Só agora, aos 36 anos de idade, bicha velha, como diria a minha mãe, eu descobri a vodca. Estou dizendo aqui descobrir e não beber. Não sou uma B.V., ou boca virgem, em vodca. Já fui adolescente que veraneava em casa de praia e vodca com Fanta era perfeito para as minhas paixões platônicas de férias. Fui jovem nas matinês e duas doses de vodca com Fanta rendiam mais dancinhas do que quatro cervejas. Fui universitária e meu salário de estagiária não aguentava mais do que três caipiroscas, por saída. Digo que só agora descobri a vodca porque, só agora, bebo na fonte. Há uns dez dias, derrubei quase num gole só o livro O rei da vodca – A saga da família Smirnov e a construção de um império. Para uma bebum amadora como eu, a obra biográfica de Linda Himelstein é quase um afogamento. Fiquei de porre já nas 40 primeiras páginas, das 352. Entre outras viagens dessa história apaixonante, saquei, por exemplo, porque a gente olha atravessado para o casal da mesa ao lado, que pede uma garrafa de Smirnoff, ao invés de Johnnie Walker Red ou do vinho chileno Santa alguma coisa.

A cena aconteceu de verdade. Ele é loiro, forte e sua muito. Ela, morena clara, tem os cabelos ainda molhados, tingidos de vermelho escuro. Dou 40 anos a cada. Os dois sentam à mesa do bar como se estivessem no cinema, lado a lado (a propósito, nunca entendi porque casais sentam assim, assistindo à paisagem). Dali a pouco, o garçon serve uma garrafa de Smirnoff, um balde de gelo, duas latinhas de soda e dois copos altos. Observo o casal tomar quase meia garrafa, ou, meio litro da vodca, em 40 minutos. E nos goles intercalados com algum petisco, vejo aquele mexidinho de bochecha de quem degusta e tem intimidade. Dá gosto. Dá prazer ver. A essa altura, eu, que já estava embriagada com O rei da vodca..., inicio um romance na minha cabeça. Um romance russo, claro, como parece ser a vida de Piotr Smirnov. Será que o casal aí tem ideia de quem ele foi? Enquanto vou abstraindo, um amigo exclama na minha mesa: “eu desconfio do gosto de quem toma vodca”. O preconceito existe e tem origem antiga.

Se o casal do bar e o meu amigo fossem apresentados a Piotr Smirnov e família, como eu fui, concordariam comigo: vodca misturada com paixão, negócios, tragédia e superação tem muito mais efeito que qualquer uísque e vinho.

Nascido pelas mãos de uma parteira, pobre, cheio de irmãos, trabalhador desde criança e retirante. Com esses clichês se conta a vida do presidente Lula. E também a do russo Piotr Smirnov, fundador da Smirnoff, vodca cujo litro do tipo mais consumido, naquela garrafa translúcida de rótulo vermelho, custa módicos R$ 21, em qualquer supermercado. Piotr Smirnov nasceu plebeu em 1831 na Rússia, saiu ainda criança da casa dos pais e morreu aos 67 anos, como um gigante da indústria do país.

A biografia me exigiu, antes, uns goles de batismo na tradição da vodca na Rússia. Fico sabendo que monges russos tinham alambiques nos monastérios, lá nos anos 1500, mas que o líquido era usado para experimentos químicos e descobertas científicas. Humhum, sei, sei bem. O que saiu de útil dessas pesquisas o livro nem conta, mas imagino o que rolava naqueles retiros isolados, no alto das montanhas. Também fico sabendo que beber vodca era o passatempo preferido de Pedro, O Grande, que comandou o país de 1682 a 1725. Ele institui o gole punitivo. Quem chega atrasado ou falta à reunião deve tomar uma caneca de vodca. E quem aqui não já brincou disso, virando um copo de bebida para pagar uma prenda, hein?

Bom, com o passar dos anos, a bebida passa a ser usada como pagamento no lugar de dinheiro, como suborno e para encorajar soldados na frente de batalha. É dada até a mulheres em trabalho de parto e a recém-nascidos. O governo czarista, que mantém forte controle sobre a economia da vodca, aprova e estimula tudo isso. O consumo elevado é uma forma fácil de encher os cofres do Estado. E claro que isso dá em merda. Imagine a bagaceira que seria no Brasil, com a cachaça. Agora multiplique isso por mil, que é para aplacar o frio na Rússia.

