Em março de 2017, quando estive no Rio de Janeiro pro lançamento da primeira edição brasileira d’o martelo, eu estava sentada na sala de um amigo, também poeta, quando ele disse: “Já leu esse aqui? Pra mim, hoje em dia, ela é a maior poeta brasileira de todos”. A mescla nos gêneros das palavras, a priori, me confundiu. Na minha mente binária, “ela” só poderia ser usada junto com a palavra “todas”. Quanta bobagem da minha parte. Não precisei pensar muito pra entender o que Flávio queria dizer, porque ele mesmo já foi emendando: “ela está, pra mim, no mesmo patamar de Drummond”. E tascou O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques, no meu colo.
Veja: a regra gramatical estabelece que, quando nos referimos a um grupo de pessoas ou coisas de vários “gêneros”, devemos utilizar o masculino como plural universalizante. E daí? Se na época que Flávio disse isso eu achei meio exagerado, hoje em dia eu não teria muitos motivos pra discordar: se não a maior, ela é certamente uma das maiores de todas. E nesse “todas” inclua, por favor, todo mundo.
Ainda bem que eu não sou amiga de Ana Martins Marques. Não porque já fomos e brigamos, ou porque acho que não poderíamos ser — mas porque, não sendo, posso pensar nela como penso em Clarice, em Adília, em Maria Valéria, nesse povo que nos conecta ao divinomaravilhoso. A primeira e única vez que nos cruzamos na vida real foi na frente da igreja de Paraty, ainda em 2017, durante aquela Flip curada por Joselia Aguiar. A memória já não me dá certeza, mas acho que fumamos um cigarro? Foi um Marlboro Lights? Fumamos mesmo? Pode ser que sim. Pode ser que não.
Esse cigarro foi (se é que foi) ao mesmo tempo um encontro e uma despedida — não somente porque nunca mais nos vimos de novo, mas porque, conforme fico sabendo em Risque esta palavra (livro inédito de Ana Martins Marques, no prelo), a poeta parou de fumar. Ou, antes, parou de fumar a personagem da última parte, que pode ser Ana, que pode não ser, mas que sobretudo se torna o que a leitora quer que a personagem seja.
Livros de poesia têm um tipo estranho de vantagem, que é a de demandar menos tempo cronológico da leitora. Ler 2666, Os irmãos Karamazov, Guerra e Paz, O capital e outros trambolhos dessa dimensão é um tipo de projeto. Você se dedica a eles por semanas, meses e, dependendo do caso, o resto dos seus anos. Livros de poesia te libertam mais rápido, ao menos cronologicamente falando. Você pega fogo por uns dias (às vezes algumas horas bastam) e, depois, lambuzada do livro — mas livre dele — vai viver sua vida. Só que Risque esta palavra te persegue, porque O Mistério nele contido (e o subsequente ego ferido de sentir Sua presença, sem, no entanto, entendê-lo completamente) não te deixam em paz tão rápido. E ainda que as imagens do livro sejam aconchegadamente mundanas, tipo “agora quando me lembro da cidade/ é do seu corpo que me lembro”, a relação dele com O Mistério faz com que você queira ficar dentro do objeto-livro desvendando “o mundo todo e as insistentes coisas exteriores/ que existem”.
Esses dias uma amiga de Recife me mandou de presente Pouso, obra da poeta recifense Ágnes Souza. Depois de lê-lo e sentir um shot de alegria que não sentia há tempos, passei horas negociando comigo mesma se postava os poemas no Instagram, naquele dia de março de 2021 quando tínhamos atingindo a marca de 2,9 mil mortos por covid em um só dia no Brasil. O ponto é que não que posso — aliás, não podemos — sentir vergonha de lembrar do que ainda nos humaniza, mesmo quando estamos no meio dos escombros. Aliás, é sobretudo quando estamos no meio dos escombros que precisamos reclamar nossa humanidade. As coisas que nos humanizam — estar juntas e celebrarmos a vida umas das outras — estão interditadas pra gente, como parte de um projeto político de morte, de negacionismo científico, de proteção do capital, de manutenção do status quo, que culmina com termos nos tornado o país do mundo com mais mortes por covid e o retorno do Brasil ao mapa da fome (“em silêncio um homem prepara/ menos comida do que ontem”, diz a poeta em Lembrete).
Não deve ser por acaso que a primeira parte do livro trata da morte — e é quase impossível de terminá-la. Quando achamos que vamos morrer de cansaço, de falta de ar, de pavor, que vamos “morrer de livro”, Ana Martins Marques encerra essa primeira parte com um poema chamado Um café com a Medusa. Com esse poema, praticamente uma respiração boca a boca, recuperamos nossa coragem de viver e de seguir lendo: “aos que não têm mais pátria/ seja porque se exilaram/ seja porque o país se exilou de nós/ e toma a forma dos nossos pesadelos/ seja porque na realidade não há países/ mas extensões variáveis de terra/ que as nuvens sem passaporte/ atravessam”. Não é possível que nem poesia nos restasse. Risque esta palavra é uma ventania, um livro que ajuda a viver melhor e, nem que seja por algumas horas, voltar a ser gente. E gente, vocês estão cansadas de saber, é pra brilhar, não pra morrer de fome.