Cazuza rep.da.internet julho2020

 

Cazuza (1958-1990) aparece na cena artística brasileira no momento em que os jovens já não têm as profundas inquietações políticas centradas na derrota da ditadura militar. Muitas e muitos deles deram a vida pelo fim dos anos de chumbo e muitos outros se entregaram à conscientização do povo pela importância da luta contra a tortura, a censura e todas as formas de repressão cotidiana, típicas de regime militar no poder.

O jovem Cazuza nasce junto com o sentimento republicano, conquista dos que já estão maduros e desimpedidos. Preparam-se para a vida democrática. A constatação parece simples, mas não é. Naquele momento de transição, os jovens de 1964 reconhecem suas limitações proféticas e, ao mesmo tempo, os entraves decorrentes da formação estudantil e profissional, ambas deficientes do ponto de vista formal. No caso de artistas e de intelectuais, estão todas e todos conscientes de que as exigências do processo de reprofissionalização e do público serão outras e certamente diferentes.

Para não desaparecer da festa e do palco, artistas como Caetano, Chico, Gal, Gil ou Tom Zé sabem que têm de se dedicar mais ao aperfeiçoamento tanto de suas habilidades naturais de músico quanto de seus conhecimentos de caráter geral. Para as próprias vidas buscam uma disciplina inédita, que os transforme em cidadãos e artistas prontos para a competição internacional.

Os mais talentosos artistas da MPB conhecem suas falhas de formação e se dedicam ao artesanato musical, ou ao aperfeiçoamento quase vanguardista das letras de suas canções. Outros, como Caetano e Chico Buarque abandonam os sueltos jornalísticos e combativos e se entregam à crítica social ou à ficção, respectivamente. Já os estudantes com formação universitária buscam os cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado), seja aqui seja no estrangeiro. Nunca o jovem brasileiro que trabalha com cultura ou com o conhecimento científico tinha viajado tanto sozinho.

Cazuza nasce jovem republicano e cheio de ansiedades. Quer exprimir-se com toda a sinceridade do corpo jovem, em processo de autoafirmação na cena artística carioca. Assim nasce para a vida pública, mas logo se sente expulso do projeto um tanto careta da República. Suas forças interiores naturalmente anárquicas, ele não as conhece e o conduzem. Deixa-se levar por elas.

Vida louca vida, vida imensa
Ninguém vai nos perdoar
Nosso crime não compensa
Vida louca vida, vida breve
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve, leve, leve


São de uma vida louca e imensa que vêm as críticas sociais (em especial, de caráter comportamental) e políticas que, na verdade, só serão feitas no novo milênio ao projeto republicano dos anos 1980. Muitas e muitos jovens ― sem que a boa consciência constitucionalista se desse conta delas e deles ― foram expulsos do projeto de democratização pelo excesso de compromisso com a sociedade pequeno-burguesa, branca e norte-americanizada.

Brasil, mostra a tua cara
Quero ver quem paga pra gente ficar assim
Brasil, qual é teu negócio
O nome do teu sócio
Confia em mim

De todos os artistas da cena musical de meados e de fins dos anos 1980, Cazuza foi e será o primeiro a fazer de sua experiência de vida e de seu comportamento transgressor, sempre com a cara limpa, o motivo explícito para chegar a ser verdadeiramente um artista que se exprime e trabalha em total liberdade. Ele é o primeiro autobiógrafo selvagem da MPB. Não tem vergonha de ser irmão ou irmã de muitos que não sentem necessidade de travestir-se-de-cidadão para se tornar apto a viver a vida pública. No Rio de Janeiro, é tão sincero, natural e nutritivo quanto o açaí da selva amazônica.

Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro

Não tem vergonha de ser quem é porque sua vida não é tão modelar quanto as vidas dos artistas que amadureceram e já se apresentam como estrelas nacionais e internacionais. “O meu tesão agora / é risco de vida”. No cotidiano e no palco, não muda a cara. Não usa maquiagem ou cortes de cabelo ousados. Apresenta-se como é, frágil e valente, disposto a viver nas margens que seduzem os “rebel without cause”, para citar o título do filme de James Dean. “Vida louca, vida breve”.

Cazuza é um jovem pequeno-burguês da zona sul carioca que acredita não ter necessidade de sair do bairro, pegar o carro e se mandar para a vida louca, malandra e, finalmente, triste, da Lapa. Não precisa deslocar-se (embora possa, se fosse o caso) para viver a noite como quer e deve vivê-la. De maneira boêmia e nos limites da transgressão, ele instala seu corpo no baixo Leblon, bairro da zona sul, onde vive sua família e está sua escola, onde conhece os amigos e as amigas e também os parceiros. Seu público se amplia, democraticamente.

Todos os aspectos da sua vida é res publica, por mais abjetos que eles possam ser julgados pela pequena burguesia bem-pensante, a que pertence sua família. Não sente necessidade de esconder-se nas dobras da “noche nochera”, de que fala Federico García Lorca. Teria encantado Jean Cocteau durante a filmagem de O testamento de Orfeu. Cazuza é de natural cigano e livre, pertence à música e à noite. Tampouco sente necessidade de estetizar os movimentos urgentes e ardentes, comprometedores do corpo na vida social carioca. Que seu corpo seja como é: em casa, na escola, no bar, no palco, na telinha, etc.

Como dizia Hélio Oiticica, para nós não há modo de viver a vida sem a “fé no veneno”, de que fala o poeta Arthur Rimbaud.

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