Ensaio Musica 2 Karina Freitas dezembro.20 

 

Leia, abaixo, a primeira parte do ensaio "A dança vem primeiro. A música olha e toca", do crítico Bernardo Oliveira, sobre a palavra percussiva na canção brasileira. A 2ª parte deste ensaio será publicada em janeiro.

 

***

Este ensaio se volta para uma tentativa de elaboração, ainda embrionária e incompleta, de caminhos para se pensar a canção “amefricana” brasileira. Partirei aqui de alguns modelos e critérios que geralmente não são utilizados pela teoria e a historiografia musical, sobretudo aqueles que se referem aos usos rítmicos da palavra na canção brasileira. O termo “Améfrica Ladina” foi cunhado pelo psicanalista MD Magno e transformado pela antropóloga Lélia Gonzalez para designar a especificidade da experiência negra na América do Sul. A palavra falada e cantada neste espaço-tempo amefricano e ladino parece se afigurar como um território especialmente ambíguo e conflituoso para a língua colonial: seja como entrave das práticas culturais não-oficiais, seja como elemento de apropriação e transformação, ou, ainda, como dimensão restritiva que fornece entonação discriminatória às instituições jurídicas, sócio-formativas e policiais. Sob forma de algumas hipóteses, quero esboçar elementos de formação contra-hegemônica do que conhecemos como canção brasileira, elementos que se atrelam à singularidade do “pretuguês” — termo cunhado por Gonzalez para designar o português amefricano — e suas características rítmicas.

Dos vissungos à história do samba, passando por toda a música negra afro-brasileira até os dias de hoje através do slam, do rap e do funk, percebemos a reiteração histórica da canção atravessada pela palavra percussiva, a palavra talhada por uma percussividade acentuada. Neste sentido, há uma relação entre figura rítmica e canção que parece desempenhar a centralidade do processos musicais afrodiaspóricos: pensar a sílaba como toque no tambor e criar com ele uma relação de deslocamento e reiteração. O tambor também tem a função de chamamento para a roda — a roda de samba, de jongo, de caxambu, de break, de passinho, de batalha de rap, isto é, a roda como ética, técnica e episteme. As rodas amefricanas e, particularmente, a roda de samba, se constituem primeiramente como formação coletiva espontânea que, no entanto, estabelece para si regras e procedimentos regulares, abertos à improvisação e à inovação. Este espaço instaurado pela roda se transforma em espaço de cultivo de saberes, técnicas e dinâmicas próprias das populações afrodiaspóricas, conservando um caráter contra-hegemônico em ato. Como no terreiro de candomblé e umbanda, a roda de samba é um dispositivo e um circuito através do qual as populações negras conservam e reinventam práticas e saberes marginalizados pelo sistema cultural vigente. Surge como espaço de partilha de uma temporalidade dilatada, na qual os repertórios do passado e do presente se atualizam em vistas de um futuro latente, de tal forma que me parece impossível usar a régua da tradição historiográfica franco-germânica para analisá-la. Como afirma Renata de Lima Silva, comentando o samba de umbigada, a roda pode ser considerada:

lugar de interseções, um entrelugar, por onde passam as noções de passado e futuro, sagrado e cotidiano — que o corpo limiar habita. O corpo limiar é o corpo em situação de jogo na performance ritual, que no devir presente-passado atualiza identificações corporais herdadas de um processo histórico de fuga e dobra de poder, representada na manobra cultural que foi a instalação e permanência da cultura de matriz banto no Brasil.
(em Sambas de umbigada: Considerações sobre jongo, performance, ritual e cultura)

A roda, assim, se configura também como espaço em devir, espaço onde vigora um efeito premente de atualização, capaz de produzir situações que, a depender da régua e do compasso do “observador”, podem aparecer de forma contraditória, mas que em sua dimensão concreta operam de forma complementar. Primeiro, a roda é tradição, mas também é o futuro. Na roda, canta-se para o futuro com os olhos no presente e no passado. Essa sensação de temporalidade embaralhada não desorienta, pelo contrário, pois é a partir deste embaralhamento que surge um verso novo, uma improvisação no pandeiro ou no repique de mão, um entreolhar cúmplice, um episódio histriônico. Outro aspecto aparentemente contraditório: a roda é espaço de coletividade, mas também de excelência individual, onde os talentos para os instrumentos, o canto, a composição e a dança sobressaem e alimentam a roda. Ritmo, nesse contexto, é fundamental e extrapola a música, como observa Nina Graeff em Os ritmos da roda: “Ritmo é organização dos movimentos, sejam corporais ou sonoros, no tempo ou no espaço. Enquanto tal, não é estático; se transforma. É na roda que os ritmos […] tomam corpo, tomam corpos em forma de dança e tomam sons em forma de música.”

