A Izadora Xavier, que me apresentou essas cartas
Em 2020, seriam celebrados os 100 anos de nascimento da escritora martinicana Françoise Ega (1920-1976). Os filhos planejaram uma exposição sobre a vida e a obra da mãe na associação que leva seu nome, Mam’Ega (contração de “madame” com “Ega”), em Marselha, sul da França, onde moram e onde a escritora passou grande parte da vida. Mas a data correu sem alardes. Por conta da pandemia, a exposição foi adiada e ainda não tem data para acontecer.
Enquanto isso, os filhos vão remexendo nos arquivos da mãe, ao mesmo tempo em que têm de lidar com um interesse renovado por sua literatura. Há 21 anos, quando o último livro de Ega foi publicado na França — foram três no total: Les temps de madras (1966), Lettres à une noire (1978) e L’alizé ne soufflait plus (2000), os dois últimos vieram a lume postumamente graças aos filhos —, que não se falava tanto em sua obra. Dessa vez, o interesse surgiu deste lado do oceano com a descoberta do diário epistolar dirigido à Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Lettres à une noire. O livro, traduzido pela primeira vez para o português brasileiro, foi lançado recentemente pela Todavia sob o título Cartas a uma negra, com tradução de Vinicius Carneiro e Mathilde Moaty.
Minha história com Françoise Ega começou por acaso, quando eu estudava na França, em 2017. Numa de minhas visitas à Biblioteca Nacional da França, uma amiga da Sociologia me indicou despretensiosamente o livro, lembrando que eu estudava para minha tese — uma outra tese à época — um livro de Carolina Maria de Jesus entre os 10 que compunham meu corpus. Impressionada com aquela autora, de quem até o momento nunca tinha ouvido falar, fui procurar no acervo das bibliotecas francesas algum estudo sobre sua ligação com Carolina Maria de Jesus. Não havia nada. Nem lá e nem nas bibliotecas no Brasil.
Enviei uma cópia do livro à professora Regina Dalcastagnè, que tinha me apresentado a literatura de Carolina Maria de Jesus na época da minha graduação na Universidade de Brasília, uns 20 anos antes disso, e que estuda desde então a obra da autora brasileira. Mas ela também não conhecia as Cartas. Era uma novidade lançada na década de 1970, mas que ainda não tinha atravessado o Atlântico. Sabemos, no entanto, não ser incomum a (re)descoberta de autoras negras cujas literaturas passaram tempo demais engavetadas. Finalmente lançadas a esta banda do oceano, a novidade circulou. De volta ao Brasil em 2018, venho me dedicando a estudar as correspondências literárias entre as duas escritoras.
Enquanto a pesquisa dos manuscritos de Carolina Maria de Jesus se revela dificultada nessa época de confinamento pelo acesso aos documentos, espalhados entre Sacramento (MG), São Paulo e o Rio de Janeiro, os de Françoise Ega ainda não estão disponíveis para consulta, guardados entre as casas dos cinco filhos de maneira artesanal. A tradução do livro para o português (há tratativas de versões para o espanhol e o inglês) certamente ampliará o interesse de leitores e pesquisadores sobre o tema, o que pode levar os herdeiros a pensar em meios de acondicionamento mais adequados do material para pesquisa. Por enquanto, os filhos têm se desdobrado para ajudar como podem as pesquisadoras interessadas, buscando nas memórias, caixas e gavetas empoeiradas pedaços de uma vida e de uma obra que vão se (re)estruturando com o despertar revitalizado do interesse pela leitura da obra da mãe.
A ESCRITORA E AS CARTAS
Françoise Ega, cujo sobrenome de solteira era Modock, nasceu em Morne-Rouge, em 1920, numa cidadezinha no norte da Martinica, onde passou a primeira infância. Perdeu o pai ainda criança, por volta dos oito anos, quando a mãe estava grávida do sexto filho. Em busca de melhores condições, a família migrou do interior do país para Fort-de-France, atual capital da Martinica, onde Marie Olive (a mãe) trabalhou como costureira para sustentar os filhos. Ela também cultivava legumes, frutas e flores em casa e vendia o excedente.
Com a morte precoce do pai, a pequena Françoise precisou de repente amadurecer, ajudar nos afazeres de casa e cuidar das irmãs menores. As memórias desse tempo serviram de enredo para o romance memorialístico Les temps de madras, ainda sem tradução no Brasil. Em Fort-de-France, a menina fez os estudos primários e concluiu um curso técnico de datilografia. Foi também durante a infância que Françoise teve contato com pessoas que haviam sido escravizadas, como o pai Azou, personagem imponente de Les temps de madras. Nessa época, ela descobre que “o outro país” não se tratava apenas da França continental, mas de outros lugares “como a Guiné, cheia de gente forte como o pai Azou e, mais longe ainda, países repletos de coqueiros com pessoas que se pareciam comigo”.
