“O trabalho de escrita — já que é de fato trabalho, e não mera atividade ociosa — acaba sendo uma forma de salvar a liberdade. Escrever é essencial, porque a escrita é a vida; mas escrever também é a solidão, a morte”. As palavras são de Julie Beaulieu, da Société Internationale Marguerite Duras, e estão no prefácio à nova edição brasileira de Escrever, que sairá em breve pela Relicário Edições em tradução de Luciene Guimarães.
Escrever é o primeiro título da Coleção Marguerite Duras, idealizada pela editora Maíra Nassif, e será lançado neste ano em que se completa um quarto de século da morte da romancista, dramaturga, roteirista, ensaísta e diretora de cinema francesa.
No papel de editora da coleção, refaço um arco de mais de três décadas desde meu primeiro encontro com a obra de Duras. Digo encontro, mas seria talvez mais acertado dizer choque, topada, colisão. Há desses momentos, na vida de um leitor, capazes de desordenar o mundo. Foi um susto me deparar, na altura dos meus dezessete anos, com o livro A doença da morte. Se por um lado, como diz Rachel Kushner num artigo para The New Yorker, Duras sempre esteve “consumida por si mesma”, por outro é como se isso se desse quase que por via de um encantamento, e o resultado artístico tem uma potência tamanha que o encantamento nos contagia.
No ano seguinte, morei na França, trabalhando com música. O apartamento que alugava era forrado de livros — até mesmo o colchão da cama ficava apoiado num estrado feito de livros de bolso —, e foi ali que encontrei outras obras de Duras, agora no original. Minha própria carreira como escritora só começaria dali a uma década, mas meu segundo romance tem como epígrafe uma passagem do livro Escrever: “Se é inútil chorar, creio que ainda assim é preciso chorar. Porque o desespero é tangível. Permanece. A lembrança do desespero permanece. Às vezes, mata”.
Não são palavras inocentes. Com Marguerite Duras, a escrita é o fio da navalha entre a vida e a morte, ou a impossível conjugação de ambas (“contradição das contradições, a poesia”, escreveu José Lezama Lima, outro que habitava as sombras da escrita). O livro aberto é a noite. A porta aberta para o abandono. Escrever é gritar sem fazer ruído. E a fruição do mundo literário de Duras nada tem a ver com exercício de erudição: é leitura que se sente, mais do que se intelectualiza.
Ela nasceu Marguerite Donnadieu, adotando, com a publicação de seu primeiro romance, em 1943, o sobrenome inspirado no vilarejo da família de seu pai na Gasconha. Como é típico dessa região, o “s” final de Duras se pronuncia, hábito considerado “vulgar” pela elite francófona, mas que autora insistia em preservar. Rachel Kushner sugere que essa insistência teria a ver, por um lado, com uma autoafirmação sem rodeios, mas, por outro, com uma espécie de “simplicidade terrena”, a um tempo ousada e plenamente à vontade. Sobre a programação, o planejamento, Duras diz, em Escrever: “isso nunca existiu em minha vida. Nunca. Nem em minha vida, nem em meus livros, nem uma única vez”.
Sua obra era considerada “masculina” demais, “viril” demais pelos críticos nos idos dos anos 1950. Mas ela nunca se importou com os modismos literários, nem tentou se conformar a papéis específicos. Não aprovava a narrativa biográfica — sua vida e sua ficção se confundem — nem a ensaística, e chamava os adeptos do nouveau roman de “homens de negócios”. Sua obra é pulsante de erotismo e atravessada por referências a experiências de perda, ao alcoolismo, à separação, ao amor, ao desejo, à guerra, à infância (e à pobreza da sua infância na Indochina), à morte, à solidão. Um escritor “está sozinho até mesmo em sua própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter ousado sair e criar” — diz uma passagem de Escrever.
Muitos de seus trabalhos foram originalmente ditados (é o caso de A doença da morte), o que lhes confere um estatuto que fica, em minha opinião, em algum lugar entre a fala para o outro, a escrita e a fala em voz alta para si mesma, pura absorção. Ela dizia adorar seus livros, e alegava, como relata sua biógrafa Laure Adler, que os escritores que afirmam não gostar do que escreveram não conseguem “resistir à atração exercida pela humilhação”. Touchée.
O embrião da Coleção Marguerite Duras foi a oferta da tradução de Escrever feita por Luciene Guimarães, que tem um doutorado sobre a obra da autora pela Université Laval (Québec, Canadá). Embora se trate de um dos nomes mais fundamentais da literatura universal, a obra de Marguerite Duras anda em grande parte indisponível ao leitor brasileiro, donde o interesse de Maíra Nassif em relançar vários livros em novas traduções. Além de Escrever, outros oito títulos já foram contratados pela Relicário: Moderato Cantabile, Hiroshima mon amour, Les Yeux bleus, cheveux noirs, La Pute de la côte normande, L’Homme atlantique, Détruire, dit-elle, Emily L. e L’Été 80. Outros sete títulos estão sendo considerados.
Talvez, num momento em que a liberdade de criação literária periga, no Brasil, ser coibida pelos desejos do mercado, e que se vê todo um jogo de “pode-não pode” cerceando a escrita de ficção, seria saudável ouvir mais uma vez o que Duras tem a dizer nesse breve texto seminal que não perde sua atualidade: “Se soubéssemos alguma coisa sobre o que vamos escrever antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena. Escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever — só ficamos sabendo depois; antes, é a pergunta mais perigosa que podemos nos fazer. Mas é a mais comum também”.