente e o vendedor. Marcavam para daí a pouco um encontro rápido nas dependências do banheiro.

A vida social noturna era íntima e convidava a algumas brincadeiras que ficaram registradas em super-8. Onde estariam essas preciosidades? Todos queriam passar a noite do mesmo modo como tinham passado a manhã, à solta nas famosas dunas do barato. Todas e todos faziam parte da multidão de futuras grandes estrelas nacionais, que encontrou sua historiadora na querida Scarlet Moon, autora do delicioso livro Areias escaldantes.

À exceção talvez do Odlavas, o Antonio Bivar (1939-2020), que nos deixou domingo passado (dia 5), era o único do grupo dissidente que não faria e nunca fez feio nas reuniões da fechadíssima Virginia Woolf Society of Great Britain. O modelito em vigor na dissidência Pasquim era o despojado. Calça jeans desbotada, t-shirt preta ou com imagem de ídolo, sandália e sacola praieira. Bivar era tão britânico no vestir, no caminhar e na maneira de ser quanto um professor universitário em cidade que conhece o inverno. Parecia nascido e feito sob medida para ser o eterno leitor de Virginia Woolf.

Evidentemente, o Bivar nunca alugou apartamento no prédio da Saint Roman. Era apenas frequentador e, vez ou outra, participava dos almoços coletivos do grupo no Fazendola, restaurante self-service, que fica até hoje na Praça General Osório. De vez em quando também, esticava até o sobrado das Meninas, restaurante da Cleuza e da Lúcia, onde reinava a Isabel Câmara, poeta de primeira (Helô Buarque que o diga) e autora da peça As moças. Da Isabel: “Ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama/ de Baudelaire”.

No entanto, o gentleman paulista, na hora de escrever para o teatro, assumia uma atitude antípoda — bem porra-louca, para retomar o vocábulo que a censura política cortou no título de uma de suas peças. No frigir dos ovos da vida, talvez seja o descompasso entre o clube Bloomsbury no estar e a porra-louquice no escrever que tenha se tornado insuportável para ele e o tenha obrigado a abandonar a dramaturgia udigrúdi, com direito a um rápido e fulgurante estágio na estética punk. Bivar deixa Alzira na janela do conjugado carioca, para biografar a admirada Yolanda Penteado, uma aristocrata iconoclasta.

O Antonio Bivar que conheci se transformava (acompanhava-o então de longe) numa espécie de viajante eterno, com uma única parada obrigatória, o Reino Unido. Adepto também da vida nômade, eu gostava de ler os autores brasileiros que se entusiasmavam com a experiência de viagens exóticas. Na linguagem jornalística, são os chamados correspondentes. Já eu, sempre quis viajar para poder morar numa cidade que nada tivesse a ver com o Brasil e levantar algum numa instituição universitária. Não gosto da viagem ou de reportar o que vejo na viagem. Gosto de estar num lugar estrangeiro fazendo de conta que sou “native” a conviver com “natives”.

Curioso esse período em que ficou em moda, entre os intelectuais, escrever sobre viagens e viajar ao estrangeiro como se fosse turista. Sempre de longe, persegui menos o Bivar, e seus escritos, e mais o Marco Antonio Menezes, e seus artigos na revista Vogue sobre cruzeiros pela Grécia, ou então o Marco Antonio Lacerda, em sua narrativa sobre os brasileiros que viviam no Japão.

Volto ao teatro, abandonado pelo Bivar logo depois de ele ter tido um sucesso estrondoso. Nos anos 1970, ele participou do coro dos jovens dramaturgos que, devido à pobreza financeira decorrente da ditadura militar (semelhante a esta que atravessamos agora), escreviam peça para dois, no máximo três atores. Havia algo de atual, viperino e ingênuo na fala de seus personagens solitários que, anos mais tarde, alicerçará por aqui a produção teatral do Caio Fernando Abreu e as encenações do Gilberto Gawrosnki e, pela Espanha, os primeiros filmes de Pedro Almodóvar, como Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão. Ricas manifestações sentimentais do pop periférico e pobre.

Acredito que, se O assalto (a ser remontado com sucesso se o título virar O assédio), de José Vicente, mantinha parentesco com o Zoo story, de Edward Albee, já Alzira Power (o título original era Alzira porra-louca, a peça passou por incríveis metamorfoses por causa da censura política) era um flerte bem intencionado com a Blanche Dubois, de Tennessee Williams. Isso se a Blanche morasse num apartamento de janela para a rua e preferisse paquerar jovens roqueiros em lugar de Marlon Brando. Extrovertida e exibida, a cinquentona Alzira punha o som a toda altura e atraía os olhares juvenis, curiosos e sensíveis ao rock dernier cri, chegado de São Francisco ou de Londres.

Em 1972, já havia motivo de sobra para Luiz Carlos Maciel e Ezequiel Neves lançarem a revista Rolling Stone (edição pirata da norte-americana, não poderia ter sido diferente). Publicaram 36 números. Caetano Veloso virou rei nas capas da dissidência Pasquim. Compositor e cantor, ele trazia para a MPB o glamour desinibido, elegante e tóxico da atriz Adriana Prieto em A viúva virgem (1972), nossa primeira pornochanchada, garante o crítico Inácio Araujo. Como disse o enfezado dramaturgo José Vicente: “Somos a procura, a entrega, a fome e somos também o abutre do lixo americano”.

SFbBox by casino froutakia