Durante a Segunda Guerra, já crescida, deixou a Martinica e partiu para a França onde conseguiu uma vaga de estenotipista. A Segunda Guerra serviu de inspiração para o romance L’alizé ne soufflait plus. Na França, em 1948, casou-se com Frantz Ega, de quem assumiu o sobrenome. Militar, o marido foi enviado como enfermeiro a países da África, como Benim, Egito e Madagascar. Depois de dispensado das funções militares em 1955, Frantz Ega mudou-se com a esposa e dois filhos para Marselha. Pouco depois, nasceram outros três.
Os anos 1960 foram de luta e de escrita. Na França continental, a família Ega se deparou com o racismo e as dificuldades financeiras. O marido trabalhava como carteiro e Françoise Ega, como muitas outras mães trabalhadoras, acumulava turnos de trabalho fora e dentro de casa. Ela chegou a postular para vaga de datilógrafa, mas ao se apresentar para a entrevista, “a diretora do escritório disse que o lugar não estava mais disponível” e, então compreendeu que sua cor de pele era o motivo pela qual ela não conseguia emprego na sua área de formação, assim como muitas outras antilhanas negras. Ela acabou fazendo bicos como costureira, vendedora, mas sobretudo trabalhou como faxineira em casas de mulheres francesas brancas enquanto os filhos estavam na escola. Em Cartas a uma negra, Ega revelou sua frustração com o racismo velado dos franceses durante as buscas por emprego: “Nos dizem para voltar outro dia, ou então que ‘entrarão em contato’. Então, chega o dia em que você fica de saco cheio e parte para uma agência de emprego de faxineiras, se você tem urgência em garantir seu ganha-pão”.
Foi nessa época que Françoise Ega conheceu Carolina Maria de Jesus. Durante o trajeto de ônibus rumo ao trabalho, leu uma reportagem sobre a autora brasileira publicada na edição de maio de 1962 da revista Paris Match, conforme se pode ler nas Cartas: “Eu descobri você, Carolina, no ônibus. Levo 25 minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho. Toda semana me dou ao luxo de comprar a revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros”.
Naquele ano, a escritora brasileira lançava a versão em francês do livro Quarto de despejo, intitulado Le dépotoire em francês. A matéria exibiu um perfil de Carolina Maria de Jesus um tanto exótico. Ela foi retratada como a mulher negra pobre que mora na favela, catadora tornada célebre pela escrita do seu diário. Mas o que causava espanto ou “curiosidade” ao leitor francês branco de classe média, gerou profunda empatia em Françoise Ega: “Você, Carolina, que procura tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos berros, está mais perto de mim”.
Ega nunca chegou a ler todo o livro da autora brasileira, não teria dinheiro para comprá-lo, mas leu os trechos publicados na reportagem. A partir daí, inspirada pela experiência de publicação do diário de Carolina Maria de Jesus, começou a registrar em cadernos o seu cotidiano entre maio de 1962 e junho de 1964. Diferente da autora brasileira, Ega compôs um diário epistolar, nomeando sua destinatária com nome e sobrenome: Carolina Maria de Jesus.
A martinicana já se dedicava à escrita do romance memorialista Les temps de madras quando passou a contar a sua destinatária sobre sua vida e impressões de mundo. Mais que seu cotidiano, ela revela o seu processo de escrita, as dificuldades em conseguir escrever em meio às inumeráveis tarefas, à falta de dinheiro, ao descaso de quem não acreditava que uma mulher negra pobre pudesse escrever um livro e até a dificuldade por causa da falta de espaço. A vida da mulher negra trabalhadora e migrante no sul da França não parecia muito diferente da vida da mulher negra da favela do Canindé (SP). Assim, Ega se identifica imediatamente com aquela outra negra a quem chama “irmã”.
Embora suas condições de vida fossem melhores que a da brasileira — afinal ela tinha um marido com emprego estável —, inúmeras são as jovens martinicanas, que habitam as páginas das Cartas destinadas a Carolina Maria de Jesus, que trabalhavam em condições análogas à escravidão. Além de personagens da sua história, Ega também empenhou toda sua vida na França para ajudar os imigrantes caribenhos, especialmente mulheres e crianças. Exploradas em casas de famílias de classe média francesas, as trabalhadoras não podiam sair sem lhes quitar o valor da passagem da Martinica para Marselha, uma conta que parecia se alimentar de horas extras, quartos sem ventilação e anos de exploração.