O fato é que, quando Piotr Smirnov entra para o ramo, lá nos anos 1860, a vodca já é mania nacional (parafraseando a nossa Pitú). Mais do que isso, é um grande negócio. Surgem toda sorte de fabricantes. Muitos clandestinos, destilando vodca de péssima qualidade. Os impostos sobre a bebida cobrem um terço das despesas básicas do Estado e ainda geram o bastante para pagar toda a defesa do país em tempos de paz. Cristão ortodoxo e pouco chegado a beber, Piotr Smirnov talvez tivesse preferido uma vocação mais digna. Morre como o maior produtor de vodca do país, dono de uma empresa em Moscou avaliada em 20 milhões de rublos, o que equivale hoje a uns 265 milhões de dólares. Mas morre com medo e culpa. Ou seja, numa ressaca moral monstra.

DOSTOIÉVKI NÂO ERA BEBUM
No auge da popularidade de Piotr Smirnov, em 1880, começa um movimento de combate ao álcool. Era como se a vodca na Rússia fosse, hoje, o crack no Brasil. E é aqui que entram o casal da garrafa de Smirnoff, o meu amigo, eu, você e todo mundo que olha atravessado para quem pede uma dose ou uma garrafa de vodca, ao invés de Johnnie Walker Red ou vinho Santa alguma coisa. O preconceito atravessou o mapa e o tempo. Meu colega de agência, Tota Faria, um admirador incondicional da bebida, já ensinaria: “Ana, toda vodca é discriminada. Alguém sempre acha estranho você pedir. Ainda mais se for pura. Mas eu gosto e ainda peço pelo nome, para prestigiar a marca”.

Lá na Rússia, na turma do contra, aparecem escritores e intelectuais. Justamente esses que a gente cita em mesa de bar, para sair de sabida. Nos livros, crônicas e artigos, bebuns são sempre imundos, almas perdidas, fracas, que inspiram piedade e causam destruição. Fiódor Dostoiévski, por exemplo, cujo pai foi um bêbado cruel, escreve apaixonadamente sobre os perigos da vodca. O dramaturgo e médico por formação Anton Tchekhov, muito antes de fazer Tio Vânia, escreve uma crônica em que chama a vodca de “sangue do diabo”. E Tolstói, que quando jovem foi um bebum de primeira, mudou a casaca e se tornou, a bem dizer, um evangélico da sobriedade. Conta o livro que ele teve uma crise religiosa depois do sucesso de Anna Karenina e resolveu revelar suas transgressões em Confissão. “Mentiras, roubos, promiscuidades de todos os tipos, embriaguez, violência, assassinato. Não há um único crime que eu não tenha cometido”, declara.

A peleja é só o começo da história. Outra lapada grande na família Smirnov vem com a Revolução Bolchevique, em 1917. Dessa vez, a destilaria é confiscada e o filho de Piotr, Vladmir, que consegue fugir da prisão, reabre a fábrica em Paris, onde a grafia da marca muda para a que a gente conhece hoje, com dois efes. Sabendo desse drama todo, nem o casal, o garçom, meu amigo preconceituoso, eu e você bebemos mais Smirnoff do mesmo jeito, como uma bebidinha. Uma aguazinha. A propósito, vodca, veja só, é o diminutivo de água, em várias línguas eslavas.

A vodca me segue e não é no Twitter. Posso lembrar aqui de passagens curiosas para mim. Uma delas em São Petersburgo, antiga Leningrado. Estive lá em 2008, a trabalho. Foi a primeira vez, em 12 anos de profissão, que me deram bebida alcoólica num evento formal. Um, dois, três shots de vodca bem gelada antes do almoço, para ficar pensando melhor. Não beber seria uma grosseria da minha parte, com os anfitriões. Mas impossível foi ver aquela dancinha russa tipo ciranda, num sobe e desce danado, sem ficar tonta.

