Artigo Cuenca Filipe Aca setembro.20

 

 

1.
Há vinte anos, a internet tinha um som, um lugar, um horário. O som era estridente, chegava pela linha telefônica e transformava-se em código dentro de uma caixa de metal. O lugar era a mesa sobre a qual ficava o aparelho, ao lado de um monitor de tubo. O horário, fora de escritórios e bibliotecas, era quando a linha estava livre em casa — ou depois de meia-noite, tarifa de pulso único. Em tempos de conexão ubíqua nos bolsos, até em voos comerciais a dez mil metros sobre o Atlântico, é curioso lembrar de um mundo ainda não totalmente permeado pela rede, quando havia uma cerimônia de entrada na internet — e também uma hora de saída. Foi sob esse liga e desliga telefônico que comecei a publicar textos de ficção online, em 2000. E volto a fazer o mesmo hoje. Esse texto é uma tentativa de esboçar a trajetória pessoal desse retorno, uma crônica sobre mídia e autopublicação nas duas primeiras décadas do século XXI.

2.
Fui um entre muitos — mas não tantos — escritores incipientes, nascidos entre o final dos anos 1970 e o início dos 1980, que abriram blogs na virada do século. Não passávamos de algumas centenas usando ferramentas como o Blogspot (depois Blogger), Geocities ou mesmo sites programados em HTML. Ao lado dos textos, havia quase sempre uma lista com o endereço de blogs amigos — e esse tipo de coluna era a coisa mais parecida com uma rede social aqueles tempos pré-Orkut, em que a mecânica de navegação era bastante mais horizontal e livre da mediação de conglomerados e portais. O oligopólio das quatro grandes (Google, Amazon, Facebook e Apple) logo alteraria a experiência da internet de forma irreversível, criando um funil online hoje traduzido na maior concentração de capital da história da humanidade.

Na época, a rede ainda não operava sob a presente bruma de controle, vigilância e capitalismo extremo — ao contrário, representava um espaço de liberdade e experimentação. Nesse contexto, boa parte daqueles escritores “uma ideia na cabeça e um modem na mão” começaram a juntar-se em sites, zines online ou coletivos/webrings como Exquisite, Fraude, Paralelos, Gardenal, Verbeats, COL, TXT Magazine e Badtrip — ao mesmo tempo em que nomes de peso do jornalismo brasileiro copiavam tais iniciativas sob esquema mais profissional (leia-se: pago) em sites como o No Ponto: Notícia e Opinião, que em 2002 se transformaria em No mínimo, o equivalente da revista Piauí dos blogs da época.

Para essa geração, tal vida literária tinha em rudimentares listas de discussão por e-mail e caixas de comentários de certos blogs seus cafés, onde intrigas, flertes e trocas de insultos eram comuns — e onde tantos de nós ensaiamos as personas que iríamos interpretar em palcos mais iluminados nos anos seguintes. Enquanto espaços em bienais do livro ainda eram inimagináveis e não existia nada parecido com uma Flip, dependíamos de shows e festivais de indie rock pelo Brasil para nos conhecer ao vivo. Essa interação entre música, jornalismo gonzo e “resenhismo”, aliás, foi fundamental para a consolidação daquela cena. Quase todos fazíamos parte de alguma banda ou projeto musical, tentávamos tocar como DJs em festas ou escrevíamos sobre música — ou tudo isso ao mesmo tempo, e sem muito sucesso. Era também usual termos em comum a amizade do gênio hiperativo de Paracambi (RJ), Fred Leal, o Jayme Ovalle dessa geração, que apresentou tantos de nós uns aos outros.

Eu tinha a impressão que Porto Alegre concentrava a metade dos escritores brasileiros da minha idade e era o único lugar do país onde éramos reconhecidos na rua por ter um blog — especialmente se estivéssemos ao lado do André “Cardoso” Czarnobai, claro. Ali, a cena inteira cabia dentro do Garagem Hermética. Em São Paulo, na Funhouse. No Rio de Janeiro, na pista dois da Casa da Matriz — ou naquele banheiro debaixo da escada, a depender da noite.

3.
No início de 2002, a Kamille Viola, amiga escritora-jornalista e detentora de um blog, enviou, sem me consultar, fragmentos de um arquivo tirado do meu computador para a revista Ficções, da editora 7Letras. O Rubens Figueiredo, então um dos editores da Ficções, acabou publicando trechos do que viria a ser o meu primeiro romance nas edições de número 9 e 10. O primeiro texto, uma alucinada excursão de dois branquelos deslumbrados a um baile funk, chamou a atenção do Paulo Roberto Pires — então articulista do No mínimo, mas que logo iria para a editora Planeta, onde publicaria o Corpo presente, meu primeiro
romance, no ano seguinte.

Num golpe de sorte, em menos de um ano saí de guitarrista excêntrico da cena underground (a depender da banda, eu tocava maquiado e com meia-arrastão) e blogueiro obscuro que publicava diálogos crípticos online a autor convidado da primeira Flip com livro publicado por uma editora nacional, além de cronista da Tribuna da Imprensa, tradicional diário carioca. Assim, de enfiada e aos 23 anos, começaria minha trajetória crepuscular no meio editorial e na imprensa brasileira.

Crepuscular, digo, pois os escritores dessa geração que ocuparam jornais e revistas naquele momento talvez tenham testemunhado os últimos estertores da aura da página impressa no país. Entre 2003 e 2010, fui colunista dos cadernos culturais da Tribuna da imprensa, do Jornal do Brasil, e da revista Megazine, que era suplemento do jornal O Globo. A Tribuna, o JB e o suplemento do Globo deixaram de existir pouco depois que saí de cada um deles. Se, no início daquela década, uma pequena nota na imprensa era sinal de status, hoje a tiragem e o prestígio dos jornais parecem sofrer queda irreversível. Uma debacle que não é só econômica, mas principalmente simbólica.