Entre as décadas de 1950 e 1970, uma política francesa de incentivo à migração de trabalhadores antilhanos da Martinica, Guadalupe e Reunião — que Ega chama em seu livro de “novo tráfico de escravos” — recrutou muitas mulheres antilhanas para trabalharem em serviços domésticos, especialmente nas regiões de Marselha, Côte d’Azur e Paris. Diferente de suas conterrâneas, durante as férias escolares, mais frequentes na França que no Brasil, Françoise Ega podia deixar o emprego em casas de família para cuidar dos filhos, quando aproveitava para se libertar dos apartamentos fechados, com cheiro de mofo e guardado.
Numa dessas casas, a patroa, que se refrescava do intenso verão do sul da França deitada sob o ventilador, desdenhou da sensação de calor que a faxineira sentia, já que ela vinha de um clima tropical. Ega retrucou, dizendo que em sua terra havia a “sombra espalhada pelas mangueiras”, dos ventos alísios, além de “janelas abertas para abrigá-los, acolher esses ventos, das persianas aspirando o ar, dos rios, dos banhos de mar”.
O Mistral, vento típico do sul da França, aliviava um pouco a sensação de confinamento dos apartamentos franceses de janelas fechadas e a remetia à liberdade que experimentara ainda criança na Martinica de sua infância. Mas o dinheiro que ganhava em meio aos cômodos abafados ajudava a acertar as contas no fim do mês e dava para algo mais, como um bolo para comemorar o dia das mães ou para pares de sapatos novos para as crianças. Então, ela suportava por algum tempo as humilhações e os preconceitos frequentes de famílias que se julgavam hierarquicamente superiores em gostos e hábitos, e que poderíamos facilmente reconhecer entre as classes médias e altas brasileiras, com a arrogância típica de quem confunde conta bancária com elevação cultural. Não raramente, alguma patroa a chamava pelo nome da antiga faxineira, supunha que ela não falasse bem o francês, embora essa seja língua oficial na Martinica, ou julgava seus gostos e pensamentos certamente desdenháveis.
A narradora-personagem busca resolver o problema do seu mal-estar no mundo dos quartos de despejo pelo viés da filiação simbólica a uma escritora com quem funda uma nova linhagem, uma família estendida e inventada. Dentro desse contexto, ela cria também um diálogo fictício entre remetente e destinatária em que subverte os sentidos da família biológica, ao mesmo tempo em que o refunda. Ega instaura com outra escritora negra uma comunidade em que se reconhece e se afirma, numa relação de afinidade que confere mais sentido a sua vida e a seu lugar no mundo: o de mulher, negra, trabalhadora, migrante e mãe.
Ega escreve a rotina dessas mulheres “outras” como ela, num movimento dialógico entre a escrita de si e a escrita das outras suas semelhantes, enquanto trabalha e cuida das crianças. É possível que, como Maya Angelou revela em Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, Françoise Ega também estivesse cansada de ler histórias em que os heróis eram sempre homens e em que as trabalhadoras não passavam de princesas brancas feitas de empregadas. Ou, assim como bell hooks, ela tivesse aprendido na escola que o cânone era um grupo formado apenas “pelos escritores que a cultura ocidental considerava ótimos”, como diz nas Cartas, e que curiosamente só tinha homens brancos. Em Carta às mulheres do terceiro mundo, a poeta Gloria Anzaldúa (1942-2004) desvenda a ausência de mulheres negras no seleto grupo dos canônicos: “nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o touro sagrado, a forma (…) Nos mantermos distantes para ganhar o cobiçado título de ‘escritora literária’ ou ‘escritora profissional’. Acima de tudo, não sermos simples, diretas ou rápidas”.
De fato, Françoise Ega, assim como Carolina Maria de Jesus, faz do “rés-do-chão”, para retomar uma expressão de Antonio Candido, argamassa de suas histórias. Elas constroem uma literatura capaz de oferecer perspectivas renovadoras de mundo e revigorantes do conceito de “ótimo”. Em busca de desvendar o que as “mulheres de cor somos levadas a pensar como ‘outro’”, conforme Anzaldúa avalia, Françoise Ega convida seus leitores a acompanhá-la na aventura de inscrever-se em palavras, passando pelo compartilhamento de experiências com outras mulheres negras, outras “outras” semelhantes.