Um genuíno porre, com direito a Perestroika e outros palavrões russos.

Nos quatro dias que fiquei em Petersburgo, capital da Rússia até 1918 (um ano depois da Revolução Russa) e quarta maior cidade da Europa, vi vodca por todos os lados. Disfarçadas em copos da McDonald´s nas mãos dos jovens, vendidas nos supermercados com todos os níveis de destilação, pureza e sabores, oferecidas no frigobar do hotel, exibidas como souvenires no aeroporto. Porém, na única chance de balada que tive, vi os russos bebendo cerveja long necks. Especialmente Guiness. Ah, e era raríssimo ver garrafinhas de Ice isso, Ice aquilo.

Pouco antes de saber que faria este texto, dou de cara com um anúncio da Smirnoff reproduzido no livro Razão e sensibilidade no texto publicitário, de João Anzanello Carrascoza. A peça veiculada em 1990 traz uma foto de Mikhail Gorbachev e um nostálgico texto sobre a queda do Muro de Berlim. A marquinha vermelha no cocuruto do líder russo, aliás, foi bastante explorada pelas fábricas de vodca do mundo inteiro. Tanto que, em 2004, Gorbachev chegou a registrar o sinal de nascença.

De fato, não é de uma marca de vodca que a gente lembra, quando para e pensa num anúncio ou comercial legal. Mas nesses dias de pesquisa etílicopolítico-cultural, descobri peças elegantérrimas da própria Smirnoff, da Absolut, Stolichnaya (carinhosamente chamada de Stoli), Wyborowa e outras (só na Wikipédia aparecem 250 nomes, das mais diversas procedências, como Israel e México), que deixariam Johnnie Walker, Keep Walking no chão. Descobri, por exemplo, Woody Allen e Groucho Marx vendendo uma edição especial da Smirnoff numa revista e comerciais de puro realismo fantástico da Absolut.

E no cinema? O famoso Dry Martini de James Bond é feito com vodca. No primeiro filme da série, 007 contra o satânico Dr. No, um diálogo explica a preferência. Dr. No solicita: “A medium Dry Martini, lemon pell, shaken, not stirred”. E Bond pergunta: “Vodca?”. Dr. No, enfaticamente: “Of course”.

I LIKE NO FACEBOOK
Agora recebo novidades da Smirnoff, Absolut, Wyborowa, Stoli e Skyy, pelo Facebook. É tipo relação de apaixonados. Os facebookers trocam informações a todo instante. Um clube do uísque, só que virtual e com vodca, claro. Adriaan Barkey Wolf, por exemplo, pergunta no perfil da Smirnoff, se “anyone knows a nice vodka cocktail which is not too hard to make?”. Eu mesma respondi com dois: Bloody Mary e Sex on the Beach. Meus amiguinhos de feice também me contaram que Paul McCartney e Black Eyed Peas exigiram a vodca premium francesa Grey Goose. E que sir Paul, inclusive, tem uma música cujo título é Morse moose and grey goose.

É claro que, entre tantas histórias ligadas à vodca, existem esquisitices. Uma delas é vodca com sabor de salmão. Criação lá do Alaska. Não consigo evitar o trocadilho: junta a fome com a vontade de beber. Encontrei também o “Primeiro Bar de Vodca de Curitiba”. Ou seria o único do Brasil? E o adolescente que bebe um litro de vodca em 20 segundos, para aparecer quase morrendo no vídeo que outros adolescentes fizeram e publicaram no YouTube? No som do carro, escuto essa semana o anúncio de open bar de Smirnoff até 1h. Festa estranha, com gente esquisita.

Diz um provérbio russo que “o homem veio do pó e ao pó voltará. Nesse meio tempo, é bom tomar um gole de vodca”. E eu completaria: e se forem goles, que sejam de vodca boa. Com todo respeito às nossas conterrâneas Bolvana, Natasha e Slova, mas a ressaca dessa aguazinha destilada, verdade seja dita, é uma das piores do mundo. Que o diga Piotr Smirnov e, imagino, aquele casal da mesa ao lado da minha, que derrubou o litrão de Smirnoff em menos de duas horas.


Ana braga é jornalista.

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