A roda seria esse lugar onde todas as subjetividades são suspensas em favor da instalação abrupta de um circuito de técnicas, saberes psico-fisiológicos e afetivos. Uma vez instaurado esse circuito, há troca interpares, há circulação de uma energia que não se confunde mais com a canção que a deflagrou, ainda que esta aja de maneira concomitante. Ao contrário dos aspectos dionisíacos da tragédia grega sublinhados por Nietzsche em O nascimento da tragédia — dissolução da subjetividade, expurgo dos afetos decadentes — este circuito parece se afirmar a partir de uma significação cosmológica e vital ainda mais pungente, que engloba todos os seres, inclusive aqueles aos quais o pensamento ocidental nega o estatuto ontológico, como orixás, voduns, encantados, animais, plantas etc. Vale notar que nem toda roda é “redonda”, ela se assemelha mais a um circuito dinâmico e autônomo de energia coletiva do que uma forma pré-definida. Não surpreende, portanto, acompanhar o relato de Euclides Menezes Ferreira, mais conhecido como Pai Euclides Talabyian, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, no Maranhão, acerca de um ocorrido há décadas no Terreiro de Chica Pecoré, nas imediações da Vila Passos, em São Luís. Segundo Pai Euclides, durante os toques, Chica Pecoré trazia para o salão um urubu que ela mesma criava e que acompanhava as danças das mulheres, um fato que, para ele, era até então inédito. A roda afrodiaspórica se configura como abertura para uma realidade que tem no ritmo sua fonte de movimento, constituindo-se na amplitude de uma troca entre todos os seres e todas coisas.

 

COMUNICATIVIDADE, PERCUSSIVIDADE, IMPREVISIBILIDADE

Minha hipótese é que na roda e no ritual afro-brasileiro residem as fontes constituintes da grande tradição da canção brasileira. Para Luiz Tatit, em O cancionista, três são os modelos que caracterizam o processo de composição da canção: a figurativização — entoação que se aproxima da fala cotidiana; a tematização — isto é, “a melodia reiterando a letra”; e a passionalização — caracterizada pelo recurso ao alongamento das vogais e dos registros vocais como afirmação de “estados emotivo-psíquicos intensos”. Tatit completa: “a presença simultânea da tematização, da passionalização e da figurativização no mesmo campo sonoro e o revezamento das dominâncias de um processo sobre o outro constituem o projeto geral de dicção do cancionista.” Minha primeira hipótese é sugerir que a música negra brasileira, dos vissungos ao funk, passando pelo jongo e pelo samba, parece incorporar, para além dos modelos apresentados citados por Tatit, graus de comunicatividade, de percussividade e de imprevisibilidade.

A comunicatividade parece inspirada no dialógo entre vozes e tambores, diz respeito à apropriação de dinâmicas rítmicas da língua com objetivo de chamamento, característico das necessidades de maior engajamento para a roda ou o ritual. Completa essa figura a capacidade inclusiva, a força que atualiza a canção em contextos coletivos, e não somente os litúrgicos — como nos espaços de comunhão cancional que comportam a modificação da letra, da melodia e da própria canção de maneira a prolongar e intensificar seus efeitos fisio-psíquicos. (Um exemplo: nas rodas de samba cariocas não é incomum uma versão da letra ou um caco vigorarem de forma irônica, como, por exemplo, na substituição de “vai e não perca um segundo” por “vai e Dom Pedro II” no samba Meiguice descarada de David Corrêa e Ratinho, gravado por Almir Guineto). Os toques da percussão, o deslocamento abrupto dos tempos, os corpos respondendo ao ritmo e o ritmo respondendo ao corpo, são esses os movimentos que constiuem o circuito da comunicatividade.