Acompanhamos sua lida diária pelas casas das patroas brancas enquanto tenta escrever como pode, do jeito que dá, “apoiada na máquina de lavar” ou “enquanto as crianças adormecem”. Viajamos com ela para Paris com os cinco filhos em busca de uma editora para o seu livro e nos hospedamos num cubículo de uma conterrânea antilhana que “ganhou a vida” na cidade grande. Ao fim dessa jornada, percebemos que conhecíamos muito pouco desse universo francês que emerge das Cartas, em que a Torre Eiffel é uma atração tão turística para a narradora quanto para nós. Porque Ega e seus filhos barulhentos também são estrangeiros ali. Essa estranheza dialoga com o conceito de “selvagem” que Sally Price evoca em seu livro Arte Primitiva em centros civilizados:
“A antítese do protótipo do Conhecedor é certamente o protótipo do Selvagem. A diferença é, por assim dizer, do preto no branco. O Selvagem não se veste muito bem (ou, muitas vezes não se veste de modo algum), não tem uma educação adequada, tende a entregar-se a um comportamento ruidoso e às vezes lascivo, confunde lendas e mitos com a verdadeira história, abandona trabalhos artísticos aos cupins em vez de conservá-los em museus, delicia-se com iguarias à base de larva de palmeira e carne humana em vez de escargots e miolo de vitela e não possui sequer uma parcela da competência do Conhecedor em questões de gosto e de belas artes”.
Como um busto negro de arte negra “primitiva” numa sociedade que cultiva seriamente o gosto pelos “ótimos” ocidentais em diversos campos, notamos nas Cartas o quão fora de lugar Françoise Ega parecia se sentir ao reivindicar para si um lugar diferente daquele reservado às migrantes caribenhas das cozinhas e casas de família. Experimentamos junto com ela o seu constrangimento ao andar de lá para cá e de cá para lá, entrando em livrarias, aguardando editores, visitando redações. Esperava-se dela que agisse e pensasse dentro de um universo restrito a “cera, sabão de Marselha e prendedores de roupa”. Com as patroas, não havia outro assunto possível. Dentro desse universo de interdições, a remetente Françoise ousa dividir com a destinatária Carolina suas elucubrações sobre outras possibilidades de agir e pensar. São histórias que passam pela troca transatlântica de experiências profundamente femininas e negras e que instigam a refletir sobre maternidade, condições de trabalho e o fazer artístico, além de outros assuntos que certamente não se restringem a sabão de Marselha, mas que passam por ele.
A ATIVISTA
Ega também foi ativista pelos direitos dos caribenhos na França, deu aulas para crianças antilhanas, fundou associações de acolhimento de migrantes e investiu em ações educativas e culturais, entre as quais a criação de um centro cultural operário. Foi referência entre os migrantes das Antilhas que, como ela, se instalaram na França e se tornou reconhecida em função desse trabalho pelos habitantes de Marselha.
Ela faleceu em 7 de março de 1976 e seu corpo repousa hoje em sua cidade natal, Morne-Rouge, na Martinica. Após sua morte, os filhos fundaram o Comité Mam’Ega para dar seguimento aos trabalhos comunitários da mãe, sobretudo o combate ao analfabetismo, e preservar sua memória. Uma placa em homenagem a ela foi instalada no Centro Cultural Busserine onde trabalhou e militou. Para festejar o seu centenário, uma rua de Marselha foi recentemente batizada com seu nome.
Em tempos sombrios e desafiadores como os que vivemos, o legado de empatia, solidariedade e afeto que corre pela sua obra — literária e de vida — aponta para caminhos possíveis de resistência e de valorização dos laços que nos unem. Bisneta de escravizados por parte de pai e mãe, Ega nos convida, sem romantizar opressões, a caminhar com ela rumo a mundos passados capazes de jogar luz sobre o presente, desalienando-o e revelando, ao mesmo tempo, cursos de ação que nos conduzam a experiências compartilhadas de respeito mútuo e esperança de dias melhores.
Apesar dessa necessária herança, Ega ainda é pouco conhecida no mundo de língua portuguesa. A tradução das Cartas a uma negra, apesar da demora, não poderia chegar em tempos mais apropriados. O texto em português fez justiça a essa longa espera para que as correspondências, lançadas há tanto tempo, singrassem o mar e alcançassem a outra margem desta história.
Bibliografia
Antonio Candido, “A vida ao rés-do-chão”, in: Para gostar de ler: Crônicas. Volume 5. Ática, São Paulo, 2003, p.89-99.
bell hooks, Ensinando pensamento crítico: Sabedoria prática. Editora Elefante. São Paulo, 2020.
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: Diário de uma favelada. Editora Francisco Alves: São Paulo, 1960.