No entanto, nós então ainda buscávamos a página impressa ou pelo menos algum espaço dentro de grandes portais — essa migração foi rápida e, talvez pelo fato de não aguentarmos mais responder perguntas como “blog é literatura?”, logo muitos de nós abandonamos a plataforma de autopublicação e os sites coletivos independentes onde surgimos. Em poucos anos, veríamos os nomes que ilustravam os nossos “blogrolls” migrando para a grande imprensa e casas editoriais estabelecidas. Tínhamos virado escritores “profissionais”, afinal, e algo haveria de nos diferenciar dos que ainda não tinham passado pelo crivo do meio editorial e jornalístico do país.

Franquear tal importância ao posto oferecido por uma empresa hoje me parece absurdo e questionável, mas aos vinte e poucos anos de idade — sendo um leitor ávido de literatura em papel e crônicas de jornal desde a infância — aquilo fazia sentido. Ser um “blogueiro” rapidamente tinha virado apenas uma porta de entrada para ser publicado onde importava: o impresso.

4.
O último blog independente que alimentei, em 2003, era um diário da escritura, edição e recepção do meu primeiro livro. Segundo a descrição, presente nos corredores do Archive.org: “DIÁRIO DO PROCESSO DE EDIÇÃO E FINALIZAÇÃO DO MEU PRIMEIRO LIVRO, ‘CORPO PRESENTE’, PELA EDITORA PLANETA. AQUI PRETENDO RELATAR O QUE DE IMPORTANTE ACONTECER NESSES DIAS, ENTRE DETALHES TÉCNICOS DE EDIÇÃO, PARANOIAS, ANGÚSTIAS, BLOQUEIOS, MOTIVAÇÕES ESPÚRIAS E TUDO QUE ENVOLVE O PROCESSO DE ESCREVER, DESDE SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS ATÉ JOGUINHOS MENTAIS E AUTO-AJUDA”.

De fato, não havia muito mais que isso por ali. Mas houve uma dobra importante, então seguida pelos leitores do livro que ainda não existia: trechos dessa escrita diarística sobre escrever o livro acabaram por entrar no livro. O laboratório aberto virou parte da obra, o processo de criação, a criação em si.

Invertendo a lógica corrente de criar um discurso sobre um livro depois de escrevê-lo, eu não só estava me entrevistando em público sobre a obra em progresso antes da publicação, como fiz desses bastidores parte do cenário principal. E Corpo presente, publicado pela Planeta em 2003 e reeditado pela Companhia das Letras em 2013, é o tipo de obra fragmentada e pouco recatada que permite esse tipo de arroubo.

Com o livro publicado, o blog ainda existiu para acompanhar a repercussão sobre ele, e logo depois o encerrei. Não imaginaria que voltaria algum dia a alimentar um site — ou um blog independente, para todos os efeitos.

5.
Minha trajetória de escritor com espaço na imprensa escrita e televisiva sempre envolveu tensões com empregadores, por questões políticas evidentes. Se em 2010 deixei de escrever para O Globo, eu então já era comentarista da Globonews, onde miraculosamente consegui durar seis anos. Como colunista, passei também por Folha de S.Paulo, The Intercept Brasil e, recentemente, Deutsche Welle Brasil — de onde fui desligado de modo escandaloso em junho por um
tweet satírico interpretado como “discurso de ódio” contra (veja só) Bolsonaro.

Nos últimos anos, marcar espaço na mídia foi cada vez mais frustrante. Tensões laborais e ideológicas à parte, é como se colocar à venda numa banquinha no caos ruidoso da Rua 25 de Março, em São Paulo. A lógica dos editores é a do contador de likes, o texto sendo sempre a plataforma para um debate apressado — e, quanto mais comentários acalorados e compartilhamentos, mais acessos ao fórum-coluna. Colunistas, aliás, hoje sobram em toda parte: há muito parece não haver qualquer filtro quanto às milhares de criaturas creditadas como articulistas de jornais ou portais de informação. O mesmo se pode dizer sobre os catálogos de editoras que, até a década passada, eram inquestionáveis sinônimos de qualidade editorial no país.

Sei que estou soando como um idoso discutindo com o jornal aberto no banco da praça — é de propósito. Pois o dispositivo tóxico, viciante e profundamente vulgar das redes sociais, de uma internet pós-“blogosfera”, parece ter contaminado a velha imprensa e o velho sistema editorial — aqueles mesmos jornais e editoras cujo prestígio e legitimidade escritores como eu buscávamos tomar emprestado no início dos anos 2000.

6.
E daí esse estranho retorno. A melhor forma de escrever e ser lido em paz hoje em dia, sem ter que disputar espaço no shopping center infernal de lacrações e cancelamentos que virou a internet afunilada de hoje, talvez seja mesmo abrir um blog em site próprio, pedindo aos leitores que te acompanhem a um lugar diferente e silencioso, com menos links e lixo no horizonte. Quase como numa outra internet – mais parecida com aquela de antigamente.

É onde, duas décadas depois, volto a convidar leitores a me acompanhar no processo de um livro: um site daqueles velhos, sem comentários e sem contadores de likes. Nada é mais antigo que o passado recente é um livro em progresso cujo processo de criação e desenvolvimento pode ser acompanhado em jpcuenca.com.

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