De cara chama a atenção, no livro Risco no disco, de Ledusha, seu aspecto visual: de formato mais quadrado, emulando um compacto, a capa traz uma cena em preto e branco do filme Acossado (1960), de Godard, na qual se vê um casal de perfil. Jean-Paul Belmondo segura o pescoço de Jean Seberg como se a enforcasse; Jean Seberg olha para ele com uma expressão séria. Os dois usam roupas listradas (um, com listras horizontais, outro, verticais). A cena em pb está recortada sobre um fundo que traz um trecho do roteiro em espanhol do filme, mas um trecho que não corresponde à cena apresentada. A capa tem uma moldura em vermelho sobre a qual aparece o nome da autora, em preto, embaixo. E por cima do roteiro, em uma fonte manuscrita estilizada e em vermelho, o título do livro como um letreiro em neon na diagonal.[nota 1]
Há muitas camadas de leitura nesta colagem da capa, assinada por Sergio Liuzzi e Rogério Martins, para além de ela condensar o clima do livro de Ledusha. Começo pensando nas repetições ali presentes: o casal com a roupa listrada, a relação da imagem recortada com o texto de fundo, o título que traz uma rima interna — espécie de paronomásia que parece definir o sentido pelo som: risco no disco. São repetições que acabam por não se corresponder plenamente, já que a cena do filme não é a do roteiro, do risco para o disco há uma letra trocada, o casal tem a roupa listrada, mas cada listra vai numa direção.
Um risco no disco é um defeito, uma falha, marca do tempo e do uso, mas também aquilo que cria uma interrupção, uma descontinuidade. O disco arranha, a agulha falha. O corte produz o salto e a repetição. Quando chegamos à palavra disco, depois de ter passado pela palavra risco, parece que a falha ganha uma dimensão na linguagem; de fato o som se repete, a agulha do leitor pula no r-isco deste livro quando lê a palavra d-isco. Este jogo sonoro que descrevo aqui não está só no título, ele é uma constante e talvez uma porta de entrada para os poemas de Ledusha.
COLEÇÃO CAPRICHO: DENTRO E FORA
Publicado há 40 anos, em maio de 1981, Risco no disco saiu junto com mais oito livros na Coleção Capricho, que reuniu os poetas Francisco Alvim (com dois livros), Ana Cristina Cesar, Zuca Sardan, Eudoro Augusto, Luis Olavo Fontes, Afonso Henriques Neto e Pedro Lage. O funcionamento da Capricho seguia a lógica de outras coleções dos anos 1970 da chamada “geração marginal” (à margem do mercado). Os poetas se reuniam, num momento de fechamento editorial, e produziam e distribuíam o próprio trabalho de modo independente. Era uma maneira de “furar o bloqueio da não-edição de livros de poesia”, colocou Francisco Alvim. Assim, surgiram Frenesi, Nuvem Cigana, Vida de artista e outras coleções[nota 2] que abarcavam poetas com propostas estéticas muitas vezes diversas, que tinham, por outro lado, uma “proposta existencial comum”, nas palavras de Sebastião Uchoa Leite. Os nomes dessas coleções parecem apontar mais para tal postura existencial (ou existencial-editorial) do que para algum objetivo formal-estético; o frenesi diante da possibilidade de produzir o próprio livro ou a vida de artista que alguns podiam levar. Seja como for, tal “postura existencial” também pode ser depreendida dos poemas e textos e de sua construção da subjetividade da época.
O nome “Capricho” apontava para uma questão editorial, porém ele marca uma diferença em relação às coleções anteriores, como destacam dois artigos publicados no calor da hora. Um deles, de Cacaso, comenta que o nome vem do fato de que os livros agora estavam “mais bem cuidados do que os das primeiras coleções, que tinham o aspecto muitas vezes desleixado”[nota 3] (as capas, por exemplo, eram tecnicamente elaboradas, como descrevi acima). Heloisa Buarque de Hollanda afirma que nesta coleção havia, para além da questão técnica e gráfica, uma preocupação com o texto; o capricho não seria apenas visual, mas um “cuidado explícito” com a linguagem (“capricho poético?”)[nota 4]. Se alguns poetas que publicaram na coleção já estavam em seu terceiro ou quarto livro, Risco no disco foi o único livro de estreia.
É curioso pensar também que concomitante à Coleção Capricho saía o estudo Retrato de época, de Carlos Alberto Messeder Pereira, livro importante pela análise minuciosa que faz da “geração marginal”. Além disso, a editora Brasiliense começava a editar a Cantadas literárias, coleção que vai publicar poesia em grandes tiragens[nota 5], e vai operar uma espécie de profissionalização dos autores, como apontou Flora Süssekind. As duas publicações evidenciam que era um momento posterior e que a experiência dos anos 1970 já estava sendo lida, relida, analisada e transformada.
