Capa Adilia 3 Maria Julia Moreira
 
 
Minha relação com a poesia de Adília Lopes teve um ponto de partida “material”. Conhecia poucos poemas dela quando, em 2002, época em que trabalhava na editora 7letras, recebi um trabalho para fazer: digitar os poemas que entrariam na Antologia, primeiro livro da autora que saiu no Brasil. [nota 1]
 
Podemos começar a escrever poesia imitando técnicas, dicção ou temas dos autores que amamos, mas, também, copiando literalmente as palavras e os poemas: para ter a sensação de dispor as letras na ordem em que foram escritas pelo autor. 
 
Escrevo
como quem puxa ou empurra
uma pedra
e não como quem voa
 
E lá fui eu atravessando as palavras de Adília Lopes, lendo os poemas com os dedos e entrando, pela primeira vez, em seu universo.
 
Lembro de uma diferença que o poeta Emmanuel Hocquard estabelece entre os livros que influenciam e os livros que impressionam. Para ele, os que influenciam são muitos e múltiplos, mas os que impressionam são raros (e também não tão identificáveis): eles ficam impressos na gente como se fosse em uma placa fotográfica. Pensando nesta diferença, acho que a poesia de Adília Lopes ficou impressa em meus dedos e em minha memória desde aquele momento. 
 
É certo que os versos dela comunicam de imediato e oferecem mesmo um alto grau mnemônico (ou de “impressionabilidade”), talvez pela simplicidade aparente aliada a um uso de frases feitas, expressões da língua (e recursos sonoros variados, como rimas e paronomásias cruéis: “tsunami/tiramissu”)
 
O inferno 
são os outros
mas o Céu
também
 
Seja como for, Adília Lopes provocou um efeito “tsunami” quando foi publicada por aqui. [nota 2] Gosto de pensar neste efeito como se fosse o de um poeta traduzido: de repente uma nova voz entra em circulação dentro do corpo poético de uma língua trazendo elementos estranhos a ela e produzindo, ao mesmo tempo, algumas reverberações. Estas reverberações foram, de fato, intensas e seria possível pensar nesta recepção a partir de alguns aspectos mais imediatos de sua escrita, como o humor, a linguagem coloquial, além do recurso a poemas curtinhos com jogos sonoros. Tais elementos trazem ecos de uma dicção familiar aos ouvidos brasileiros, pois acenam para a tradição modernista. É claro que Adília não está dialogando com nosso modernismo, mas trabalha com uma linguagem reconhecível para nós, ainda que de um ponto de vista inusitado e com algumas estranhezas de sintaxe, de vocabulário e de referências (afinal é uma autora portuguesa, escrevendo a partir de fora).
 
Por outro lado, esse seria apenas um viés de seus versos e tal leitura imediata poderia ser uma armadilha. Gosto de um poema de Rafael Mantovani que comenta o caráter “simples” dos poemas de Adília Lopes: 
 
Adília Lopes tem poemas
tão simples
que não entendo
de tão finos não consigo
entrar
porque saio do outro lado.
 
De início o que mais me chamou a atenção ao ler a poesia de Adília Lopes foi uma ideia de que todas as coisas podem “caber” em um poema. Não só gatos e baratas (tão provocativos) e preocupações afins a um universo feminino ou o uso de dados “biográficos” (sendo tal gesto nomeado), mas sobretudo a convivência deste mundo pedestre com tantas referências — literárias e plásticas, filosóficas, da cultura de massa. De Diderot à Sylvie Vartan. Rimbaud ao lado de peixinhos de prata e da rapariga violada pelo carteiro. Além das expressões idiomáticas, poemas que são como apontamentos, entradas de diários e textos em prosa e poemas longos (sem falar nos livros mais recentes, espécies de scrapbooks, com fotos do arquivo pessoal da autora). Adília comenta um uso da linguagem que condiz com essa desierarquização: “Assim como digo ‘Bom dia!’ e a expressão ‘Bom dia!’ não é da minha autoria, alguém a inventou muito antes de mim, a minha poesia é como se não fosse minha. Sinto-me despojada [dela]. O que faço é conviver: pôr a minha vida em comum.” [nota 3]
 
Em recente número da revista eLyra,[nota 4] Rosa Maria Martelo, Jeronimo Pizarro e Paulo de Medeiros levantam a pergunta: “Ela lança-nos  um  enorme  desafio  com  uma pergunta que só a poesia mais ousada, menos convencional e mais aberta à experimentação é  capaz  de  gerar: – mas isso é  poesia?”
 
Pergunta que poderíamos desdobrar assim: como isso faz para ser poesia?
 
Vamos passando de um livro a outro, percorrendo as micro-histórias, conhecendo os personagens e nos familiarizando com um ambiente que muitas vezes é a própria casa. Flora Süssekind lê algumas das tensões presentes na poesia de Adília Lopes no posfácio à Antologia e diz que haveria uma espécie de “pacto de intimidade com o leitor” por conta dos elementos biográficos, mas que logo é desarmado pelo modo como ela ficcionaliza e trabalha com tais referências. 
 
Se tudo parece caber dentro do poema, talvez importe a “cola” que acaba transformando todo o material, refazendo as relações e criando outros lugares para ver o mundo. Mas isso é poesia? Talvez seja, sim, neste ponto instável onde a cola junta as bordas e brechas, neste ponto instável que nos faz cair de um lado para o outro, indo da poesia para a chamada anti-poesia, ou da vida para o texto. Em um poema curtinho, de uma só linha e sem título, ela diz o seguinte:
 
Isto é só um happening. Acaba quando eu me for embora.
 
O que é “isto”? A poesia? A vida? Quem está falando aqui? O que significa “ir embora”? Estamos diante de um happening – vida e texto são um só, vida é texto montado, colado. E se as pontas e bordas ficam aparentes, tanto melhor, podemos buscar na própria Adília um antídoto, um modo de consertar os buracos: 
 
Acabou 
o tempo 
das rupturas
 
Quero 
ser
reparadora 
de brechas
 
Que privilégio poder acompanhar este happening ao vivo e ser contemporânea de uma das maiores autoras da nossa língua, podendo ver sua obra resistir e se infiltrar pelas brechas do tempo presente.
 
NOTAS
 
[nota 1] Antologia. São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac Naify/7letras, 2002. Os primeiros poemas que li dela saíram na revista Inimigo Rumor 9 (Rio de Janeiro: 7letras, 2000.)
 
[nota 2] Há algumas leituras que tratam do assunto, como a Ítalo Moriconi que diz que a poesia dos anos 00 é “adiliana”, em A poesia brasileira do século XX (Objetiva, 2002); e Sofia Souza e Silva que menciona o fato no posfácio da última antologia da autora que saiu por aqui, Aqui estão as minhas contas (Bazar do tempo, 2019)
 
[nota 3] Depoimento publicado na revista Inimigo Rumor 20 (Cosac Naify/ 7letras, s/data)
 
[nota 4] Com dossiê dedicado à Adília Lopes: https://elyra.org/index.php/elyra/issue/view/18

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