Françoise Ega, Cartas a uma negra. Todavia. São Paulo, 2021.
____________, Les temps des madras. 2ª edição. Harmattan, Paris, 1989.
____________, L’alizé ne soufflait plus. Harmattan, Paris, 2000.
Gloria Anzaldúa, “Speaking in tongues: a letter to Third World women writers”. In: Moraga, Cherríe & Anzaldúa, Gloria (orgs.). This bridge called my back: Writings by radical women of color. Kitchen Table: Nova York, 1981, p. 165-74.
Maya Angelou, I know why the caged bird sings. Ballantine Books: Nova York, 2015 (3ª edição).
Sally Price, Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. Tradução de Inês Alfano.
LEIA TRECHO DE LES TEMPS DE MADRAS
Autora: Françoise Ega
Tradução: Maria Clara Machado Campello
Pegamos um trajeto com grama da altura de um homem e a tia Acé abria o caminho com golpes de foice, nos explicando que as plantas eram afiadas como navalhas e certamente nos cortariam a pele como as melhores lâminas. De tempos em tempos, o pai Azou nos guiava pela voz: “Ei, meninos, por aqui!”. A castanheira em questão estava encravada num terreno quadrado, cheio de cacaueiros, e caminhávamos sobre um tapete de folhas ovais. Não víamos mais o céu, e o sol estava escondido pelas sombras espessas dos galhos. Da castanheira vi apenas um enorme tronco esverdeado de umidade. O homem gritou: “Eu vou descer! Se afastem, crianças, vou jogar meu cipó!”.
Um longo caule de bambu caiu da árvore, uma forma vestida de branco surgiu rapidamente em seguida. O pai Azou estava lá, imenso — media quase dois metros de altura — seu rosto negro de ébano pingava de suor, seus cabelos grisalhos despontavam sob o chapéu bakoua. Sua orelha furada e a brancura de seus dentes chamavam a atenção. Eu olhava tanto para o lóbulo pendido sob o peso de uma argola de ouro que o pai Azou percebeu:
— Ah, você está olhando isso, disse tocando a orelha. Eu uso o brinco desde criança, não consigo ficar sem. Assusta os jovens e os ignorantes. E, no entanto…
Eu nunca teria ousado questionar aquele gigante que subia o morro conosco nos calcanhares. Ele carregava um cesto grande de fruta-pão e de castanhas na cabeça e o fazia sem dificuldade aparente. Acé, de um golpe de cutelo, cortava os caules altos das canas-de-açúcar plantadas ali ou dos abacaxis espinhosos bem-escondidos na relva alta.
Estávamos ansiosos para sair do mato e descansar no alto da colina, perto da cabana do pai Azou. Essa cabana com teto de palha, ele a havia construído com suas próprias mãos. Era feita de ripas de bambu tecidas com juncos indianos. Tinha apenas uma porta e uma janela. Em um canto do único cômodo havia um estrado: três caixas vazias e duas tábuas formavam uma base que sustentava um colchão de palha. Do teto pendia um cacho de bananas. A terra batida da cabana estava minuciosamente limpa. O pai Azou puxou um banco de madeira branca, guardado debaixo da cama, e nos acomodou. Ele cozinhava do lado de fora numa panela de barro que ele chamava de “coco-nègre”. O que se cozia dentro dela, na opinião da tia Acé, ficava melhor que em panelas de alumínio. De vez em quando, o pai Azou se agachava diante do fogo a lenha, tirava o chapéu e o usava como leque para abanar as cinzas. Ele se voltava para nos jogar ameixas e bananas. Eu não conseguia desviar o olhar da sua orelha furada e minha insistência o fazia rir. Ele dizia, tirando o brinco:
— Eu sou um negro da Guiné, é por isso…
— Ah! O que é um negro da Guiné?
— Os brancos trouxeram minha família de um “outro país” chamado Guiné.
E, endireitando-se, acrescentou maliciosamente ao olhar para a tia Acé: “Os traficantes de escravos diziam que os negros da Guiné eram mais fortes e mais trabalhadores. Por isso nos escolhiam, tínhamos menos dificuldades que os outros.”
— Os outros quem? Perguntou meu irmão.
— Os pais da Acé, disse ele, rindo alto. Eles vinham de mais longe que a Guiné, com certeza. Eles eram menorzinhos e, meus filhos, nesse tempo, os negros eram como cavalos, tinham que ser fortes para mexer com a terra, puxar carroça, carregar cana. Se não fossem de raça boa como eu, a gente virava criado de casa. E as patroas das residências eram piores que os patrões.