A percussividade corresponde à distribuição das sílabas segundo uma interpretação específica dos toques do tambor e de sua função no ritual. A percussividade se dá a partir de uma relação entre o tambor e a voz, relação esta que pode adquirir as feições de um contraponto, de uma reiteração ou de ambos simultaneamente. A distribuição das sílabas acompanha o toque do tambor, os tempos fracos acentuam e deslocam as sílabas formando estratagemas rítmicos que se pode observar em diversas manifestações da canção amefricana. Uma observação lateral: a canção dos poetas-instrumentistas que usam esses modelos mais associados ao ritmo mantém, de modo geral, uma relação estreita com a forma de “timbrar” particularmente o instrumento para corresponder as nuances rítmicas da canção. Vale lembrar a batida de João Gilberto, inspirada no tamborim, a batida em pizzicato de Nelson Cavaquinho e o violão de Kiko Dinucci, inspirado nas diversas claves de uma orquestra percussiva litúrgica e pagã que inclui o tambor de candongueiro, e o banjo de Almir Guineto.

A imprevisibilidade, por sua vez, é o agente que pode intensificar ou afrouxar os elos que mantêm a roda e o ritual de pé, e diz respeito a uma inversão: neste caso, o “ruído”, a “síncope” e demais elementos que na concepção ocidental podem prejudicar a justa transmissão do código, não se afiguram nem como acidente, nem como distúrbio para a transmissão do código. Trata-se de pensar a “síncope” (o deslocamento abrupto da acentuação rítmica) e o “ruído” (elementos supostamente extra-musicais que fluem por todo o processo) como dinâmicas fundamentais na musicalidade afrodiaspórica que se abrem em virtude da comunicatividade e da percussividade. Responsável pelo encaminhamento exitoso do ritual, a “síncope” improvisada remete a um movimento de resposta a um contexto ou sob a forma de um estímulo sonoro — o transe como registro psico-fisiológico coletivo que responde às claves rítmicas e suas variações e convenções.

Como afirma Ângelo Cardoso em A linguagem dos tambores, ao comentar o ijexá, o aderé, a ramunha, o toribalé e outras modalidades de xirê: “a música de candomblé se encontra tão emaranhada com eventos extra-sonoros que, ao abordá-la, inevitavelmente somos impelidos a extrapolar o âmbito sonoro.” A função da música nesse âmbito não é ornamental, mas comunicativa: “a música de candomblé é […] uma forma de comunicação; um conjunto de códigos cujo significado é mantido pela tradição. […] a música cumpre o papel de comunicar, ela é um código com fins dialógicos.” A função comunicativa desta música, por sua vez, não se esgota no modelo semiótico, isto é, não recorre necessariamente à estrutura constituída por código, emissor e receptor. Antes, parece extrapolar a relação comunicacional abstrata para estabelecer a percepção oscilante de uma musicalidade “coletivamente interpretável” (Roland de Candé apud Ângelo Cardoso), na qual termos como “acidente”, “ruído” e “improviso” adquirem um peso específico ante a coletividade e as suas necessidades rituais e festivas. No caso particular do “ruído”, elemento que no diagrama da semiótica euro-saxã corresponde a um distúrbio que compromete a emissão adequada da mensagem, trata-se de realocá-lo para uma compreensão que abraça a instabilidade e a imprevisibilidade como elementos que participam da dialogicidade da roda ou do ritual.


O CANTO DOS ESCRAVOS

A composição coletiva dos vissungos — do umbundo o visungu, “cantiga”, “cântico” — que constituem o disco O canto dos escravos, nos serve aqui de paradigma inicial. Esse conjunto de cantos de trabalho anotados pelo filólogo Aires da Mata Machado no distrito de São João da Chapada, em Diamantina (MG), foram compostos na “língua da costa”, mescla de português e banto, utilizando-se da língua colonial à moda do patois jamaicano, a partir de uma apropriação fundamentalmente estratégica e recriadora da língua do opressor. Deste material, que reunia 65 partituras, 14 cantos foram gravados por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Jilçária Cruz Costa, mais conhecida como Tia Doca da Portela. O disco foi lançado em 1982 e contou com três percussionistas de peso: Djalma Corrêa, José de Ribamar Viana (conhecido como Papete), e Dom Bira, percussionista que participa de diversas gravações importantes dos anos 1970 e 1980.