ARRANHANDO O DISCO, AFOGANDO BALZAC
Paulista que morou no Rio de Janeiro nos anos 1970, Ledusha viveu o ambiente da época, integrou esta cena poética e seus poemas esbanjam as referências culturais, a dicção, a coloquialidade, o diálogo com o cinema e a música, aspectos presentes naquela produção. Seria possível dizer que seus textos fazem parte daquele “poema coletivo” de que falava Cacaso (estariam todos escrevendo um “poemão”) — leitura que talvez passe por cima das particularidades de cada obra. Assim, no caso de Ledusha, os poemas dialogam diretamente com esta cena poética, estão dentro dela, mas também sugerem certo distanciamento. Em outras palavras, parece haver um risco, uma descontinuidade. O poema Felicidade fala desta distância ao nomear o “poeta marginal”: “nada como namorar/ um poeta marginal/ incendiado/ nada/ como um mingau de maisena/ empelotado […]”. De forma bem-humorada, Ledusha joga com um clichê que ali já estava fixado. Ela está dentro e fora ao mesmo tempo.
Ao longo do livro há uma série de cenas em torno da escrita e da leitura e em vários momentos aparece a figura da poeta irreverentemente hesitando entre o “capricho e o relaxo” (como Leminski colocou no título de seu livro). Ledusha diz: “penso nos versos de hölderlin/ que esqueci sobre a mesa”, “caso mme bovary com nelson rodrigues/ e estávamos entendidos” ou “afogava balzac na pia”.
O icônico poema New-Maiacóvski também opera nesse sentido irreverente ao reescrever os versos do poeta russo, “Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”,[nota 6] transformando-os em “prefiro toddy ao tédio”. Em Ledusha, o recurso sonoro da paronomásia faz com que a presença de um toddy dentro poema — que poderia soar estranha ao lado de Maiakóvski — seja quase obrigatória pela contraposição sonora a “tédio”. Escrever o toddy por cima do tédio não é só tropeçar no arranhão, é produzir o risco, criar uma repetição não correspondente.
No livro há vários jogos sonoros que trazem um tom autoderrisório: “ia sinforcar/ no foulard de tom pastel”. Ou no poema (que serviu de inspiração para uma canção de Arrigo Barnabé), Sinhazinha em chamas: “ai quem me dera uma tuberculose/ uma overdose”.
Ao lado do humor e da leveza desses e outros versos, uma melancolia atravessa o livro, como nos poemas de amor (mesmo nos que jogam com estereótipos, amor perfeito, casamento), nas discretas marcações temporais ou nas imagens incendiadas. Como se alguma coisa ficasse em aberto, sem poder se encaixar ou ser explicado. Um poema que responde à discussão feminista não traz uma leitura fechada da questão. De leve: “feminista sábado domingo segunda terça quarta quinta e na sexta/ lobiswoman”. Ao que se refere o “de leve”? É feminista de leve? Ou lobiswoman de leve? Lobiswoman seria uma simples inversão do lobisomem?
Por fim, vale mencionar o uso de fotografias ao longo do livro de Ledusha e o diálogo com formas narrativas como o cinema ou a fotonovela. Como observa Aline Rocha, este seria um livro cinematográfico, não só pelas “estratégias narrativas descontínuas” como também pela “articulação entre palavra/som/imagem”.[nota 7] Há, de fato, seis imagens espalhadas no miolo que entram lado a lado com os poemas transformando sua leitura. É o caso da foto da autora que acompanha o primeiro poema fazendo com que ele seja lido como uma espécie de autorretrato. E o poema casamento vem acompanhado por dois frames do filme Acossado que funcionam como comentário crítico ao texto e flertam com a forma da fotonovela, já que as imagens vêm em sequência — e mostram Jean Seberg dando um tapa na cara de Jean-Paul Belmondo, alterando o sentido do casamento que está no poema.
Relendo o livro agora, em seus quarenta anos, tive a sensação de que ele traz, no tom rebelde e no humor, mais uma inadequação do que o contestatório da contracultura. Uma inadequação de quem está dentro e fora, no seu tempo e fora dele. Parece que Ledusha escreve arranhando o disco da sua geração, criando riscos para poder seguir de outra forma. Que possamos também reler o livro criando pausas para tentar ouvir o que a agulha e seus ruídos dizem.
NOTAS
[nota1]: Dá para ver a imagem de capa clicando aqui.
[nota 2]: Folha de rosto, Gandaia, Garra suburbana, entre outras.
[nota 3]: Cacaso, no texto Coleção Capricho. In: Não quero prosa (Rio de Janeiro/Campinas: UFRJ/Unicamp: 1997), p. 86.
[nota 4]: A hora e a vez do Capricho, no Jornal do Brasil (16/5/1981). Consultado na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional no dia 25 de maio de 2021: memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&pasta=ano%20198&pesq=ledusha&pagfis=24920
[nota 5]: Uma matéria na Folha de S.Paulo, de Antonio Gonçalves Filho, publicada em 1984, com o título sugestivo A poesia já faz best seller, traz alguns números de venda da Brasiliense — já naquela época Leminski era sucesso de venda, tendo vendido, em 20 dias, 3 mil exemplares de Caprichos e relaxos. Consultado no Acervo da Folha online em 25 de maio de 2021: acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=8652&keyword=Ledusha&anchor=4312396&origem=busca&originURL=&pd=bb2d062498361f3da506cfd561686fe8
[nota 6]: Verso do poema A Sierguéi Iessiênin, com tradução de Haroldo de Campos. In: Maiakóvski. Tradução de Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
[nota 7]: Aline Rocha, A vida entre alôs, beijos, cacos e discos. In: Revista Alére, ano 9, vol. 14, n. 2, PPGEL, 2016. Disponível em periodicos.unemat.br/index.php/alere/article/view/1933/1732