A partir de uma poção antropofágica em forma de drink, nasce o projeto poético de Angélica Freitas. Sua estreia, Rilke shake (2007), começou a estabelecer para o público o nome de uma das poetas mais influentes do começo de século. Uma voz que se ergueu a partir do diálogo com um cânone majoritariamente masculino, com suas questões de gênero e sexualidade, e uma ironia afiada, que é capaz, de um verso a outro, ir da erudição à cultura popular massiva. E quando falamos em voz, ao tratar de Angélica Freitas, pensamos também em um sentido literal de oralidade, já que se trata de uma obra sonora. Que pede para ser lida. Cantada até, como o refrão de um bloco. Algo que foi potencializado em seu último livro, Canções de atormentar (Companhia das Letras), que nasceu de uma performance musical apresentada pela poeta em 2017.
Lançado originalmente pela finada Cosac Naify e pela 7Letras, e já tesouro em sebos, Rilke shake ganha edição de bolso no próximo mês pela Companhia das Letras (clique aqui e acesse a pré-venda).
Entre os anos 2000 e 2010, se você queria escrever poesia, tinha uma grande chance de ter um blog ou um site. E foi nesse contexto que muitos dos poemas de rilke shake foram compostos. Ressaltando: compostos, e consumidos, em meio ao caos informacional da internet. Desse mesmo contexto, surgiram nomes como Marília Garcia e Ricardo Domeneck, que junto a Freitas organizaram o site Modo de usar & Co. Mas que papel essa cultura de blogs exerceu em Rilke shake, como o caos desses primeiros anos de blogs se infiltraram em seus textos?
Diferente da limitação do saber enciclopédico à Borges, que antes caberia numa biblioteca, a internet é esse oceano anacrônico de referências em desordem. Um poema de Baudelaire está a dois cliques de um videoclipe de Madonna. A impressão é que Angélica partiu dessa “bagunça” para criar uma ferramenta poética que dois livros depois – Um útero é do tamanho (2012) e Canções de atormentar (2020) – continua sendo a força motriz do seu “projeto poético”.
A ideia de captar algo imaterial, que está no ar, como uma antena, é uma das metáforas para o papel do poeta que mais encantam Angélica Freitas. “Significa que você pode captar no ar alguma movimentação que a maioria das pessoas ainda não percebe, e escrever a partir dela”, explica. “Há uma série da Ana Martins Marques de que gosto muito, chamada 'Visitas ao lugar comum', acho, em que ela pega clichês e os subverte”, pontua, em entrevista para o Pernambuco via e-mail direto de Berlim, onde está em residência artística. Esse sentido de subversão apreciado pela poeta dá título ao livro e demarca seus contornos políticos, ao transformar o nome do poeta alemão Rainer Maria Rilke num milkshake. O livro abre justamente com o poema dentadura, que traz sua mistura, a partir da ideia da literatura como alimento, como deglutição antropofágica.
DENTADURA perfeita, ouve-me bem:
não chegarás a lugar algum.
são tomates e cebolas que nos sustentam,
e ervilhas e cenouras, dentadura perfeita.
ah, sim, shakespeare é muito bom,
mas e beterrabas, chicória e agrião?
e arroz, couve e feijão?
dentinhos lindos, o boi que comes
ontem pastava no campo. e te queixaste
que a carne estava dura demais.
dura demais é a vida, dentadura perfeita.
mas come, come tudo que puderes,
e esquece este papo,
e me enfia os talheres.
Quando descobriu um exemplar de Rilke shake na Livraria Cultura, em Porto Alegre, no ano de 2007, a crítica e tradutora norte-americana Hilary Kaplan se deparou com um jogo textual singular e, portanto, desafiante do ponto de vista da tradução. Comprou o livro e decidiu traduzir Rilke Shake pro inglês. “Gostei do jogo de palavras, me fez rir. Então abri o livro, comecei a ler e encontrei poemas numa voz engraçada – de mulher, do sul, lésbica – e que tratava de questões de identidade pessoal e poética através de uma mistura de perspectivas locais e globais, pop e canônica”, pontuou Kaplan, em entrevista para o Pernambuco, em 2016. E é justamente nos jogos de chistes e nuances sonoras que Angélica firma sua voz autoral. É onde reside seus interesses: uma poesia apresentada por ela mesma como “interessada nas vogais do português” e em busca de modular as possibilidades das suas sonoridades. Um dia Hilary enviou as traduções a Angélica, que adorou o projeto. “É muito mais interessante e satisfatório para todos se pudermos ter contemporâneos” (tradução minha), diz a tradutora sobre a relação com a poeta brasileira e a tradução, parafraseando Gertrude Stein, que ressoa no Rilke shake através do poema Na banheira com Gertrude Stein.
rilke shake
salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga
nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe
Seu segundo livro, Um útero é do tamanho de um punho, tornou-se a melhor definição da – aparentemente paradoxal – expressão “clássico contemporâneo”. Com um impacto tremendo para a geração das novíssimas autoras, que inclusive fez com que a crítica Heloísa Buarque de Hollanda afirmasse em entrevistas que Angélica Freitas seria a “Ana Cristina Cesar da nova geração”. Seu lugar tornou-se tão forte e distinto na literatura brasileira, que foi incompreendido pelos mais diversos setores: de agentes políticos conservadores, passando por uma parte da crítica literária. Irônico, que, pouco depois, todos aqueles que não entendiam a ênfase na questão da mulher em Um útero é do tamanho de um punho se viram diante da explosão da quarta onda do feminismo, que colocou em marcha de reviravolta o comportamento da década.
VITÓRIA SOBRE O MEDO
O filósofo e linguista Mikhail Bakhtin acreditava que o riso é “uma vitória sobre o medo”. Angélica Freitas acredita que, para além da ironia flagrante, sua investigação com a poesia já tinha contornos políticos em sua estreia. “Minhas preocupações estéticas e políticas estavam já no Rilke shake, sim. E o Canções de atormentar, meu livro mais recente, retoma e amplifica os assuntos que me ocuparam nesses quinze anos”, explica. Mesmo que utilizando um caminho e imagens distintas em seus outros livros, seu livro de estreia já expõe uma espécie de exuberância do uso de referências pós-modernas, aliadas à dessacralização dos cânones como ferramenta do fazer político.
Entre escritos em blogs e alquimias poéticas, voltar para Rilke shake hoje é redescobrir a primeira linha que tece a poética e os procedimentos de Angélica. E talvez seja mais um reencontro do que uma descoberta propriamente dita.
Na conversa por e-mail a poeta afirma que, ao pensar em seu processo de escrita, se lembra de Lennon e McCartney. “Esses tempos ouvi uma entrevista do Paul McCartney sobre escrever canções. Ele disse que nunca sabia direito o que estava fazendo quando compunha uma música”, escreve. “E disse também que quando trabalhava com o John Lennon, muitas vezes tinham só uma semana para escrever todo um disco, mas nunca reclamavam que era pouco tempo, pelo contrário. Ficavam empolgados, iam pra algum lugar juntos e trabalhavam, faziam as canções. Eu gosto dessas ideias”, finaliza a poeta, que tem sempre as canções como um tipo de parâmetro. Tamanho parâmetro, que no poema r/c, em Rilke shake, escreve: “você sabe onde me encontrar/e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ eu vou estar/com um panasonic quatro pilhas aaa/ ouvindo as canções do rádio”.