Inúmeros trabalhos importantes foram escritos sobre esses vissungos e, aqui, retomaremos alguns deles não para lhes corrigir ou acrescentar algo, mas para sugerir uma possibilidade exegética: a base de composição dos vissungos seriam as línguas bantas como o quimbundo, o ovimbundo e o quicongo, o português (a língua colonial), a “língua da costa” — “uma estranha mescla de português e banto, antigo idioma das senzalas…”—, e, por fim, a rítmica dos tambores como elemento percussivo a ser incorporado pela palavra cantada. Este último, e esta é uma hipótese, parece ser o elemento catalisador de percussividade, comunicatividade e imprevisibilidade. Misturas fonéticas, modos de enunciar que dilatam as vogais das sílabas, utilizando as consoantes de forma a pontuar a divisão rítmica, além de adequações da língua que norteiam diversas estratégias sonoras e discursivas da música brasileira. O uso da língua colonial como arma de combate que, porém, não destrói o inimigo. Pelo contrário, munido de sua língua própria, o falante escravizado inocula no registro discursivo o germe de falares, entonações, formas de expressão e visões de mundo que, consubstanciados ao corpo da língua oficial, afetam seu desempenho disciplinar. Como afirma Yeda Pessoa de Castro em A propósito do que dizem os vissungos, “a parte dos falares de base banto foi a mais significativa no processo de configuração das diferenças que afastaram o português do Brasil da sua matriz falada em Portugal.” Amailton Magno Azevedo aprofunda a questão:


As cantigas representavam algumas estratégias de preservação de costumes. Negociava- se com valores brancos, sobretudo, os de ordem religiosa, incorporando o cristianismo católico com seus santos. Por outro lado, mantinham marcas de danças de terreiro ao conservarem certas práticas culturais trazidas da África Central, como os vocábulos e segredos de cânticos para manter códigos específicos. Os vissungos funcionavam na mistura dessas duas estratégias. (em O canto dos escravos: Heranças centro-africanas na música contemporânea do Brasil)

É nesse contexto que comunicatividade, percussividade e imprevisibilidade desempenharão um papel central na produção cancional amefricana. Sobre esse grau de relação que se pode caracterizar como uma comunicatividade no encontro entre singularidade e coletividade da roda e do ritual, vale mencionar o Canto II, gravado por Clementina de Jesus:

Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.
Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do Dumbá

Na tradução feita por Machado Filho (apud José Jorge de Carvalho em Um panorama da música afro-brasileira): “O menino, com a trouxa nas costas, está correndo para o quilombo do Dumbá. Os que ficam choram porque não podem acompanhá-lo”. Analisando o Canto II, Carvalho se pergunta, no mesmo texto: “Qual é o ‘eu’ que fala na canção? Para quem ele fala — isto é, quem é o ‘tu’ para ele — e quem é o terceiro que garante a comunicação que ele tenta estabelecer? […] Temos aqui aquilo que Mikhail Bakhtin chama de dupla voz: o sujeito está chorando pela afirmação de que outros choram.”

Como afirmei, a comunicatividade é inspirada no diálogo dos integrantes do ritual ou da roda com os tambores, mas também, como consequência, com a própria roda e a presença de todas e todos que trocam olhares, feições, gestos e algo como uma tensão térmica que mantém a roda viva. As dinâmicas rítmicas da língua e do tambor se articulam com objetivo de chamamento, característicos das rodas afrodiaspóricas. A “dupla voz” a que alude Carvalho corresponde a uma cumplicidade que se instala aos poucos nos desdobramentos das dinâmicas coletivas e subjetivas: o conjunto musical, a dança, acompanhar a canção com gestos de representação da letra, responder com o corpo à mudança de ritmo ou a um floreio da percussão. Esses elementos dinâmicos são capazes de potencializar a força da roda nos processos de atualização ritual da canção — em sua maioria, nos contextos coletivos: o ritual, a festa, o carnaval, a roda de samba, etc.

Ensaio Musica 1 Karina Freitas dezembro.20


Sobre O canto dos escravos, Amailton Magno Azevedo afirma que “a função dos instrumentos utilizados nesse disco converge para o que as letras expressam”. A relação entre voz e tambor, portanto, é algo que constitui a expressão musical amefricana. A forma como se organizam esses tambores do ponto de vista da estrutura rítmica e melódica se reflete na construção de canções. Tomemos, por exemplo, a lógica dos três tambores, graves, médios e agudos: em Cuba, são chamados timbales, congas, bongô; no candombe uruguaio: chico, repique, piano; no candomblé brasileiro, rum, rumpi e lé. A projeção objetiva dos sons na representação dos três tambores e a manipulação criativa da relação entre graves, médios e agudos não se dá apenas por razões sonoras. Primeiramente, o disparo da energia da música vem ou da frequência aguda ou da frequência grave. No Brasil, por algum motivo, o tambor grave, o rum, é responsável por invocar frequências impactantes e propícias ao chamamento e ao arrebatamento. Mas vale escutar o que nos disse em entrevista o maestro, instrumentista e compositor baiano Letieres Leite: “a dança vem antes. A música olha e toca” [grifo meu]. Parece, então, que não é o corpo que responde ao toque do rum, mas é o rum que responde ao corpo que se exprime pela dança. À representação gestual e aos movimentos da dança ligada a um orixá ou vodun incorporado, as claves respondem circunscrevendo o desenho rítmico da música, isto é, a música construída a partir dos movimentos corporais. O alagbê de candomblé observa o corpo de quem incorpora o orixá ou vodun, acompanhando o gestual da personalidade manifestada e a acentuação rítmica que ela sugere. É evidente que há um alto grau de convenção nesse procedimento, mas há também imprevisiblidade e improvisação.

Com isso, gostaria de sugerir que o rigor com que se preserva e constrói a rica musicalidade litúrgica brasileira se espelha diretamente na produção cancional. Letieres Leite me sugeriu analisar o toque de partido-alto na composição Incompatibilidade de gênios, de João Bosco e Aldir Blanc, acompanhando a construção da canção. Convertamos na imaginação o violão de Bosco na célula rítmica que caracteriza o partido-alto, executada no pandeiro. E cantemos, adaptando o canto à divisão silábica e aos aparos linguísticos realizados com função rítmica: “Dôtô. Jogava o Flamengo e eu queria escutá…” Reparem a dança e a contradança de tempos fortes e fracos ora driblando-se uns aos outros — “jogava o Flamengo” em tercina —, ora reiterando-se — “queria escuTÁ”… — (a caixa alta e a acentuação irregular aqui sublinham a sílaba e o toque agudo do pandeiro). Reparem também que o aspecto de fala característico do que Luiz Tatit chama de tematização, perfeitamente compatível com a percussividade, serve tanto ao prolongamento da tensão rítmica como da tensão entre o casal que a música descreve. A canção é construída praticamente a partir desse jogo de deslocamento e reiteração, de tensionamento e chamamento, que nasce do corpo, passa pela resposta percussiva do pandeiro e é transmitido para o violão de Bosco.

Neste ponto, considero interessante atentar brevemente para a figura a seguir, transcrição melódica e rítmica do Canto VI, gravado por Geraldo Filme. Observem a forma contrapontística com que se relaciona a sílaba ao toque do atabaque, demonstrando a importância das relações de deslocamento e reiteração da sílaba cancional com a atividade percussiva:

Imagem1

 

Esta divisão voco-silábica, apta a ser modificada pela dicção do intérprete, responde ao ritmo dos tambores, que, por sua vez, responde pelo caráter de imprevisibilidade e improviso expresso pelo corpo. O corpo como uma espécie de esponja atravessada por elementos subjetivos e coletivos, regulados pelo texto musical. Andrea Albuquerque Adour da Camara, em Vissungo... enquanto canto, afirma:

o canto como uma ação dinâmica do acontecimento e a canção como o resultado deste acontecimento, ou seja, a canção já foi canto, porém o canto é. No canto, o cantador pode valer-se de diferentes aspectos improvisatórios, modificando ritmo, melodia, harmonia e emissão, enquanto na canção a improvisação tem caráter mais idiomático, visto que pertence a um sistema fechado, ou seja, não pode exceder os limites impostos pelo texto musical.

A canção alimentada pelo ritual e pela roda, portanto, é como que incorporada por elementos sonoros e extra-sonoros que, pode-se dizer, condizem com o contexto dentro do qual são expressados. Como observa Kwame Appiah em Na casa de meu pai, a devoção ritual e a ontologia invisível são dinâmicas semelhantes à moderna ciência europeia — afirmando similitudes entre a atitude do cientista e a do babalaô (adivinho e curandeiro iorubá), pois ambos apreciam e interpretam a tradição de modo a alterá-la conforme os resultados e consequências provocadas pelo ritual. Essa manipulação do encaminhamento ritual nos impele a acompanhar Ângelo Cardoso (em A linguagem dos tambores) quando ele observa que, embora no discurso do povo de santo haja o costume de afirmar que cada orixá ou vodun possui toque próprio, na prática essa realidade é um pouco diferente:

Quando se diz que um determinado toque pertence a um orixá e que, por sua vez, essa divindade dança seguindo os sons do atabaque, deve-se entender que essas afirmações se referem principalmente a música puramente instrumental associada à dança. Quando o toque é utilizado para acompanhar as cantigas de candomblé, a especificidade do toque se dilui consideravelmente. Desta forma, por exemplo, o aderé que comumente está associado a Ogum, também é utilizado para acompanhar uma canção de Oxalá; o Ijexá, toque de Oxum, acompanha cantigas de quase todos os outros orixás; e assim ocorre com vários toques. Nesses casos, o toque perde a exclusividade com a divindade a qual comumente está associado e a canção passa a ser o referencial da divindade, homenageada através do canto. A uma cantiga para Ossaim acompanhada pelo Ijexá, por exemplo, falar-se-á entre o povo de santo que está tocando para Ossaim.

A depender da clave, a atuação do rum (o tambor grave) desloca a presença dos médios e agudos, comunicando que um outro orixá ou vodun está presente. Não se trata, portanto, de um processo comunicacional ao nível de uma subjetividade isolada ou de uma coletividade absoluta, mas de uma roda em movimento constante. Tampouco, de estabelecer posições estanques relativas aos elementos que circunscrevem o ritual e a roda. Tambores, vozes, palmas, panos, corpo, mente se fecham e se abrem, se afirmam e se reinventam nas voltas da roda que gira.

 

REFERÊNCIAS

Amailton Magno Azevedo, O canto dos escravos: Heranças centro-africanas na música contemporânea do Brasil. Em: OPSIS (Online), Catalão, v.16, n.1, p. 238-251, jan./jun. 2016.

Andrea Albuquerque Adour Camara, Vissungo... enquanto canto: O Padre Nosso. Em: N. F. Sampaio (org.), Vissungos: Cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 2ª ed. revista e aumentada. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2009.

Ângelo Nonato Natale Cardoso, A linguagem dos tambores. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006. 

Euclides Menezes Ferreira, Cartilha de memórias: Agora é minha vez. São Luís: Casa Fanti-Ashanti/Segraf, 2013

Hampaté Amadou Ba, A tradição viva. Em: Joseph Ki-Zebo (Editor), História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. 2ª edição. Brasília: Unesco, 2010.

José Jorge de Carvalho, Um panorama da música afro-brasileira. Em: N. F. Sampaio (org.), Vissungos: Cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 2ª ed. Revista e aumentada. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2009.

Kwame Appiah, Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Lélia González, A categoria político-cultural de amefricanidade. Em: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.)

Letieres Leite, entrevista concedida a Bernardo Oliveira, gravada em agosto de 2018 no Rio de Janeiro.

Luiz Tatit, O cancionista: Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. 

Nei Lopes, O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical: Partido-alto, calango, chula e outras cantorias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.

Neide Freitas Sampaio, A força da palavra nos vissungos. Em: N. F. Sampaio (org.), Vissungos: Cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 2ª ed. revista e aumentada. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2009.

Nina Graeff, Os ritmos da roda: Tradição e transformação no samba de roda. Salvador: EDUFBA, 2015.

Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

Renata de Lima Silva, Sambas de umbigada: Considerações sobre jongo, performance, ritual e cultura. Em: N. F. Sampaio (org.), Vissungos: Cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 2ª ed. revista e aumentada. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2009.

Tárik de Souza, Martinho da Vila: O bamba que não bambeia. O som nosso de cada dia. Porto Alegre: L&PM, 1983.

Yeda Pessoa de Castro, A propósito do que dizem os vissungos. Em: N. F. Sampaio (org.), Vissungos: Cantos afrodescendentes em Minas Gerais. 2ª ed. revista e aumentada. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2009.

 

 

SFbBox by casino froutakia